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terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Especial: A subliminar semiótica de uma tela de Moura Rabello.

Por Márcio Lima Dantas.

 Todo começo é involuntário.

Fernando Pessoa



Eu me perguntei se era possível analisar e interpretar uma tela de um artista através de apenas uma pintura. Tarefa árdua e complexa, mesmo não propondo esgotar a maestria e o primor dos quadros de Moura Rabello, recorri à linguística de Ferdinand de Saussure (SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1995) e Roman Jakobson (Linguística e poética. In: JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1991) quando tratam do funcionamento de uma língua, organizando as formas de pensar por meio da metáfora ou metonímia. O certo é que nenhuma língua foge a esses dois arranjos básicos. Assim sendo, me debrucei sobre a metonímia, cujo funcionamento contempla uma relação de objetividade entre os dois objetos a serem postos lado a lado e comparados. É a parte pelo todo. Diferente da metáfora, que se compraz em grande livre-arbítrio, constituindo uma figura de linguagem na qual não há necessária relação entre o que se põe junto para se fazer compreender ou nas liberdades que a poesia proporciona por meio de suas licenças. Desse modo, a metonímia requer para seu efeito de comparação algo objetivo entre as duas partes. A saber, a parte pelo todo, o efeito pela causa, a marca pelo produto. Até o ensino médio, a metonímia é considerada, e estudada, tão-somente como uma figura de linguagem, bem como a metáfora. A diferença entre as duas é que a metáfora necessita de um elemento ou locução conjuntiva para que se efetive e o leitor deslize na semântica do texto. Acontece que, depois dos estudos de Roman Jakobson e seu amigo Lévi-Strauss, essas duas formas presentes na linguagem passaram a ser compreendidas como figuras de retórica. Ou seja, não são adornos presentes em períodos e orações, mas são o próprio funcionamento da linguagem. É possível fazer uma fusão entre a lista de figuras de linguagem dos livros escolares, restando dois básicos arranjos: metáfora e metonímia. Toda e qualquer pessoa elabora o seu discurso, sua eloquência, por meio de uma das duas, mesmo sabendo que não é possível encontrar nenhum estado puro. Fundem-se ou se encostam uma na outra, a depender da intenção que se quer passar para o interlocutor. Com efeito, isso não é tão complicado quanto parece, basta ouvir com atenção, escrever com esmero e clareza, falar pausado ou prestar atenção aos outros. Cada um com sua experiência, se mudou muito de lugares, se domina mais do que a língua onde foi socializado, se prima pela elegância no falar e no manuseio de sinônimos enriquecedores da comunicação. Enfim, se chanta naturalmente diferenças no sotaque, nos acompanhamentos de dêiticos com naturalidade. Enfim, uma elegância no falar, pleno de formas simples mais eivadas de metáforas e metonímias. Vejamos a tela de Moura Rabello que nos propomos a uma exegese estética, aos símbolos presentes e aos enigmas implícitos. O pintor Dorian Gray organizou uma retrospectiva (1970) de um dos mais importantes pintores daquela época, reputado por ser grande retratista, tendo deixado telas de pessoas do meio intelectual e político desse tempo. Nesse evento foi doada para a Pinacoteca Potiguar a tela, óleo sobre tela, “Augusto Severo e Sachê” (de 1963). Há uma coisa bastante curiosa a dizer. Essa tela foi feita a partir de uma fotografia da dupla em Paris, havia uma terceira pessoa à direita de Severo, eliminada, sendo difícil especular os motivos. A fotografia, ainda existente, retrata o dirigível Pax antes de ascender aos céus e explodir, matando os dois (1902). Creio que vale a pena apontar aqui a idade dos dois amigos, Augusto Severo (11.01.1864 – 12.05.1902) e Georges Sachê; o primeiro tinha na ocasião da tragédia 38 anos e o segundo, seu mecânico, 25 anos. Essa magnífica tela, anúncio de uma tragédia em Paris, resguarda uma série de signos a um espectador de olhar mais acurado e fruidor das obras de arte, não apenas como os passantes em vernissages de exposições. Como sabemos, mais vale o burburinho e a zoada das conversas, os comes e bebes. As telas expostas? São apenas telas. Se algum oráculo de respeito tivesse sido consultado que cores os dois amigos deveriam usar, na ascensão do dirigível Pax pouco antes do fatídico acidente, com certeza a pitonisa não hesitaria: “devem usar somente o azul e suas nuances. Nada mais pode ser dito”. Augusto Severo expressa um corpo atlético, ancho de si, confortável como representante de sua classe, de quem prima pela indumentária visando reforçar o que a natureza lhe emprestou até os 38 anos (Os deuses vendem quando dão. Compra-se a glória com a desgraça, Fernando Pessoa). Porte e elegância não lhe faltavam. Sabia muito bem como dispor as mãos: toque leve de dedos da mão direita sobre uma espécie de corrimão de madeira; a mão esquerda confortavelmente dentro do bolso da alinhada calça feita sob encomenda. Não nega que o alfaiate tirou as medidas com extremo cuidado, após fazer uma pergunta ao freguês (antigamente era assim). A perna direita cruza a esquerda, demonstrando uma nata elegância, de quem não precisou fazer caras e bocas para apresentar sua fina estampa de um homem detendo-se um tanto face ao guarda-roupa, antes de se vestir definitivamente. Diferente de Sachê, Severo mirou a máquina fotográfica, preferiu erguer a cabeça e fixar seus olhos oblíquos em algum ponto do horizonte, talvez soubesse inconscientemente qual a melhor posição para ser retratado em uma foto. Quase todo mundo sabe. Mas isso não implicou em deixar seu amigo Sachê em um qualquer desdém, respeitava demais seu mecânico para tratá-lo dessa forma. Algum incauto pode até levantar essa hipótese. Não creio eu.

