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terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Especial: A subliminar semiótica de uma tela de Moura Rabello.

Por Márcio Lima Dantas.

 Todo começo é involuntário.

Fernando Pessoa



Eu me perguntei se era possível analisar e interpretar uma tela de um artista através de apenas uma pintura. Tarefa árdua e complexa, mesmo não propondo esgotar a maestria e o primor dos quadros de Moura Rabello, recorri à linguística de Ferdinand de Saussure (SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1995) e Roman Jakobson (Linguística e poética. In: JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1991) quando tratam do funcionamento de uma língua, organizando as formas de pensar por meio da metáfora ou metonímia. O certo é que nenhuma língua foge a esses dois arranjos básicos. Assim sendo, me debrucei sobre a metonímia, cujo funcionamento contempla uma relação de objetividade entre os dois objetos a serem postos lado a lado e comparados. É a parte pelo todo. Diferente da metáfora, que se compraz em grande livre-arbítrio, constituindo uma figura de linguagem na qual não há necessária relação entre o que se põe junto para se fazer compreender ou nas liberdades que a poesia proporciona por meio de suas licenças. Desse modo, a metonímia requer para seu efeito de comparação algo objetivo entre as duas partes. A saber, a parte pelo todo, o efeito pela causa, a marca pelo produto. Até o ensino médio, a metonímia é considerada, e estudada, tão-somente como uma figura de linguagem, bem como a metáfora. A diferença entre as duas é que a metáfora necessita de um elemento ou locução conjuntiva para que se efetive e o leitor deslize na semântica do texto. Acontece que, depois dos estudos de Roman Jakobson e seu amigo Lévi-Strauss, essas duas formas presentes na linguagem passaram a ser compreendidas como figuras de retórica. Ou seja, não são adornos presentes em períodos e orações, mas são o próprio funcionamento da linguagem. É possível fazer uma fusão entre a lista de figuras de linguagem dos livros escolares, restando dois básicos arranjos: metáfora e metonímia. Toda e qualquer pessoa elabora o seu discurso, sua eloquência, por meio de uma das duas, mesmo sabendo que não é possível encontrar nenhum estado puro. Fundem-se ou se encostam uma na outra, a depender da intenção que se quer passar para o interlocutor. Com efeito, isso não é tão complicado quanto parece, basta ouvir com atenção, escrever com esmero e clareza, falar pausado ou prestar atenção aos outros. Cada um com sua experiência, se mudou muito de lugares, se domina mais do que a língua onde foi socializado, se prima pela elegância no falar e no manuseio de sinônimos enriquecedores da comunicação. Enfim, se chanta naturalmente diferenças no sotaque, nos acompanhamentos de dêiticos com naturalidade. Enfim, uma elegância no falar, pleno de formas simples mais eivadas de metáforas e metonímias. Vejamos a tela de Moura Rabello que nos propomos a uma exegese estética, aos símbolos presentes e aos enigmas implícitos. O pintor Dorian Gray organizou uma retrospectiva (1970) de um dos mais importantes pintores daquela época, reputado por ser grande retratista, tendo deixado telas de pessoas do meio intelectual e político desse tempo. Nesse evento foi doada para a Pinacoteca Potiguar a tela, óleo sobre tela, “Augusto Severo e Sachê” (de 1963). Há uma coisa bastante curiosa a dizer. Essa tela foi feita a partir de uma fotografia da dupla em Paris, havia uma terceira pessoa à direita de Severo, eliminada, sendo difícil especular os motivos. A fotografia, ainda existente, retrata o dirigível Pax antes de ascender aos céus e explodir, matando os dois (1902). Creio que vale a pena apontar aqui a idade dos dois amigos, Augusto Severo (11.01.1864 – 12.05.1902) e Georges Sachê; o primeiro tinha na ocasião da tragédia 38 anos e o segundo, seu mecânico, 25 anos. Essa magnífica tela, anúncio de uma tragédia em Paris, resguarda uma série de signos a um espectador de olhar mais acurado e fruidor das obras de arte, não apenas como os passantes em vernissages de exposições. Como sabemos, mais vale o burburinho e a zoada das conversas, os comes e bebes. As telas expostas? São apenas telas. Se algum oráculo de respeito tivesse sido consultado que cores os dois amigos deveriam usar, na ascensão do dirigível Pax pouco antes do fatídico acidente, com certeza a pitonisa não hesitaria: “devem usar somente o azul e suas nuances. Nada mais pode ser dito”. Augusto Severo expressa um corpo atlético, ancho de si, confortável como representante de sua classe, de quem prima pela indumentária visando reforçar o que a natureza lhe emprestou até os 38 anos (Os deuses vendem quando dão. Compra-se a glória com a desgraça, Fernando Pessoa). Porte e elegância não lhe faltavam. Sabia muito bem como dispor as mãos: toque leve de dedos da mão direita sobre uma espécie de corrimão de madeira; a mão esquerda confortavelmente dentro do bolso da alinhada calça feita sob encomenda. Não nega que o alfaiate tirou as medidas com extremo cuidado, após fazer uma pergunta ao freguês (antigamente era assim). A perna direita cruza a esquerda, demonstrando uma nata elegância, de quem não precisou fazer caras e bocas para apresentar sua fina estampa de um homem detendo-se um tanto face ao guarda-roupa, antes de se vestir definitivamente. Diferente de Sachê, Severo mirou a máquina fotográfica, preferiu erguer a cabeça e fixar seus olhos oblíquos em algum ponto do horizonte, talvez soubesse inconscientemente qual a melhor posição para ser retratado em uma foto. Quase todo mundo sabe. Mas isso não implicou em deixar seu amigo Sachê em um qualquer desdém, respeitava demais seu mecânico para tratá-lo dessa forma. Algum incauto pode até levantar essa hipótese. Não creio eu.

