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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Especial: Ana Amélia: um eterno sol que insiste em permanecer no crepúsculo

 Por Márcio de Lima Dantas.

A vida conta a vida:  

a estéril crueldade  

da luz que se consome  

desintegrando a essência 

inutilmente. 


Orides Fontela 

 

Ana Amélia (Natal, 1947), professora aposentada da UFRN, foi iniciada no  mundo das artes quando terminou o antigo científico no Colégio das Neves. Estudou na  Escola de Artes do Recife (na Madalena). Teve aulas de desenhos de observação de bustos  de gesso e depois com pessoas. Também estudou História da Arte, pintura e modelagem.  Chegou a iniciar o curso de Arquitetura. Seu trabalho circunscreve um amplo arco, indo da acrílica à aquarela e ao óleo,  conseguindo manusear com propriedade os pincéis. Podemos fazer alguns comentários  sobre o que tive acesso. Vejamos as aquarelas. Faremos um recorte didático, retendo  apenas quatro. Ainda assim, cremos que dão conta do seu manuseio com essa técnica não  muito fácil de figurar no papel, através de rápidas pinceladas. Temos duas aquarelas marinas, com cores não muito comuns de encontrar. O céu é de um lilás suave e  transparente, provocando uma rápida empatia com o apreciador da tela. Em seguida, há uma aquarela cujo título é “Serra branca, nas proximidades do  Açu”. Há um contraste ameno entre planos opostos. Ao fundo, serras e colinas delineiam  uma barreira geográfica, fazendo saltar o casario visto por meio dos telhados, já que a  vegetação oblitera o resto de cada casa. Finalmente, “Rio Potengi”, com as águas serpenteando seu espelho líquido, descansando entre casas e barrancos. Há uma tela abstrata, com linhas azuis e vermelhas, nervosas, delineando planos,  com o verde e o laranja. Esse manuseio compreendendo a justaposição de fortes cores  nada evoca da chamada realidade. Acontece por sim, em seu abstracionismo  expressionista. Ao que parece, emana de uma ordem procedente de regiões abissais do  ser, onde o inconsciente repousa seu naipe de imagens simbólicas, e que, mesmo havendo  um enigma ao se trazer ou aparecer nos sonhos, permanece como um distrito que nos comanda e nos faz depositar memórias, nacos de histórias incompletas, enfim, o que nos  delineia e cria a falsa harmonia do que somos enquanto seres humanos. 

As marinas de Ana Amélia evocam nosso mestre Dorian Gray. Somente por sutis  resquícios de uma linha separando o firmamento, a areia e os arbustos, como se fosse um  construto puramente mental. É assim que nos chegam as paisagens do mar e da água. Essa  técnica também detém outro exímio parentesco estético: Goreth Caldas. De toda maneira,  repete-se esse procedimento na tela “As salinas”. Há o paralelismo que já reportamos,  com três planos. Apenas as colinas e algumas serras estão no esperado lugar de equidistância entre os três planos que dão forma a uma salina ausente de operários.  As nuvens de um belo e puro azul ultrapassam tanto a linha do horizonte quanto as rumas de um branco já ajuntado, fixos, esplendendo o sol no aguardo da chegada dos  transportes que conduzirão em direção aos processamentos. O nosso maior pintor fundou uma escola estética com as características acima  enumeradas. Se não conseguiram proceder a uma separação, então podemos pensar em  termos de solução de continuidade. Parece, mas não é igual. Nem Ana, nem Goreth,  conduzindo essa técnica lançada ao mundo das artes como herança que é nossa e aprece em outros artistas visuais: variações em torno de um tema só. É que parece não se esgotar  essa nascente estética, cujos artistas buscam nesse arroio não superar ou ser melhor, mas  definir um parentesco de formas e cores. Na artista Ana Amélia ocorre um diferencial dos demais que pintam marinas. Os  planos das dunas, da água e das nuvens não seguem a perspectiva acadêmica. Para se ter  uma ideia, as nuvens se encontram bem mais próximas do olhar de quem mira a paisagem,  quando deveriam, se fosse expressar de acordo com o desenho acadêmico, se encontrar  mais distantes (Lagoa de Genipabu). Talvez o mais belo trabalho, sua Opus Magnum, seja um óleo, à guisa de natureza morta, com um violino escorado na parede do lado direito e uma garrafa de vinho com  dois copos, do lado esquerdo. Ao fundo, uma janela descortina a paisagem, com o mar e  o céu. Ora, esse trabalho vem para demonstrar o aprendido domínio técnico das lições da  pintura acadêmica em escolas constituídas. Transpõe para a tela, com maestria e simplificação, a imagem mais obsessiva, ou seja, o ermo das paisagens e os objetos sem  a presença do humano. Nesse caso, encontra-se, tão-somente implícito, denunciado pelos restos de vinho  nos copos. O violino quedado em um resignado silêncio de um aguardo do proprietário.  Pontuamos aqui mais um exemplo da mitologia que povoa o imaginário da artista: o  cultivo de um silêncio que se orgulha como escolha, não é solidão, mas solitude buscada  nos resíduos de experiências do passado, como quem se acostuma consigo mesmo e  dirige-se a si na terceira pessoa, como um fármaco vindo a atenuar as cicatrizes de  vicissitudes sopradas do passado, com uma proclamada amizade consigo mesmo, nunca  levantando a hipótese de se abandonar, subjugando-se às doenças físicas e aos transtornos  afetivos. As sombras do violino e da garrafa de vinho fazes lembrar quem deixou ao largo  por um instante o cômodo ordenador de alguma forma de amar entre duas criaturas. 