Mesmo porque derreou-se para trás a partir da mão direita no bolso, acabando por engendrar uma geometria que se abre em um triângulo, com suas três linhas retas, as linhas que no imaginário remetem quase sempre ao masculino, assim como a linha curva evoca o feminino. Além disso, se olharmos com atenção podemos observar que o braço esquerdo encontra-se próximo ao braço direito de Sachê. Se marcarmos uma linha constituída de ângulos retos, é possível observar um paralelismo que segue até o ombro direito do mecânico (um homem com menos compleição física que Severo, no entanto, resguarda a mesma elegância). Ainda mais: deixou petrificado seu olhar misto de sereno e escrutinador, capaz de especular o que lhe interessava, seja de gente ou da paisagem. Inusitado é que os dois optaram por ancorar as mãos nos bolsos, como a proteger alguma espécie de segredo? Essa forma de se comportar condiz com os tímidos ou com os inseguros, não sabendo onde botar as mãos. Não parece ser o caso desses dois amigos. Uma amizade resultante do mesmo sonho: o de voar como os pássaros. Prerrogativa destes, mas não apanágio dos homens (naquela época). De toda maneira, ainda permanece no imaginário esse desejo de se evadir da realidade, de não andar pelas veredas nas quais a vida e o tempo determinam, são poucos os que escolhem seus caminhos por meio de embates com a realidade ou negociando certas cartas que conseguem rápido entender como é a gramática da existência. Mais do que mesmo esse estranho impulso os conduzia, emanado das entranhas e conduzindo a uma permanente inquietude? Isso mesmo, de fazer valer seus sonhos de asas pandas em inventos de vanguarda ainda não testados por outros? Algo me sopra que o preço pago foi alto, mas tudo que é de boa qualidade é caro. O barato sai caro. É sempre preferível pagar o preço do que queremos ou desejamos. Talvez seja bom mesmo sair da vida em um momento de êxtase, de provável triunfo, em uma tentativa de aclamação que os conduziram à História da aviação.

Vem ai o Cariri Cangaço Oeste Potiguar.

 

Patu - Martins - Lucrécia e Antônio Martins
22, 23 e 24 de Maio de 2025.




Especial: Ricardo Câncio: concelebrando o desenho e a cor.

 Por Márcio de Lima Dantas.


As folhas do calendário são leves.

Desprende-as o vento, surge uma data.

Henriqueta Lisboa



Ricardo Câncio nasceu em Mossoró (13.03.1958 – 28.08.1993), era funcionário do Tribunal de Justiça, residiu em Natal durante muito tempo, tendo retornado à terra onde nasceu, formando-se em Direito pela UERN. Produziu muito pouco, mas o suficiente para se inscrever como artista visual na sua cidade. Também deixou inéditos muitos cadernos de poesias. Nada publicou. De uma personalidade introspectiva, era reservado e discreto em tudo. Apreciava muito a casa da família em Tibau. De lá, ao que parece, veio a inspiração de pintar três belas marinas. Do que restou, há somente dois desenhos. Esboços, como se tivesse exercitando ou buscando um traço que poderia ser o seu ou não. Esse traço, tateando áreas relacionadas às coisas do espírito, o que chamamos arte ou outras atividades abstratas desvinculadas do tangível a que convencionaram realidade. Talvez ensaiasse um diferencial de outros colegas de convivência e pintores, como Varela, por exemplo. Esses dois desenhos foram esboçados de maneira incomum, não como a predominância do que sucede a um artista matar o tempo com uma procura que lhe diga respeito ou não. Sabe o que não quer, descarta, tenta outro traço, e assim por diante. São espécies de ensaios querendo comprovar para si mesmo o domínio de um desenho nem sempre fácil que é o de retratar pessoas. O autor preferiu um riscado que parece ter sido feito com uma rapidez, nas suas linhas retas e ângulos perpendiculares, encontrados em todos os três personagens masculinos. A bem da verdade, sem se demorar muito, esses poucos esboços só vêm ao encontro do que podemos confirmar em Ricardo Câncio. O segundo desenho representa um estranho homem, a saber, um enigmático retrato de um personagem com chapéu de couro de vaqueiro do Nordeste e um esquisito par óculos que esconde os olhos. Restando a boca em um sorriso contido. Os signos chapéu de couro e óculos escondendo os olhos são normalmente antípodas, resta deter questões acerca da índole desse personagem ímpar.

Ainda como parte dos desenhos deixados pelo artista, temos quatro croquis de excelente feitura. São três residências privadas e um prédio público. Podemos ver o bom gosto e a valorização de uma espécie de estilo hoje praticamente em extinção. De feição neoclássica, com sua rigorosa simetria bilateral, erguiam-se na paisagem urbana de Mossoró. Ao que parece, Ricardo Câncio sugere reter essas fachadas de beleza ímpar, com suas entradas pelo lado, permitindo a frente da casa dispor sua beleza com janelas rasgadas de duas maneiras: ou se abriam apenas em um nível acima da calçada ou ocupavam cerca de dois terços da linha onde iniciavam os elementos decorativos. Algumas janelas recebiam contornos, outras estavam ornadas de elegantes balcões, permitindo serem abertas para a rua ou também, diante do clima quente da cidade, abrirem para receber eventuais ventos frescos, sobretudo à noite, que, como se sabe, sopram os ventos marinhos emanados de Areia Branca. As platibandas eram as partes nas quais os elementos decorativos, com suas sinuosas linhas curvas, imprimiam aos adornos um requinte aristocrático, encontrando-se o manuseio das formas orgânicas (plantas, flores), lembrando um pouco o Art Nouveau. Via de regra, não se caracterizavam por serem grandes herdades, mas parece que os arquitetos se contentavam com o efeito de totalidade, emergindo um conjunto com grande individualidade; difícil era encontrar casas feitas em série. Por fim, existe um croqui da Cadeia Velha (hoje funciona o Museu Lauro da Escócia), cheia de histórias da municipalidade. Sua imponência e a grandeza de dois pisos, fazem-na, ainda hoje em dia, um lugar magnífico para se contemplar. Os adornos são muito poucos, pois foi erguida para ser algo exclusivamente funcional, diferente das outras três fachadas no qual havia o interesse, talvez, de ostentar uma distinção que só os das classes dominantes detinham, fazendo-se diferente.

