Por Márcio de Lima Dantas.
A vida conta a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.
Orides Fontela
Ana Amélia (Natal, 1947), professora aposentada da UFRN, foi iniciada no mundo das artes quando terminou o antigo científico no Colégio das Neves. Estudou na Escola de Artes do Recife (na Madalena). Teve aulas de desenhos de observação de bustos de gesso e depois com pessoas. Também estudou História da Arte, pintura e modelagem. Chegou a iniciar o curso de Arquitetura. Seu trabalho circunscreve um amplo arco, indo da acrílica à aquarela e ao óleo, conseguindo manusear com propriedade os pincéis. Podemos fazer alguns comentários sobre o que tive acesso. Vejamos as aquarelas. Faremos um recorte didático, retendo apenas quatro. Ainda assim, cremos que dão conta do seu manuseio com essa técnica não muito fácil de figurar no papel, através de rápidas pinceladas. Temos duas aquarelas marinas, com cores não muito comuns de encontrar. O céu é de um lilás suave e transparente, provocando uma rápida empatia com o apreciador da tela. Em seguida, há uma aquarela cujo título é “Serra branca, nas proximidades do Açu”. Há um contraste ameno entre planos opostos. Ao fundo, serras e colinas delineiam uma barreira geográfica, fazendo saltar o casario visto por meio dos telhados, já que a vegetação oblitera o resto de cada casa. Finalmente, “Rio Potengi”, com as águas serpenteando seu espelho líquido, descansando entre casas e barrancos. Há uma tela abstrata, com linhas azuis e vermelhas, nervosas, delineando planos, com o verde e o laranja. Esse manuseio compreendendo a justaposição de fortes cores nada evoca da chamada realidade. Acontece por sim, em seu abstracionismo expressionista. Ao que parece, emana de uma ordem procedente de regiões abissais do ser, onde o inconsciente repousa seu naipe de imagens simbólicas, e que, mesmo havendo um enigma ao se trazer ou aparecer nos sonhos, permanece como um distrito que nos comanda e nos faz depositar memórias, nacos de histórias incompletas, enfim, o que nos delineia e cria a falsa harmonia do que somos enquanto seres humanos.
As marinas de Ana Amélia evocam nosso mestre Dorian Gray. Somente por sutis resquícios de uma linha separando o firmamento, a areia e os arbustos, como se fosse um construto puramente mental. É assim que nos chegam as paisagens do mar e da água. Essa técnica também detém outro exímio parentesco estético: Goreth Caldas. De toda maneira, repete-se esse procedimento na tela “As salinas”. Há o paralelismo que já reportamos, com três planos. Apenas as colinas e algumas serras estão no esperado lugar de equidistância entre os três planos que dão forma a uma salina ausente de operários. As nuvens de um belo e puro azul ultrapassam tanto a linha do horizonte quanto as rumas de um branco já ajuntado, fixos, esplendendo o sol no aguardo da chegada dos transportes que conduzirão em direção aos processamentos. O nosso maior pintor fundou uma escola estética com as características acima enumeradas. Se não conseguiram proceder a uma separação, então podemos pensar em termos de solução de continuidade. Parece, mas não é igual. Nem Ana, nem Goreth, conduzindo essa técnica lançada ao mundo das artes como herança que é nossa e aprece em outros artistas visuais: variações em torno de um tema só. É que parece não se esgotar essa nascente estética, cujos artistas buscam nesse arroio não superar ou ser melhor, mas definir um parentesco de formas e cores. Na artista Ana Amélia ocorre um diferencial dos demais que pintam marinas. Os planos das dunas, da água e das nuvens não seguem a perspectiva acadêmica. Para se ter uma ideia, as nuvens se encontram bem mais próximas do olhar de quem mira a paisagem, quando deveriam, se fosse expressar de acordo com o desenho acadêmico, se encontrar mais distantes (Lagoa de Genipabu). Talvez o mais belo trabalho, sua Opus Magnum, seja um óleo, à guisa de natureza morta, com um violino escorado na parede do lado direito e uma garrafa de vinho com dois copos, do lado esquerdo. Ao fundo, uma janela descortina a paisagem, com o mar e o céu. Ora, esse trabalho vem para demonstrar o aprendido domínio técnico das lições da pintura acadêmica em escolas constituídas. Transpõe para a tela, com maestria e simplificação, a imagem mais obsessiva, ou seja, o ermo das paisagens e os objetos sem a presença do humano. Nesse caso, encontra-se, tão-somente implícito, denunciado pelos restos de vinho nos copos. O violino quedado em um resignado silêncio de um aguardo do proprietário. Pontuamos aqui mais um exemplo da mitologia que povoa o imaginário da artista: o cultivo de um silêncio que se orgulha como escolha, não é solidão, mas solitude buscada nos resíduos de experiências do passado, como quem se acostuma consigo mesmo e dirige-se a si na terceira pessoa, como um fármaco vindo a atenuar as cicatrizes de vicissitudes sopradas do passado, com uma proclamada amizade consigo mesmo, nunca levantando a hipótese de se abandonar, subjugando-se às doenças físicas e aos transtornos afetivos. As sombras do violino e da garrafa de vinho fazes lembrar quem deixou ao largo por um instante o cômodo ordenador de alguma forma de amar entre duas criaturas.
