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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Especial: Ilkes Rosenir: a sintaxe curva de um abstrato

Por: Márcio de Lima Dantas.

Sem a loucura que é o homem 

 Mais que a besta sadia, 

Cadáver adiado que procria? 

Fernando Pessoa 

Nascido em Belém (1979), vive desde os cinco anos em Parnamirim, atuando no  ramo da propaganda e publicidade. Com relação à sua obra artística, é autodidata.  Sabemos o quanto o Abstracionismo, enquanto movimento e estilo artístico, surgido no  início do século XX, contribuiu para a evolução das formas nas artes visuais (não em  quantidade, mas em qualidade), consolidando não apenas o uso de linhas, cores e o que  podemos chamar de superfícies, na imensa planície onde frutifica a arte, em uma  permanente transmutação, de acordo com o ar do tempo. O Abstracionismo, antípoda à concepção de existir em uma pintura ou desenho a  temática ou uma imitação de algum objeto da realidade, chegou para incorporar nas  formas de pensar a arte. E em pensando a arte, levava consigo, é claro! O que sucedia em  um século povoado de diversas revoluções. O que fora ser ou estar foram destronados,  sem que para isso houvesse sido anuladas as maneiras de representar. Ocorreu, sim, uma  simultaneidade que abraçou o Figurativo e o Abstrato, lembrando que as formas de  manuseio com cores e linhas fossem mais de acordo com o espírito da época. 

Com efeito, o Abstracionismo, deixando ausente da tela sobretudo a figura  humana, empreendeu um avanço que fez olhos e ouvidos do início do século XX a  compreender a existência de outras formas de pensar, agir e se comportar socialmente. A  verdade é que tivemos de atestar e aceitar a convivência das duas correntes.  Simultaneamente despontavam em todos os países e lugares o que veio a se tornar dois  paradigmas na planície das artes visuais. Lugar amplo onde se convive tudo que detém  qualidade, mas também o que vem e faz um sucesso rápido, não conseguindo inscrever  seu nome na História das Artes.  Essa corrente que se compraz no manuseio de planos, cores e linhas, negando-se a representar a chamada realidade concreta, exalta a subjetividade, haja vista que convida  aquele que frui a arte a dizer uma outra nomenclatura que não as tantas correntes vinculadas ao figurativismo a que costumamos chamar de academicismo: a busca de  representar temas, objetos do mundo ou um retratíssimo, quer seja mais realista ou não. Consabido é o quanto o Abstracionismo deixou o seu legado, abrindo novos  caminhos capazes de deixar passar o que já era familiar e o que se instaura como novo, e  resulta do surgimento de uma paisagem contemporânea eivada de edifícios, autoestradas,  anonimato, muita coisa que desponta, mas os dicionários não contêm os nomes. Só para  se ter uma ideia de como isso funciona, podemos evocar a maneira como se erguia uma  residência com inúmeros paradigmas justapostos: portas, janelas, escadarias, fachadas  com decorações diversas, porém não perdia a noção de que aquilo era uma casa de  morada. Hoje não se repete mais isso. Predomina o estilo minimalista, com suas vidraças,  plantas, madeiras, rampas para os automóveis. Enfim, são linhas retas em diversos  ângulos, formando uma espécie de caixa. 

Seria interessante discorrer e estabelecer mais alguma coisa do social. Com o  avanço tecnológico, muitos elementos foram postos de lado, até mesmo a maneira de educar uma criança esgarçou o seu tecido, em que havia o ensinar a entrar e sair, usando  suas palavras mágicas (com licença, muito obrigado, desculpe). 