Vejamos as três marinas, duas folhas com esboços, uma com três transeuntes e outra com uma figura enigmática, com chapéu de vaqueiro e óculos que veda ao espectador seu olhar. Vamos por partes. Em uma folha de papel estão representados homens caminhando, dois vistos de frente, um outro de costas. O primeiro da esquerda, visivelmente, com um saco pendurado às costas, não nega ser um homem pertencente às classes populares, o segundo, com seu talhado paletó, provavelmente pertence às classes dominantes, o terceiro é um militar. Ricardo Câncio pintou muito pouco durante sua breve vida? Depende, desde quando quantidade em arte circunscreve mérito ou valor? Leonardo da Vinci não deixou tantas telas (cerca de 15 pinturas), mas o que se encontra no Museu do Louvre (A virgem dos rochedos, São João) ou Hermitage (Madona Littia, Salvator mundi) chancela-o como um dos grandes de toda a História da Arte Ocidental. Revolucionando, no Renascimento italiano, a técnica de retratação. Não somente pelo manuseio das formas ao definir uma figura, tais como o contraste entre sombra e luz, o inusitado do sfumato, as fisionomias enigmáticas, desafiando o espectador. Essas formas de retratar foram de encontro ao que, desde sempre, estava convencionado pela aristocracia e a realeza. Retornemos às marinhas. Das três, duas representam o ânimo do litoral habitado pelo homem, em modestas condições. Percebem-se os barcos ancorados, durante um crepúsculo vespertino, lembra um pouco a técnica impressionista, quando contemplamos uma organização de signos de uma tela vista a distância. Todavia há um barco dominando a cena, cujo desenho não nega deter os traços da representação acadêmica. Há uma outra marina ausente de humanos. Procura mostrar o cotidiano de pescadores, com a pequena casa lá distante, sob coqueiros e uma luminância de um sol pleno, na sua transparência de permitir as cores demonstrar seu brilho, resplendendo sobre a cerca de pedras, as duas jangadas ancoradas na areia, as redes de pesca quarando ao vento e o mar com suas ondas. Eis o resultado de uma soma engendrando um ambiente bucólico, talvez para apascentar um eventual bulício íntimo ou externo. A paisagem tranquiliza o que se move internamente sem o nosso controle. Parece ser o que proclama um locus amoenus, uma calmaria cujo antônimo é uma vida de atropelos, cheia de grandes atividades, gerando um estresse que, depois, vem a ser enfermidades. Tenho para mim que essa bucólica paisagem nos convida a se evadir um pouco das cidades, das redes sociais, com sua tirania de apresentar uma felicidade artificial, como se fosse de plástico. Nos diz que há outros meios de atingir sossego e saúde. Aqui tudo se encontra no seu lugar, a perspectiva muito colaborou para um cunho de plácida permanência, organizando os planos horizontais. Se não conhecemos in situ, podemos fruir o que a tela nos oferece: um repouso, uma evasão do que os budistas nominam Maya, o que se aproxima do real concreto e das cobranças que o “Ar do Tempo” bafeja no rosto e na alma. Porém, há os que nada invejam, tampouco se sentem na obrigação de usar determinadas roupas ou frequentar ambientes plenos das gentes que estão em sintonia com os que não sabem direito como se portar.

O eminente artista visual Diniz Grilo, retratou com redobrado primor uma tela

com apenas uma figura central: Ricardo Câncio, com vinte e poucos anos. Há um outro

retrato de Alex Rosado, no mesmo estilo, como se quisesse ressaltar uma realeza que só pode ter com alguém que cultivamos com muito carinho, e se houver, quem sabe, o amor Philia (amizade). É o que não deixa esconder as duas telas, sobretudo a de Ricardo Câncio (a outra retrata Alex Rosado). Retratado com as vestimentas de um príncipe, alquebrado pelo seu olhar de pessoa tímida, intimista e introspectiva. Malgrado esse traço de personalidade, a timidez (é sempre complexa; Clarice Lispector se dizia tímida e ousada ao mesmo tempo), fronteiriça do intimismo, vivendo muito mais para dentro do que para fora, esse jovem não se furtou a cultivar boas amizades, principalmente no meio artístico. Prova disso é que do seu espólio ainda resta na residência da sua irmã Sra. Nicácia, três bons trabalhos do amigo Varela, é bem provável que tenha sido presente desse grande amigo.

 O resto do espólio foi doado ao acervo da Sra. Isaura Amélia, inclusive seu excelso retrato no qual predomina a cor vermelha, imprimindo ao retrato uma beleza ímpar, pois todo o fundo, bem como o gorro e a indumentária, em um grande golpe de harmonia através do monocromatismo pictórico, apenas as listras verticais de um branco acetinado sobre o vermelho.A presença inapagável de um vermelho intenso, como se quisesse dar contorno e inquirir o eventual caráter do rapaz, busca um delineamento do rosto, ao proceder um contorno do que no final das contas, todo mundo sabe, que o semblante resulta do olhar e da boca. E nos mostra um jovem rapaz cujos olhos estão eivados de uma suave melancolia. É muito provável que nenhuma outra pintura tenha captado com imensa profundidade esse contorno dos olhos e da boca, a fisionomia com tão poucos recursos, ainda mais quando se ousou manusear tão-somente uma cor, nem sempre fácil de um uso na pintura. 
Ao se desenhar dessa maneira, Diniz Grilo mergulhava nas águas aparentemente paradas de uma personalidade. Muito provável que nenhuma tela desse pintor tenha captado com imensa profundidade o semblante do nosso personagem, descendo em águas mais profundas, longe de restar na medida do primeiro impulso do contado de adentrar pelas águas. Dessa maneira, faz-se revelar uma alma plena, ao que parece, de uma vida interna rica e povoada de signos que buscavam superfícies íntimas na qual se encontraria silhuetas de símbolos remetedores ao que detivesse quietude, sossego e caráter observador. Assim sendo, eis um homem cujos contornos diziam respeito a um substrato na qual poderia colocar em cima as nuances de um homem jamais distanciado de perto da introversão com suas estradas e aceiros do ensimesmamento. Porém, tal forma de se estar no mundo, o que chamam de comportamento, não impede que se tenha uma “vida normal”. Haja vista a totalidade de boas amizades conseguidas nos lugares em que residiu, um rapaz benquisto por familiares e outras gentes. Eu penso uma coisa desse jovem rapaz retratado como se fosse um príncipe, pelo gorro e pela elegância da roupa.
Eu penso, ao me deter sobre os olhos quebrantados de melancolia, acrescido de uma boca sóbria que parece não acenar para nada, pois talvez não faça concessões em demasia à sociedade, com suas regras inventadas por quem se interessa em tirar proveito disso ou daquilo. Bem claro que ao lado da introversão, havia um homem observador, cuidando do que se movimentava a seu redor, contemplando, porém, preferia se resguardar em círculo de profundo silêncio, fazendo fronteira com uma espécie de timidez. Com efeito, houve quem dissesse do seu comportamento reservado, não era muito de conversa. Talvez seja aquele tipo e personalidade destituído de seguir o rebanho, sem refletir para onde conduz a estrada. Optara por um jeito de ser e estar, interiormente confortável. Por fim, há de exultar a presença no vergado arco das artes do Rio Grande do Norte de um pintor com alto quilate estético, como o é Diniz Grilo, provavelmente integrando um conjunto de amigos da arte e do afeto entre pessoas, das quais o pintor Ricardo Câncio integrava. Mesmo tendo produzido pouco, este deixou trabalhos confeccionados com três técnicas, capazes de atestar do que era capaz se houvesse se dedicado com maior intensidade e tempo da arte do desenho e da pintura. Fica difícil duvidar dessas capacidades habitantes do interior da sua alma.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Especial: Dione Caldas: transversais no tempo e no espaço

 Por: Márcio de Lima Dantas.

Olhos acesos sobre o mundo 
o que não dorme desconhece 
 a sua própria efígie. 