Quando o sol toca a linha do horizonte, hesitando em banhar-se nas águas negras  da noite, encerrando de mal ou de bem mais um dia. E um dia queimado a menos para  cada indivíduo em uma caminhada que mais suja as sandálias do que conserva limpos os  passos. Na verdade, esse momento do crepúsculo vespertino, para os atentos aos relógios  consumindo, por meio da areia das ampulhetas, sempre vigilantes, resume o triunfo cruel  de Cronos, devorando com volúpia seus filhos. Os maquinismos não cessam esse  exercício do qual se veste de uma autonomia impossível de se derrotar e destemido ousar  parar. Impossível! Já estava tudo preparado com uma tratativa de um senciente não ter o  direito de voltar atrás ou buscar caminhos outros em encruzilhadas. Inútil, pois todos os  caminhos conduzem a um fim que se chama Morte. Assim sendo, faz-se necessário remarcar essa obsessão nas telas de Ana Amélia  por essa plêiade de mitos relacionados com o pôr do sol. Isso mesmo, desdobrando-se em  múltiplas maneiras de apesentar o ocaso como metáfora viva da jornada do indivíduo sendo devorado por Cronos (o Tempo). Uma vez que essa obra encontra-se povoada desse mito errante nos crepúsculos  noturnos, vagueando pelas noites à caça de companhia, podemos pensar que é como se  fossem metais fundidos em bigornas de puro ferro. Não usamos a audição para assuntar as imagens com suas cores fortes, usamos, sim, a visão, visto que o sol vem declarar o  fim de mais um dia, clamando para vivermos o terceiro turno: a noite, fechando sem  piedade dos elementos que um ou outro ousa o grito da revolta por não persistir no claro  e no trabalho o bulício de mais um dia, com seus ruídos, automóveis, enfim, o movimento  característico do que se encontra de pé e vivo. A assuada do dia é lentamente apagada, lambendo os céus da parte Oeste da terra,  lugar onde furtivamente a luz natural limita-se a lentamente ir diminuindo a claridade, até que afunda em um espetáculo de vária beleza todos os dias. 