Tenho para mim que o século XX veio com disposição a jogar a pá de cal sobre o  que já vinha se deteriorando. É possível falar do apagamento da memória, o culto à  escolaridade e uma etiqueta básica, adentrando pelo lado mais fácil de caminhar,  chegando em uma encruzilhada e, sem hesitar, escolher o pior caminho, inclusive, sem  volta. Agora é sair pisando no cascalho. Talvez buscando o que é exceção, não a regra. Nos nossos dias predomina um narcisismo exacerbado, não mais buscando o outro  com o amor Philia ou o amor Eros. O que importa sou eu cultuando meu corpo, pelas ruas  e pelas academias. Sempre com uma garrafinha de água (isso não é uma metáfora da  mamadeira?). Muitos filósofos do nosso tempo apontam como um dos principais traços  a infantilização generalizada, grassando por todas as classes sociais, exaltando a  ignorância. Com efeito, prevalecem na vasta planície da arte, em um relevo no qual  predominam toda a espécie do que nossa cultura nominou arte, do Renascimento até os  dias de hoje. Falamos assim porque é possível mapear e compreender os objetos de arte,  habitando o mesmo lugar, desde o hiper-realismo, o academicismo ou aparentados, até  uma profusão de artistas lidando com o abstrato por meio de suas nuances. Quero dizer uma coisa: o nosso tempo não permite ou torna difícil caracterizar em um arranjo  homogêneo que se pode proclamar: Isso é a arte predominante do século XX e início do  XXI, visto atestarmos fronteiras e sobreposições de estilos, até mesmo sem limites entre  o que é pintura, escultura, desenho e as artes digitais. Contudo, nos últimos tempos, ocorreu uma vulgarização do que chamam abstrato.  Podemos falar mesmo em um fenômeno, mas não vem a ser caudatário da vanguarda do  início do século XX, conduzindo os críticos mais rigorosos a contemplar com um tanto  de cepticismo, pois grande parte do conjunto dos artistas visuais filia-se, com uma certa  naturalidade, às elaborações que a nada remetem ou procuram imitar o que nós chamamos  realidade. 

Não é o caso de Ilkes Rosenir, cuja obra foi desde sempre pautada pela exímia  qualidade, mantendo o mesmo espírito nas tantas séries que concebeu, não se repetindo  ou alterando bruscamente o que parece ser fruto de elaborado trabalho, em uma sempre  paciência, pois não é de pintar em grande quantidade. Podemos separar algumas séries e  comentar um pouco essas sinuosas linhas, cujo objetivo parece ser a circunscrição de  superfícies nas quais algumas serão preenchidas com cores diversas, outras permanecerão  com o papel em suas linhas retas, permanecendo retângulos ou quadrados. O que chama a atenção nesse artista é uma displicência, no sentido de  simplicidade, que o faz conduzir por aparentes meios o ondulado das linhas e separando  por fronteiras de cores. Os primeiros trabalhos foram muito originais. Pegava uma caixa  comum de papelão e pintava no verso (dentro da caixa), esse procedimento proporcionou  não só se destacar como detentor de uma originalidade, como também fez uso de uma  reciclagem, vindo a ser um trabalho elegante e sem o excesso de informações. O desenho  com esferográfica e com lápis de cor na superfície das caixas manuseava o mínimo de  intervenções sobre o papelão, causando ume feito de empatia com o espectador. A pouco e pouco o artista foi mudando apenas o suporte, permanecendo com seu  vocabulário mínimo, justapondo por frases estéticas reveladoras de uma grande maestria.  Tanto é que não vimos nada igual nas Artes Visuais do Rio Grande do Norte. Sua obsessão pela linha curva predomina em todas as suas fases. Algumas mais coloridas, cujo predomínio é do vermelho, contrastando com uma profusão de nuances;  em outras predominam o verde, em contrastes de vermelho e branco. Mas de tudo isso, nesse enlinhado de cores, superfícies brancas, há uma  sobriedade e não uma inquietude, como era de se esperar. Existe um ethos tranquilo,  predominando a sinuosidade (muitas curvas, muitas voltas e reviravoltas), que, ao longo  da História das Artes no Ocidente, via de regra, era manuseada para imprimir o ondulado,  com suas espirais, como foi o caso do Barroco, conclamando o indivíduo a observar como  seria o espaço celeste, de chamada, adesão e busca de salvar a alma.  Os instrumentos usados são quase sempre a caneta esferográfica, o lápis de cor e  a colagem. Por meio de recursos tão parcos e por demais conhecidos desde sempre, o  artista consegue lograr êxito na sua empreitada de atingir um efeito gráfico simples e de  muita beleza. Acreditamos que o que de melhor o artista fez é a série mais despojada de  tudo o que já arrolamos. Organiza-se sobre papel branco linhas curvas com hachuras (espaço em branco), circundado por linhas muito delicadas, no qual predomina, nos  poucos espaços em branco, a cor vermelha ou azul. Através de tanto retirar as massas  maiores pintadas de várias cores, restou apenas um grande espaço em branco, que ergue  suas linhas em busca do alto, em uma verticalidade quebrada apenas por algumas  pequenas superfícies nas quais aparecem o azul ou o vermelho. Tudo isso conseguido  com tinta nanquim sobre papel canson. O simples é muito difícil em arte. 