Henriqueta Lisboa 


 

Dione Caldas nasceu em Natal (15.05.1964). Por ser filha do nosso maior pintor,  Dorian Gray, desde sempre foi familiarizada com a arte na qual seu pai estava sempre  envolvido. Assim, não poderia deixar de receber influência. Conquanto essa didática  informal e a presença de telas e tapeçarias, que podem até evocar no uso das cores e de  superfícies, como o casario ou as marinas, assentou sua rubrica, conduzindo seu estilo  para uma assinatura própria, determinada a ousar sair da influência do pai. A pintora  também publicou dois livros de poesias: Cadernos de poesias (1980) e Canto vivo (1983). Mas retornemos à pintura de Dione Caldas. O fato de retratar imagens hesitando  entre o figurativo e o abstrato dificulta uma classificação do conjunto. A maior parte das  telas não se revela à primeira vista; faz-se necessário insistir no olhar, para que as figuras  ou as superfícies dela sugiram ao espectador objetos encontrados no chamado real  concreto. Mesmo assim, o caráter ilusório permanece em algumas representações. Pode  até ser que seja algo figurativo, mas a luz, a linha curva, a linha reta com seus ângulos,  ora se apresentam como um compósito da realidade, ora são pura abstração que remete a  referentes não passíveis de serem encontrados na realidade. Apesar disso, nos concerne fazer uma leitura a levar em conta múltiplos aspectos  presentes ou implícitos nos quadros, pois estamos interpretando uma artista visual que  fez opção por dar um tratamento que nos evoca o livro de Cecília Meireles: Ou isto ou  aquilo. Porém, se estamos ungidos com o caráter didático de uma primeva interpretação,  não invalida que se façam inúmeras outras. Figurativo ou abstrato. Muito bem, há de efetivar uma separação de basicamente duas vertentes no  manuseio dos ângulos retos ou curvos. Bifurca-se em duas maneiras de expressão.  Além disso, lidou com significantes que remetem à azáfama de movimentos citadinos, tais como os viadutos vistos de cima e entrecruzando-se, emergindo as silhuetas  de automóveis em pressa. Provavelmente, para a pintora, os trabalhos bandeiam-se para  o abstrato, remetendo ao espectador a liberdade de categorizar, consoante sua subjetividade reconhece as composições como fruto de uma intimidade de contemplar o  mundo ou sua experiência de vida, assim como se fosse uma familiaridade com objetos  que permeiam sua realidade. Para além do que afirmamos, penso que o papel do crítico é perscrutar uma  eventual classificação e posterior interpretação, levando em conta que o mesmo também faz parte do agrupamento de pessoas face às telas, estando subordinado aos mesmos  critérios ou arbítrio das demais pessoas. 

Vejamos como fizemos, tendo em vista a técnica usada pela pintora: cânhamo  sobre madeira e acrílica. Em um primeiro arranjo, predominam os casarios com uma  verticalidade paralela, procedidas de colunas separando planos nos quais repousam o que  parecem ser fachadas de casas, inclusive com janelas e, no fundo, um céu azul com  nuvens dispersas em pontos brancos. Há a possibilidade de se fazer uma leitura  nominando as telas como abstratas; todavia, optamos pelo figurativismo, fazendo as  devidas ressalvas quando necessário. O conluio entre as linhas curvas (os telhados, as nuvens, os viadutos, as  transversas das passarelas, a curva por trás de árvores, gerando uma superfície que sugere  a luz do sol e as águas evocando lagoas ou mesmo o mar) e as linhas retas (colunas  paralelas aparecem como troncos de árvores ou simplesmente marrons para causar um  efeito inusitado de esquadrinhamento dos componentes da tela, fachadas de casas,  retângulos amarelos caminhando em cima de uma autopista). Alguém pode muito bem contemplar com naturalidade e apenas permanecer ancho  de si, diante dos referentes plenos de uma grande diversidade do que está acostumado no  seu dia a dia. Prefiro efetuar minha leitura dessa linguagem pictórica, distribuindo  indulgências a outros pontos de vista. Pois muito bem, encontramos inúmeras apresentações de um casario modesto,  seguindo as linhas verticais que riscam a tela em todo o seu comprimento ou largura. Nem  tudo na vida é igual; assim podem ser o contorno de um telhado que não segue a queda  de duas águas, como durante muito tempo fora o padrão, presentes na cultura e no imaginário, consagrando-se como figuras geométricas retangulares, só que em um lado  percebe-se uma linha curva, e não reta, como era de se esperar na elaboração de um  telhado. Acontece que aparentes colunas verticais buscam o sopé da tela, como se fosse  um reflexo. Seria querer muito apontar essas representações como de um abstracionismo  puro. Todos os signos presentes são familiares e adotados desde a infância no  inconsciente, confluindo para edificar uma paisagem que, mesmo detendo algumas partes  estilizadas, não largam o caráter de objeto identificado no entorno do mundo de cada um,  bem como conformador de um casario ou autopistas entrecruzando-se, em uma imitação  de viadutos e passarelas, simulando o trânsito com sua grande atividade e atropelo. Mesmo um conjunto de linhas curvas ressaltadas, cuja mirada fora de cima para  baixo, ainda assim aparecem as linhas verticais. Não é que se veja, imaginação de uma  subjetividade, ponto de vista de qualquer coisa desse tipo, mas é o que um olho arguto  pode atestar. Com efeito, é certo que algumas telas nas quais encontramos apenas um ensaio de  um grande geometrismo abstrato ou calcado nas figuras mais comuns da geometria nos  conduzindo a buscar na realidade tangível o seu equivalente, seja por aparência ou  funcionalidade. De qualquer maneira, não são todas as telas que se abrem em muitas  possibilidades, engendrando o duvidoso/ambíguo, bifurcando-se entre o geometrismo e o  figurativismo. Contudo, fica difícil generalizar e considerar todo o conjunto como  bandeando suas organizações de signos a serem classificados como vacilantes entre as  duas formas de expressar os elementos presentes no que chamam de “real concreto”.  Algumas remetem à realidade palpável, não requer grande esforço para identificar ou  mesmo desenvolver rapidamente uma empatia, no sentido de que está diante do resguardo  como signo dentro de si, a evocar experiências ou passagens em alguma fase da vida. 