Quando o sol toca a linha do horizonte, hesitando em banhar-se nas águas negras da noite, encerrando de mal ou de bem mais um dia. E um dia queimado a menos para cada indivíduo em uma caminhada que mais suja as sandálias do que conserva limpos os passos. Na verdade, esse momento do crepúsculo vespertino, para os atentos aos relógios consumindo, por meio da areia das ampulhetas, sempre vigilantes, resume o triunfo cruel de Cronos, devorando com volúpia seus filhos. Os maquinismos não cessam esse exercício do qual se veste de uma autonomia impossível de se derrotar e destemido ousar parar. Impossível! Já estava tudo preparado com uma tratativa de um senciente não ter o direito de voltar atrás ou buscar caminhos outros em encruzilhadas. Inútil, pois todos os caminhos conduzem a um fim que se chama Morte. Assim sendo, faz-se necessário remarcar essa obsessão nas telas de Ana Amélia por essa plêiade de mitos relacionados com o pôr do sol. Isso mesmo, desdobrando-se em múltiplas maneiras de apesentar o ocaso como metáfora viva da jornada do indivíduo sendo devorado por Cronos (o Tempo). Uma vez que essa obra encontra-se povoada desse mito errante nos crepúsculos noturnos, vagueando pelas noites à caça de companhia, podemos pensar que é como se fossem metais fundidos em bigornas de puro ferro. Não usamos a audição para assuntar as imagens com suas cores fortes, usamos, sim, a visão, visto que o sol vem declarar o fim de mais um dia, clamando para vivermos o terceiro turno: a noite, fechando sem piedade dos elementos que um ou outro ousa o grito da revolta por não persistir no claro e no trabalho o bulício de mais um dia, com seus ruídos, automóveis, enfim, o movimento característico do que se encontra de pé e vivo. A assuada do dia é lentamente apagada, lambendo os céus da parte Oeste da terra, lugar onde furtivamente a luz natural limita-se a lentamente ir diminuindo a claridade, até que afunda em um espetáculo de vária beleza todos os dias.