Há dois trabalhos de grande criatividade. São duas peças completamente negras,  recortadas em linhas curvas no Eucatex. É como se o artista tivesse saturado, chegado a  um limite com suas antigas séries plenas de cores e superfícies. Assim como se fosse,  apenas para efeito didático, o branco no branco, do russo Kazimir Malevich. Aqui, no  caso, é preto sobre preto, negando a retratação do mundo natural, em que pululam objetos,  flores, composições arbitrárias, pessoas em atividade ou paradas. Cabe o quê, a quem  contempla, essas duas formas negras no seu permanente silêncio e indiferença? Com efeito, estanques em qualquer lugar que se coloque, induz a compreender  como uma charada ou enigma. O problema é que valem por si e não por relação a uma  outra coisa, fora dos seus limites de um serpentear ondulando como o que ascende e  depois desce. Enfim, não há enigma, não há muito o que refletir, não há quase o que dizer,  apenas quedadas em uma parede ou canto da sala, em um silêncio pouco ou nada  evocando. Ao que parece, é assim como em algumas situações nas quais rogamos para  nos deixar em paz, para nos deixar em busca de um sono profundo, para que o negro  venha a ser Morpheu (sonho), no interior de Hypnos (sono), em um descanso repousante, pois logo virá outro dia, deixando pingar suas horas dos relógios que não se fadigam em  trabalhar. Por fim, Ilkes Rosenir detém uma série extremamente interessante, puxando uma  linha de um carretel que havia ficado no início do século XX, falo do Readymade de  Marcel Duchamp (1887-1968), elevando à categoria de arte objetos presentes no  cotidiano, muito olhados, mas pouco vistos. E se enxergados nas feiras livres ou pequenas  lojas, são apenas pequenos fogões à lenha, não mais do que produzidos em série e  direcionados para o uso. O nosso pintor escolheu esses fogões para retirar dos seus lugares  de venda e colocar em uma galeria de arte. Podendo também ser postos em museus, ambos  são lugares sagrados para exposições do que insistimos em proclamar um objeto como  obra de arte. Desnecessário dizer que estamos tratando dos Readymade do artista norte-rio grandense, intitulado Ipso facto: Ecce homo! (I, II, III). Como procedeu? Trabalho  apresentado no Salão da Capitania das Artes (Prefeitura do Natal). Apenas com simples  gesto de adquirir um pequeno fogão de alumínio (ferro e zinco), pintado com tinta esmalte  sintética. Os fogareiros contêm duas bocas, uma estrutura exclusivamente funcional,  dedicados a um público modesto, ou seja, os que não possuem fogão a gás. Apenas pintou  de vermelho os dois lados, algumas partes de branco (por onde se coloca a lenha) e uns  contornos ou detalhes de azul.  Esses pequenos fogões vendidos nas feiras populares, adquiridos tão-somente por  pessoas mais humildes, funcionam somente à lenha. Ao serem retirados do seu contexto,  vêm a ser uma outra coisa. São objetos de uma banalidade tamanha que são pouco  olhados, mas quase que não vistos. O ato de retirar o pequeno fogão da sua função, que é cozinhar diariamente as  refeições, quer dizer, do seu objetivo prático e utilitário, imprime uma inusitada  significância, questionando o que é mesmo arte e seus procedimentos, haja vista que  desde sempre fomos habituados a compreender arte como uma coisa relacionada ao  singular, individual, algo sem par. O que ressalta como procedimento é a artesania com  sua aura de uma unidade apenas.  O ReadyMade vai de encontro à concepção de uma arte cuja satisfação maior é  deter sua singularidade. Assim, essa forma convencionada como arte se pergunta se o que  é produzido em série também não se constitui um distrito o qual podemos nominar de  arte. Mais parece um discurso intrigando a quem se posta à frente desse fogão pintado  com cores contrastantes e vivas, salientando as superfícies e linhas de uma coisa  elaborada para ser utilitária. 