Tenho para mim que não habita o incerto, o duvidoso em muitas telas. Podemos  arrolar alguns exemplos. Visivelmente figurativa é a tela que retrata o bando de Lampião,  representado por três cangaceiros a cavalo, indo em direção à cidade de Mossoró para  invadi-la (13.06.1927). O fato histórico recebe uma leitura extremamente original, visto  que o senso comum das artes visuais sempre retrata o mito de Lampião de frente, numa  busca de ressaltar a fúria ou a estética da indumentária do bandoleiro. Com efeito, mesmo aqui prevalece o apreço da convivência da linha curva e da  linha reta, dispostas em uma legítima harmonia. É uma obra causadora de espanto por deter uma profunda voltagem estética. Há um visível crescendo no contraste das cores,  buscando a representação de homens na paisagem (de cima para baixo). A primeira cor é  o ocre, puxado a marrom; em seguida vem o verde, a representar a vegetação da zona  rural; temos o branco dando conta da igreja e de um ralo casario; finalmente, o azul, com  algumas superfícies brancas, à guisa de nuvens. O fato de encontrar uma retratação de um fato histórico eivado de mito e de  discursos do senso comum, ritualizado todos os anos em grande palco de teatro, pleno de  caricaturas e de um pitoresco tedioso, enfatizando os feitos da classe dominante, face ao  maior conjunto de bandoleiros de todos os tempos, na região Nordeste. Bem claro a  gramática do mito para se manter pulsante e em evidência no imaginário: necessidade de  ser repetido, pode ser nos discursos feitos (versões da morte de Jararaca) ou no teatro e  nas artes visuais (aqui é onde mais se encontram retratos e versões dos cangaceiros,  beirando o pressentido e de uma enorme banalização). 

Vejamos as tapeçarias. A tapeçaria foi criada para exercer um papel utilitário, com  o objetivo de revestir paredes, tecidos ou poltronas, contudo, com o tempo, acabou vindo  a ser uma obra de arte, adquirindo um papel sofisticado nas paredes dos palácios. Com  sua beleza e variedade, ao possibilitar a expressão de fatos históricos ou retratos de reis,  desponta como arte decorativa.  Ora, a prática da tecelagem é milenar, havendo tradições na China e mesmo no  Novo Mundo, como o Peru. Porém, é na França que atinge o seu auge como objeto de  luxo, devido ao incentivo da realeza; no reinado de Luís XIV, atinge o seu fastígio,  inclusive recebendo apoio do estado, como, por exemplo, na Manufatura de Gobelins. Podemos especular o motivo dessa passagem de ser algo puramente funcional,  encontrada no cotidiano desde a Idade Média, passando ao seu apogeu, já como obra de  arte decorativa relacionada ao luxo das residências de reis e da aristocracia. O fato de ser  uma confecção artesanal de grande beleza imaginativa, provavelmente tecida como  unidade e não fabricada em série, imprime uma singularidade distinta, outorgando à  família real ou à aristocracia o orgulho de ter ou ser retratado em uma obra de arte. 

Acima, uma pequena digressão, apenas para situar no contexto as tapeçarias de  Dione Caldas. É bem provável que as tapeçarias sejam onde mais se sente a presença do  eminente Dorian Gray. Não é tarefa árdua contemplar os vistosos recortes de uma maior  paisagem implícita nos limites do que se encontra à vista. Ainda assim, permanece o  dúbio a proclamar o duvidoso, porém a retratação exala-se como detendo o relevo da  paisagem separando terra, mar e céu ou terra, água, colinas verdejantes e céu. Tanto no manuseio das cores quanto na geometria definidora de barcos e um  casario modesto, porém pleno de uma beleza na qual o espectador talvez compreenda há  outras formas de viver. Não existem apenas condomínios verticais em prédios, nos quais se habita de maneira isolada, e a solidão é um exercício a ser domado, em uma íntima  atribulação, haja vista o modus vivendi de uma sociedade cuja forma de vida se restringe  às redes sociais e suas rumas de fotografias com caras e bocas, configurando uma  felicidade artificial que só um tolo acredita que é de verdade. A imagem padrão é um  largo sorriso concebido tão-somente para a foto e uma taça de bebida ou drink, intentando  passar a imagem de que a linha da vida é constituída de altos e baixos. Por fim, gostaríamos de apontar a maneira como a pintora faz uso da cor e do  ritmo provocado pelas colunas verticais, esquadrinhando superfícies, do azul das águas,  das folhagens verdes, simulando um bosque onde pouco a luz chega, do casario  revisitado, com pequenos retângulos, sugerindo janelas, dos viadutos sobrepondo  autoestradas, com seus carros diminutos, das passarelas entrecortando, enfim, de tudo o  que pode se mover ou ser inerte. Todos esses elementos concorrem para organizar um  inesperado efeito de beleza e um tanto de originalidade. Quem sabe, esse efeito estético mana do riscado com contornos de figuras  geométricas, tais como quadrados justapostos, retângulos encostados em outros,  trapézios, semicírculos (luna) recobrindo casarios, triângulos. Essa presença do rigor da  figura geométrica aliada ao uso da tinta com maestria e exímio cuidado, proporciona uma  representação que se caracteriza por uma singularidade, no sentido de que difere de muito  da dicção de outros artistas visuais. Carimbando sua assinatura estética por meio de  inúmeras figuras geométricas e das cores, como se tivesse planejado com uma urdidura  consciente do que está sendo representado (“apresentar de novo”). É bom lembrar que essa fusão requer estudo com capricho e compreensão da  lógica subjacente às tintas, com suas possibilidades e esmerado uso de contrastes,  originando um ritmo que não apenas lança seus vetores para o efeito estético, mas também  lança questões ao espectador, fazendo-o inquirir em qual chão se encontra: figurativo?  abstrato? Por aqui, podemos deixar de lado, nosso interesse diz respeito à gramática e à sintaxe presente nas telas, como se organiza um conjunto de linhas curvas ou retas, a  demonstrar a complexidade do real, seja o da introspecção, seja o das banalidades a que  estamos acostumados a conviver e dar umas suas soluções: íntimas ou coletivas. Parece  que a arte de qualidade nos ajuda a decodificar certas amplitudes do humano. Se não em  sua totalidade, mas encontrando respostas para alguns flancos. Creio já ser suficiente. à  alma que consente / no maior silêncio (Henriqueta Lisboa). Se não há contentamento ou harmonia interna, ou aceitação, ou se sempre se  autossabota, ou ainda como quer o poeta português do século XVI, Sá de Miranda: pois  que trago a mim comigo. / tamanho imigo de mim? (Obras completas, 1960). Esse  fenômeno da não amizade consigo mesmo é bem mais frequente do que se pensa, e em  se considerando uma sociedade na qual os indivíduos se relacionam de maneira on-line,  por textos digitais e inúmeras fotografias, tudo vem a ser um faz de conta, um grande narcisismo e uma infantilização que causa espanto. Com efeito, em todos a poética de Dione Caldas, em suas nas telas, parece chamar  atenção acerca desse fenômeno da condição humana diante do sopro do nosso Espírito do  Tempo. Bem claro que só não compreende quem não quer viver os dias e suas horas  perante o ar do tempo, sem a mínima reflexão. A dualidade presente nas curvas ou nos  ângulos retos, na ambiguidade de formas antípodas, ou no ritmo impregnado de  ambivalência. Contudo, o que se encontra nas telas conclama a decidirmos o que  queremos. Pode ser figurativo ou abstrato, quer dizer, a subjetividade transfere para as  formas e seus ritmos de cores o que vigora no ser. A coragem impulsiona a tomarmos  partidos, quem há de?