Essa imagem de um sol que toca a linha do horizonte e em seguida afunda hesitante no negro da obrigatória noite foi retratada de maneira dramática no filme Drácula, de Francis Ford Coppola (1992). O filme está chegando ao fim, o vampiro, numa carruagem apressada em chegar ao castelo, rasga as sombras finais de um crepúsculo demorado. Drácula aproxima-se do seu castelo envolto em penumbra, na Transilvânia (Romênia). Os ciganos apressam os cavalos da carruagem. Assim sendo, Mina, a companheira do vampiro, sobre um alto, evoca os braços, conclamando as forças físicas que regem o movimento dos astros, em uma vã tentativa de apressar o crepúsculo vespertino. Inútil, não há o que fazer contra os relógios com seu tempo determinado. Cronos, ancho de si, nada permuta ou doa pela exata medida de minutos e segundos, apenas uma vertigem, uma alucinação pode engendrar um retardo do sol posto, deixando as cinzas de um dia dispersas pelo chão. A noite impõe sua negritude sem piedade dos seres apolíneos que amam a luz solar e seus reflexos dos contornos dos objetos com sua diversidade de cores. Falo da mitologia dos vampiros porque este é o ser que mais diz respeito aos hábitos noturnos. Ergue-se como criatura quando o sol retira sua frágua do dia, permitindo a chegada das brisas e ventos a soprar com um frescor as luzes artificiais dos lugares onde habitam as gentes. Com efeito, o ciclo do dia vai sendo dominado por leves pinceladas saídas de uma paleta que só possui cores esmaecidas ou o tormento do sol como uma fornalha em brasas a queimar as cores vivas que o dia adentra para os lados do Oeste. Bem claro que esse espetáculo cotidiano varia de acordo com o posicionamento das nuvens, da neblina ou dapaisagem edificada pelo homem, interpondo ângulos entre as últimas luzes e os impedimentos, resultado da verticalização das cidades, com seus edifícios e condomínios. Impossível não tratar aqui do deus Apolo, o sol. Logo que as primeiras luzes anunciam a alba, sabe-se do nascimento de um novo dia, de uma nova esperança, de uma nova medicina para nos redimir das enfermidades que não escolhemos, chegam sem avisos prévios, de descanso que a rotina acumula em cansaços, necessitando recompor forças para dar continuidade às atividades tantas de um dia qualquer. E quase nos impondo a obrigação de esquecer o ontem com seus intermináveis trabalhos requeridos pelos que detêm responsabilidade com a vida. E é assim que Apolo, em sua carruagem de fogo, puxada por cavalos robustos e queimando como brasas, ascendem para as bandas do Leste, proclamando o ciclo do que tem que se cumprir, quer aceitemos ou não, em uma contagem regressiva, fazendo cada indivíduo enfrentar a senda inexorável em direção ao futuro.
Por fim, e ainda dos vampiros falando, para reforçar nossa interpretação da insistência em retratar o pôr do sol nas telas de Ana Amélia. Os vampiros trocam o dia pela noite. Entre os chamados “normais”, isso é mais comum do que o que se imagina. Mormente nos tempos atuais, nos quais os indivíduos permanecem noites insones, pingando seu minério negro e líquido na ampulheta da tirania das noites em claro, sem a possibilidade de negócio de câmbio ou aceite de orações, para os que professam uma religião. Além disso, o ar do tempo apalpa os indivíduos buscando os mais frágeis e os conduzindo a um mesmo diapasão. Os que não mais conseguem viver sem a parafernália dos aparelhos eletrônicos são os mais susceptíveis em inverter esse hábito do sono que instaurou-se em nossa cultura. Procurando o quê? Cultura é que não é. Impondo sofrimento e inquietude ao não conseguir caminhar pela cadência dos dias em sua alternância de dias e noites, cuja medida os conduz em direção a um final inerente à existência.
Para encerrar, ainda vamos insistir um pouco acerca dos nossos dias com seus costumes nada saudáveis, conduzindo os indivíduos a um cotidiano nada salutar, basta ver a quantidade de psicotrópicos usados pela população, independentemente de classe social. As doenças advindas de transtornos afetivos, como a depressão, a ansiedade (TAG), os surtos psicóticos, são cada vez mais comuns. É nesse sentido que podemos afirmar as características do espírito do tempo: o triunfo do senso comum, da infantilização, do narcisismo e do pouco letramento. Sabe-se do desprezo pelos livros e do pouco fôlego em ler algo com mais de duas laudas. Uma cultura mediana com conceitos básicos ou argumentos críticos parece caminhar para a extinção. Seria estar cego ou completamente alheio ao que acontece nos nossos dias. Por isso, insistimos no grande êxito da vitória do senso comum, de que não há necessidade de, pelo menos, o lugar do sensato, para conduzir os indivíduos nos seus espaços vitais, alcançando um termo, um acordo, uma negociação, para que ambos os lados possam viver consoante o livre-arbítrio. A verdade é que não se trata de perder ou ganhar, mas de construir uma estrada onde caibam todos com seu modo de agir, pensar e ser o que se é, não precisando representar papéis. A escolha do nome: eis / o segredo (Orides Fontela).
Nenhum comentário:
Postar um comentário