Essa imagem de um sol que toca a linha do horizonte e em seguida afunda  hesitante no negro da obrigatória noite foi retratada de maneira dramática no filme  Drácula, de Francis Ford Coppola (1992). O filme está chegando ao fim, o vampiro, numa  carruagem apressada em chegar ao castelo, rasga as sombras finais de um crepúsculo  demorado. Drácula aproxima-se do seu castelo envolto em penumbra, na Transilvânia  (Romênia). Os ciganos apressam os cavalos da carruagem. Assim sendo, Mina, a companheira do vampiro, sobre um alto, evoca os braços,  conclamando as forças físicas que regem o movimento dos astros, em uma vã tentativa  de apressar o crepúsculo vespertino. Inútil, não há o que fazer contra os relógios com seu  tempo determinado. Cronos, ancho de si, nada permuta ou doa pela exata medida de  minutos e segundos, apenas uma vertigem, uma alucinação pode engendrar um retardo  do sol posto, deixando as cinzas de um dia dispersas pelo chão. A noite impõe sua  negritude sem piedade dos seres apolíneos que amam a luz solar e seus reflexos dos  contornos dos objetos com sua diversidade de cores. Falo da mitologia dos vampiros porque este é o ser que mais diz respeito aos  hábitos noturnos. Ergue-se como criatura quando o sol retira sua frágua do dia, permitindo  a chegada das brisas e ventos a soprar com um frescor as luzes artificiais dos lugares onde  habitam as gentes. Com efeito, o ciclo do dia vai sendo dominado por leves pinceladas saídas de uma  paleta que só possui cores esmaecidas ou o tormento do sol como uma fornalha em brasas  a queimar as cores vivas que o dia adentra para os lados do Oeste. Bem claro que esse  espetáculo cotidiano varia de acordo com o posicionamento das nuvens, da neblina ou dapaisagem edificada pelo homem, interpondo ângulos entre as últimas luzes e os  impedimentos, resultado da verticalização das cidades, com seus edifícios e condomínios. Impossível não tratar aqui do deus Apolo, o sol. Logo que as primeiras luzes  anunciam a alba, sabe-se do nascimento de um novo dia, de uma nova esperança, de uma  nova medicina para nos redimir das enfermidades que não escolhemos, chegam sem  avisos prévios, de descanso que a rotina acumula em cansaços, necessitando recompor  forças para dar continuidade às atividades tantas de um dia qualquer. E quase nos  impondo a obrigação de esquecer o ontem com seus intermináveis trabalhos requeridos  pelos que detêm responsabilidade com a vida. E é assim que Apolo, em sua carruagem de fogo, puxada por cavalos robustos e  queimando como brasas, ascendem para as bandas do Leste, proclamando o ciclo do que  tem que se cumprir, quer aceitemos ou não, em uma contagem regressiva, fazendo cada  indivíduo enfrentar a senda inexorável em direção ao futuro. 

Por fim, e ainda dos vampiros falando, para reforçar nossa interpretação da  insistência em retratar o pôr do sol nas telas de Ana Amélia. Os vampiros trocam o dia  pela noite. Entre os chamados “normais”, isso é mais comum do que o que se imagina.  Mormente nos tempos atuais, nos quais os indivíduos permanecem noites insones,  pingando seu minério negro e líquido na ampulheta da tirania das noites em claro, sem a  possibilidade de negócio de câmbio ou aceite de orações, para os que professam uma  religião. Além disso, o ar do tempo apalpa os indivíduos buscando os mais frágeis e os  conduzindo a um mesmo diapasão. Os que não mais conseguem viver sem a parafernália  dos aparelhos eletrônicos são os mais susceptíveis em inverter esse hábito do sono que  instaurou-se em nossa cultura. Procurando o quê? Cultura é que não é. Impondo sofrimento e inquietude ao não conseguir caminhar pela cadência dos dias em sua  alternância de dias e noites, cuja medida os conduz em direção a um final inerente à  existência.  

Para encerrar, ainda vamos insistir um pouco acerca dos nossos dias com seus  costumes nada saudáveis, conduzindo os indivíduos a um cotidiano nada salutar, basta  ver a quantidade de psicotrópicos usados pela população, independentemente de classe  social. As doenças advindas de transtornos afetivos, como a depressão, a ansiedade  (TAG), os surtos psicóticos, são cada vez mais comuns. É nesse sentido que podemos afirmar as características do espírito do tempo: o  triunfo do senso comum, da infantilização, do narcisismo e do pouco letramento. Sabe-se  do desprezo pelos livros e do pouco fôlego em ler algo com mais de duas laudas. Uma  cultura mediana com conceitos básicos ou argumentos críticos parece caminhar para a  extinção.  Seria estar cego ou completamente alheio ao que acontece nos nossos dias. Por  isso, insistimos no grande êxito da vitória do senso comum, de que não há necessidade  de, pelo menos, o lugar do sensato, para conduzir os indivíduos nos seus espaços vitais,  alcançando um termo, um acordo, uma negociação, para que ambos os lados possam viver  consoante o livre-arbítrio. A verdade é que não se trata de perder ou ganhar, mas de construir uma estrada  onde caibam todos com seu modo de agir, pensar e ser o que se é, não precisando  representar papéis. A escolha do nome: eis / o segredo (Orides Fontela).


 

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