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Especial: Ilkes Rosenir: a sintaxe curva de um abstrato

Por: Márcio de Lima Dantas.

Sem a loucura que é o homem 

 Mais que a besta sadia, 

Cadáver adiado que procria? 

Fernando Pessoa 

Nascido em Belém (1979), vive desde os cinco anos em Parnamirim, atuando no  ramo da propaganda e publicidade. Com relação à sua obra artística, é autodidata.  Sabemos o quanto o Abstracionismo, enquanto movimento e estilo artístico, surgido no  início do século XX, contribuiu para a evolução das formas nas artes visuais (não em  quantidade, mas em qualidade), consolidando não apenas o uso de linhas, cores e o que  podemos chamar de superfícies, na imensa planície onde frutifica a arte, em uma  permanente transmutação, de acordo com o ar do tempo. O Abstracionismo, antípoda à concepção de existir em uma pintura ou desenho a  temática ou uma imitação de algum objeto da realidade, chegou para incorporar nas  formas de pensar a arte. E em pensando a arte, levava consigo, é claro! O que sucedia em  um século povoado de diversas revoluções. O que fora ser ou estar foram destronados,  sem que para isso houvesse sido anuladas as maneiras de representar. Ocorreu, sim, uma  simultaneidade que abraçou o Figurativo e o Abstrato, lembrando que as formas de  manuseio com cores e linhas fossem mais de acordo com o espírito da época. 

Com efeito, o Abstracionismo, deixando ausente da tela sobretudo a figura  humana, empreendeu um avanço que fez olhos e ouvidos do início do século XX a  compreender a existência de outras formas de pensar, agir e se comportar socialmente. A  verdade é que tivemos de atestar e aceitar a convivência das duas correntes.  Simultaneamente despontavam em todos os países e lugares o que veio a se tornar dois  paradigmas na planície das artes visuais. Lugar amplo onde se convive tudo que detém  qualidade, mas também o que vem e faz um sucesso rápido, não conseguindo inscrever  seu nome na História das Artes.  Essa corrente que se compraz no manuseio de planos, cores e linhas, negando-se a representar a chamada realidade concreta, exalta a subjetividade, haja vista que convida  aquele que frui a arte a dizer uma outra nomenclatura que não as tantas correntes vinculadas ao figurativismo a que costumamos chamar de academicismo: a busca de  representar temas, objetos do mundo ou um retratíssimo, quer seja mais realista ou não. Consabido é o quanto o Abstracionismo deixou o seu legado, abrindo novos  caminhos capazes de deixar passar o que já era familiar e o que se instaura como novo, e  resulta do surgimento de uma paisagem contemporânea eivada de edifícios, autoestradas,  anonimato, muita coisa que desponta, mas os dicionários não contêm os nomes. Só para  se ter uma ideia de como isso funciona, podemos evocar a maneira como se erguia uma  residência com inúmeros paradigmas justapostos: portas, janelas, escadarias, fachadas  com decorações diversas, porém não perdia a noção de que aquilo era uma casa de  morada. Hoje não se repete mais isso. Predomina o estilo minimalista, com suas vidraças,  plantas, madeiras, rampas para os automóveis. Enfim, são linhas retas em diversos  ângulos, formando uma espécie de caixa. 

Seria interessante discorrer e estabelecer mais alguma coisa do social. Com o  avanço tecnológico, muitos elementos foram postos de lado, até mesmo a maneira de educar uma criança esgarçou o seu tecido, em que havia o ensinar a entrar e sair, usando  suas palavras mágicas (com licença, muito obrigado, desculpe). 

Tenho para mim que o século XX veio com disposição a jogar a pá de cal sobre o  que já vinha se deteriorando. É possível falar do apagamento da memória, o culto à  escolaridade e uma etiqueta básica, adentrando pelo lado mais fácil de caminhar,  chegando em uma encruzilhada e, sem hesitar, escolher o pior caminho, inclusive, sem  volta. Agora é sair pisando no cascalho. Talvez buscando o que é exceção, não a regra. Nos nossos dias predomina um narcisismo exacerbado, não mais buscando o outro  com o amor Philia ou o amor Eros. O que importa sou eu cultuando meu corpo, pelas ruas  e pelas academias. Sempre com uma garrafinha de água (isso não é uma metáfora da  mamadeira?). Muitos filósofos do nosso tempo apontam como um dos principais traços  a infantilização generalizada, grassando por todas as classes sociais, exaltando a  ignorância. Com efeito, prevalecem na vasta planície da arte, em um relevo no qual  predominam toda a espécie do que nossa cultura nominou arte, do Renascimento até os  dias de hoje. Falamos assim porque é possível mapear e compreender os objetos de arte,  habitando o mesmo lugar, desde o hiper-realismo, o academicismo ou aparentados, até  uma profusão de artistas lidando com o abstrato por meio de suas nuances. Quero dizer uma coisa: o nosso tempo não permite ou torna difícil caracterizar em um arranjo  homogêneo que se pode proclamar: Isso é a arte predominante do século XX e início do  XXI, visto atestarmos fronteiras e sobreposições de estilos, até mesmo sem limites entre  o que é pintura, escultura, desenho e as artes digitais. Contudo, nos últimos tempos, ocorreu uma vulgarização do que chamam abstrato.  Podemos falar mesmo em um fenômeno, mas não vem a ser caudatário da vanguarda do  início do século XX, conduzindo os críticos mais rigorosos a contemplar com um tanto  de cepticismo, pois grande parte do conjunto dos artistas visuais filia-se, com uma certa  naturalidade, às elaborações que a nada remetem ou procuram imitar o que nós chamamos  realidade. 