Mesmo porque derreou-se para trás a partir da mão direita no bolso, acabando por engendrar uma geometria que se abre em um triângulo, com suas três linhas retas, as linhas que no imaginário remetem quase sempre ao masculino, assim como a linha curva evoca o feminino. Além disso, se olharmos com atenção podemos observar que o braço esquerdo encontra-se próximo ao braço direito de Sachê. Se marcarmos uma linha constituída de ângulos retos, é possível observar um paralelismo que segue até o ombro direito do mecânico (um homem com menos compleição física que Severo, no entanto, resguarda a mesma elegância). Ainda mais: deixou petrificado seu olhar misto de sereno e escrutinador, capaz de especular o que lhe interessava, seja de gente ou da paisagem. Inusitado é que os dois optaram por ancorar as mãos nos bolsos, como a proteger alguma espécie de segredo? Essa forma de se comportar condiz com os tímidos ou com os inseguros, não sabendo onde botar as mãos. Não parece ser o caso desses dois amigos. Uma amizade resultante do mesmo sonho: o de voar como os pássaros. Prerrogativa destes, mas não apanágio dos homens (naquela época). De toda maneira, ainda permanece no imaginário esse desejo de se evadir da realidade, de não andar pelas veredas nas quais a vida e o tempo determinam, são poucos os que escolhem seus caminhos por meio de embates com a realidade ou negociando certas cartas que conseguem rápido entender como é a gramática da existência. Mais do que mesmo esse estranho impulso os conduzia, emanado das entranhas e conduzindo a uma permanente inquietude? Isso mesmo, de fazer valer seus sonhos de asas pandas em inventos de vanguarda ainda não testados por outros? Algo me sopra que o preço pago foi alto, mas tudo que é de boa qualidade é caro. O barato sai caro. É sempre preferível pagar o preço do que queremos ou desejamos. Talvez seja bom mesmo sair da vida em um momento de êxtase, de provável triunfo, em uma tentativa de aclamação que os conduziram à História da aviação.

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