Daremos o nome aos fogões, para o leitor ter ideia da consciência que o artista  Ilkes Rosenir detém sobre esses trabalhos, fazendo saber do que se trata e a que linha  temporal remete esses experimentos, sendo agora integrantes da História das Artes. Os  fogões podem ser classificados a partir do seu tamanho e pelo fato de possuírem uma ou  duas bocas. Com o título geral de Ipso Facto: ecce homo! (Pelo próprio fato: eis o  homem). Temos quatro fogões com uma só boca, linhas simples com toda a estrutura  remetendo ao funcional, não existindo adereços ou algo que está fora do ato de sua  serventia no cotidiano, que é cozinhar. Sendo assim, há o predomínio da cor verde em dois, fazendo se destacar e se  diferenciar dos outros dois que manuseia a cor vermelha. Permanecem iguais. Os que têm  duas bocas são apenas o acréscimo para quando do ato de cozinhar, agilizar com maior  rapidez, possibilitando o uso de dois fogos à lenha. Consabido é que o Readymader só se efetiva de verdade quando se desloca de  lugar, para que cause a desejada estranheza e o reconhecimento como obra de arte, aquilo  que foi feito com uma funcionalidade outra. Esses fogões foram expostos em um Salão  de arte promovido pela Capitania das Artes (funciona como Secretaria de Cultura da  cidade do Natal), comprovando desse modo o que Marcel Duchamp requeria e praticava:  apenas o simples ato de transferir um objeto produzido em série e com vistas ao  utilitarismo, – das feiras livres aos salões de exposição –, sucede no olhar de quem está familiarizado com as artes um fenômeno que, se não domina essas intervenções artísticas,  pelo menos eleva-se uma série de interrogações abarcando o que já se instituiu na  categoria arte ou ainda hesita a chancela incluidora de pertencer a uma qualquer linha de  continuidade nas pradarias onde germinam simultaneamente diversas espécies de formas  estéticas. Não podemos esquecer a data da inauguração dessa estranha arte, que foi o Urinol,  de Marcel Duchamp, com o título de Fonte (1917). E também dizer que esse “pronto feito” mais do que ser, busca parecer, instaurando no seio da arte, antípoda dos  manufaturados, não uma recusa imediata daquele banal, ousando chegar aos salões e museus, misturando-se com artistas já com seu nome consolidado. No final das contas, o  que interessa é esse chamado pleno de dúvidas a que o espectador é conclamado a  imprimir uma resposta no seu íntimo, quanto mais aberta e indulgente for a alma do  indivíduo, mais apto está de situar em algum lugar da memória essa estranha forma que  se encontra fora do que já é reconhecido como arte. 

Ainda podemos acrescentar alguns movimentos ou formas de arte influenciados pelos implícitos discursos que se encontram no Readymade. Podemos citar o Poema  Processo, cuja qualidade e quantidade dos seus trabalhos fizeram lançar suas buscas para  muitos países de mentalidade mais aberta. Talvez o Rio Grande do Norte seja o lugar do  Brasil onde mais se produziram trabalhos que ficam difíceis de nominar como poemas,  na medida em que se mesclam o analógico e o digital. Há de buscar categorias da  Semiótica para um entendimento mínimo das obras de um Falves Silva, um J. Medeiros  e um Avelino Araújo, dentre outros mais. Todos dotados de distintas escrituras, com  extraordinária criatividade, vindos a ser fora do comum em uma tipicidade particular. Não  só isso, mas um tento e um tino do que estavam plasmando em suas obras plenas de  superfícies, linhas de todo o jeito e maneira, colagens e um ingresso do que não se poderia  anteriormente chamar de arte. É mister lembrar o que acontece nos dias de hoje, em que há espaço para todo e  qualquer movimento ou o já consolidado, e tem seu espaço de atuação garantidos,  permitindo o surgimento de uma combinação de um ou vários procedimentos. Eis que  podemos citar apenas alguns: grafitagem, videoarte, minimalismo, arte eletrônica,  passando pelas facetas do abstracionismo e do hiper-realismo, jamais esquecendo a arte  digital, obtidas por meio de programas de computares (esta se abre em um amplo leque  de possibilidades, podendo se trabalhar com a mescla do manual ou ficando restrito às  máquinas e suas viabilidades, em fusões extremamente belas, quando junta a mão e as  teclas). 

O certo é que diante de tamanha diversidade, há de buscar parâmetros de  discernimentos em uma intricada área na qual convivem métodos e procedimentos  geradores de efeitos (como a textura, a ausência do desenho, o feitio da perspectiva ou  não, o uso da tinta com suas inúmeras possibilidades). Quer dizer, muitas vezes mais  confundindo que ajudando a compreender. Esse momento de discernir, para os mais exigentes ou mesmo por deter a linha periodológica-cronológica nas contas do seu saber,  impõe uma mirada no passado, tateando-o para ver se encontra algo que se afine ou  detenha parecença com a arte do nosso tempo. Fizemos apenas um recorte, nunca  pretendemos dar conta do bulício da arte contemporânea.

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