Não é o caso de Ilkes Rosenir, cuja obra foi desde sempre pautada pela exímia  qualidade, mantendo o mesmo espírito nas tantas séries que concebeu, não se repetindo  ou alterando bruscamente o que parece ser fruto de elaborado trabalho, em uma sempre  paciência, pois não é de pintar em grande quantidade. Podemos separar algumas séries e  comentar um pouco essas sinuosas linhas, cujo objetivo parece ser a circunscrição de  superfícies nas quais algumas serão preenchidas com cores diversas, outras permanecerão  com o papel em suas linhas retas, permanecendo retângulos ou quadrados. O que chama a atenção nesse artista é uma displicência, no sentido de  simplicidade, que o faz conduzir por aparentes meios o ondulado das linhas e separando  por fronteiras de cores. Os primeiros trabalhos foram muito originais. Pegava uma caixa  comum de papelão e pintava no verso (dentro da caixa), esse procedimento proporcionou  não só se destacar como detentor de uma originalidade, como também fez uso de uma  reciclagem, vindo a ser um trabalho elegante e sem o excesso de informações. O desenho  com esferográfica e com lápis de cor na superfície das caixas manuseava o mínimo de  intervenções sobre o papelão, causando ume feito de empatia com o espectador. A pouco e pouco o artista foi mudando apenas o suporte, permanecendo com seu  vocabulário mínimo, justapondo por frases estéticas reveladoras de uma grande maestria.  Tanto é que não vimos nada igual nas Artes Visuais do Rio Grande do Norte. Sua obsessão pela linha curva predomina em todas as suas fases. Algumas mais coloridas, cujo predomínio é do vermelho, contrastando com uma profusão de nuances;  em outras predominam o verde, em contrastes de vermelho e branco. Mas de tudo isso, nesse enlinhado de cores, superfícies brancas, há uma  sobriedade e não uma inquietude, como era de se esperar. Existe um ethos tranquilo,  predominando a sinuosidade (muitas curvas, muitas voltas e reviravoltas), que, ao longo  da História das Artes no Ocidente, via de regra, era manuseada para imprimir o ondulado,  com suas espirais, como foi o caso do Barroco, conclamando o indivíduo a observar como  seria o espaço celeste, de chamada, adesão e busca de salvar a alma.  Os instrumentos usados são quase sempre a caneta esferográfica, o lápis de cor e  a colagem. Por meio de recursos tão parcos e por demais conhecidos desde sempre, o  artista consegue lograr êxito na sua empreitada de atingir um efeito gráfico simples e de  muita beleza. Acreditamos que o que de melhor o artista fez é a série mais despojada de  tudo o que já arrolamos. Organiza-se sobre papel branco linhas curvas com hachuras (espaço em branco), circundado por linhas muito delicadas, no qual predomina, nos  poucos espaços em branco, a cor vermelha ou azul. Através de tanto retirar as massas  maiores pintadas de várias cores, restou apenas um grande espaço em branco, que ergue  suas linhas em busca do alto, em uma verticalidade quebrada apenas por algumas  pequenas superfícies nas quais aparecem o azul ou o vermelho. Tudo isso conseguido  com tinta nanquim sobre papel canson. O simples é muito difícil em arte. 

Há dois trabalhos de grande criatividade. São duas peças completamente negras,  recortadas em linhas curvas no Eucatex. É como se o artista tivesse saturado, chegado a  um limite com suas antigas séries plenas de cores e superfícies. Assim como se fosse,  apenas para efeito didático, o branco no branco, do russo Kazimir Malevich. Aqui, no  caso, é preto sobre preto, negando a retratação do mundo natural, em que pululam objetos,  flores, composições arbitrárias, pessoas em atividade ou paradas. Cabe o quê, a quem  contempla, essas duas formas negras no seu permanente silêncio e indiferença? Com efeito, estanques em qualquer lugar que se coloque, induz a compreender  como uma charada ou enigma. O problema é que valem por si e não por relação a uma  outra coisa, fora dos seus limites de um serpentear ondulando como o que ascende e  depois desce. Enfim, não há enigma, não há muito o que refletir, não há quase o que dizer,  apenas quedadas em uma parede ou canto da sala, em um silêncio pouco ou nada  evocando. Ao que parece, é assim como em algumas situações nas quais rogamos para  nos deixar em paz, para nos deixar em busca de um sono profundo, para que o negro  venha a ser Morpheu (sonho), no interior de Hypnos (sono), em um descanso repousante, pois logo virá outro dia, deixando pingar suas horas dos relógios que não se fadigam em  trabalhar. Por fim, Ilkes Rosenir detém uma série extremamente interessante, puxando uma  linha de um carretel que havia ficado no início do século XX, falo do Readymade de  Marcel Duchamp (1887-1968), elevando à categoria de arte objetos presentes no  cotidiano, muito olhados, mas pouco vistos. E se enxergados nas feiras livres ou pequenas  lojas, são apenas pequenos fogões à lenha, não mais do que produzidos em série e  direcionados para o uso. O nosso pintor escolheu esses fogões para retirar dos seus lugares  de venda e colocar em uma galeria de arte. Podendo também ser postos em museus, ambos  são lugares sagrados para exposições do que insistimos em proclamar um objeto como  obra de arte. Desnecessário dizer que estamos tratando dos Readymade do artista norte-rio grandense, intitulado Ipso facto: Ecce homo! (I, II, III). Como procedeu? Trabalho  apresentado no Salão da Capitania das Artes (Prefeitura do Natal). Apenas com simples  gesto de adquirir um pequeno fogão de alumínio (ferro e zinco), pintado com tinta esmalte  sintética. Os fogareiros contêm duas bocas, uma estrutura exclusivamente funcional,  dedicados a um público modesto, ou seja, os que não possuem fogão a gás. Apenas pintou  de vermelho os dois lados, algumas partes de branco (por onde se coloca a lenha) e uns  contornos ou detalhes de azul.  Esses pequenos fogões vendidos nas feiras populares, adquiridos tão-somente por  pessoas mais humildes, funcionam somente à lenha. Ao serem retirados do seu contexto,  vêm a ser uma outra coisa. São objetos de uma banalidade tamanha que são pouco  olhados, mas quase que não vistos. O ato de retirar o pequeno fogão da sua função, que é cozinhar diariamente as  refeições, quer dizer, do seu objetivo prático e utilitário, imprime uma inusitada  significância, questionando o que é mesmo arte e seus procedimentos, haja vista que  desde sempre fomos habituados a compreender arte como uma coisa relacionada ao  singular, individual, algo sem par. O que ressalta como procedimento é a artesania com  sua aura de uma unidade apenas.  O ReadyMade vai de encontro à concepção de uma arte cuja satisfação maior é  deter sua singularidade. Assim, essa forma convencionada como arte se pergunta se o que  é produzido em série também não se constitui um distrito o qual podemos nominar de  arte. Mais parece um discurso intrigando a quem se posta à frente desse fogão pintado  com cores contrastantes e vivas, salientando as superfícies e linhas de uma coisa  elaborada para ser utilitária. 

Daremos o nome aos fogões, para o leitor ter ideia da consciência que o artista  Ilkes Rosenir detém sobre esses trabalhos, fazendo saber do que se trata e a que linha  temporal remete esses experimentos, sendo agora integrantes da História das Artes. Os  fogões podem ser classificados a partir do seu tamanho e pelo fato de possuírem uma ou  duas bocas. Com o título geral de Ipso Facto: ecce homo! (Pelo próprio fato: eis o  homem). Temos quatro fogões com uma só boca, linhas simples com toda a estrutura  remetendo ao funcional, não existindo adereços ou algo que está fora do ato de sua  serventia no cotidiano, que é cozinhar. Sendo assim, há o predomínio da cor verde em dois, fazendo se destacar e se  diferenciar dos outros dois que manuseia a cor vermelha. Permanecem iguais. Os que têm  duas bocas são apenas o acréscimo para quando do ato de cozinhar, agilizar com maior  rapidez, possibilitando o uso de dois fogos à lenha. Consabido é que o Readymader só se efetiva de verdade quando se desloca de  lugar, para que cause a desejada estranheza e o reconhecimento como obra de arte, aquilo  que foi feito com uma funcionalidade outra. Esses fogões foram expostos em um Salão  de arte promovido pela Capitania das Artes (funciona como Secretaria de Cultura da  cidade do Natal), comprovando desse modo o que Marcel Duchamp requeria e praticava:  apenas o simples ato de transferir um objeto produzido em série e com vistas ao  utilitarismo, – das feiras livres aos salões de exposição –, sucede no olhar de quem está familiarizado com as artes um fenômeno que, se não domina essas intervenções artísticas,  pelo menos eleva-se uma série de interrogações abarcando o que já se instituiu na  categoria arte ou ainda hesita a chancela incluidora de pertencer a uma qualquer linha de  continuidade nas pradarias onde germinam simultaneamente diversas espécies de formas  estéticas. Não podemos esquecer a data da inauguração dessa estranha arte, que foi o Urinol,  de Marcel Duchamp, com o título de Fonte (1917). E também dizer que esse “pronto feito” mais do que ser, busca parecer, instaurando no seio da arte, antípoda dos  manufaturados, não uma recusa imediata daquele banal, ousando chegar aos salões e museus, misturando-se com artistas já com seu nome consolidado. No final das contas, o  que interessa é esse chamado pleno de dúvidas a que o espectador é conclamado a  imprimir uma resposta no seu íntimo, quanto mais aberta e indulgente for a alma do  indivíduo, mais apto está de situar em algum lugar da memória essa estranha forma que  se encontra fora do que já é reconhecido como arte. 

Ainda podemos acrescentar alguns movimentos ou formas de arte influenciados pelos implícitos discursos que se encontram no Readymade. Podemos citar o Poema  Processo, cuja qualidade e quantidade dos seus trabalhos fizeram lançar suas buscas para  muitos países de mentalidade mais aberta. Talvez o Rio Grande do Norte seja o lugar do  Brasil onde mais se produziram trabalhos que ficam difíceis de nominar como poemas,  na medida em que se mesclam o analógico e o digital. Há de buscar categorias da  Semiótica para um entendimento mínimo das obras de um Falves Silva, um J. Medeiros  e um Avelino Araújo, dentre outros mais. Todos dotados de distintas escrituras, com  extraordinária criatividade, vindos a ser fora do comum em uma tipicidade particular. Não  só isso, mas um tento e um tino do que estavam plasmando em suas obras plenas de  superfícies, linhas de todo o jeito e maneira, colagens e um ingresso do que não se poderia  anteriormente chamar de arte. É mister lembrar o que acontece nos dias de hoje, em que há espaço para todo e  qualquer movimento ou o já consolidado, e tem seu espaço de atuação garantidos,  permitindo o surgimento de uma combinação de um ou vários procedimentos. Eis que  podemos citar apenas alguns: grafitagem, videoarte, minimalismo, arte eletrônica,  passando pelas facetas do abstracionismo e do hiper-realismo, jamais esquecendo a arte  digital, obtidas por meio de programas de computares (esta se abre em um amplo leque  de possibilidades, podendo se trabalhar com a mescla do manual ou ficando restrito às  máquinas e suas viabilidades, em fusões extremamente belas, quando junta a mão e as  teclas). 

O certo é que diante de tamanha diversidade, há de buscar parâmetros de  discernimentos em uma intricada área na qual convivem métodos e procedimentos  geradores de efeitos (como a textura, a ausência do desenho, o feitio da perspectiva ou  não, o uso da tinta com suas inúmeras possibilidades). Quer dizer, muitas vezes mais  confundindo que ajudando a compreender. Esse momento de discernir, para os mais exigentes ou mesmo por deter a linha periodológica-cronológica nas contas do seu saber,  impõe uma mirada no passado, tateando-o para ver se encontra algo que se afine ou  detenha parecença com a arte do nosso tempo. Fizemos apenas um recorte, nunca  pretendemos dar conta do bulício da arte contemporânea.

Cariri Cangaço Oeste Potiguar

 

22 a 24 de Maio de 2025
Patu - Martins - Lucrécia - Antônio Martins

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Especial: Ana Amélia: um eterno sol que insiste em permanecer no crepúsculo

 Por Márcio de Lima Dantas.

A vida conta a vida:  

a estéril crueldade  

da luz que se consome  

desintegrando a essência 

inutilmente. 


Orides Fontela 

 

Ana Amélia (Natal, 1947), professora aposentada da UFRN, foi iniciada no  mundo das artes quando terminou o antigo científico no Colégio das Neves. Estudou na  Escola de Artes do Recife (na Madalena). Teve aulas de desenhos de observação de bustos  de gesso e depois com pessoas. Também estudou História da Arte, pintura e modelagem.  Chegou a iniciar o curso de Arquitetura. Seu trabalho circunscreve um amplo arco, indo da acrílica à aquarela e ao óleo,  conseguindo manusear com propriedade os pincéis. Podemos fazer alguns comentários  sobre o que tive acesso. Vejamos as aquarelas. Faremos um recorte didático, retendo  apenas quatro. Ainda assim, cremos que dão conta do seu manuseio com essa técnica não  muito fácil de figurar no papel, através de rápidas pinceladas. Temos duas aquarelas marinas, com cores não muito comuns de encontrar. O céu é de um lilás suave e  transparente, provocando uma rápida empatia com o apreciador da tela. Em seguida, há uma aquarela cujo título é “Serra branca, nas proximidades do  Açu”. Há um contraste ameno entre planos opostos. Ao fundo, serras e colinas delineiam  uma barreira geográfica, fazendo saltar o casario visto por meio dos telhados, já que a  vegetação oblitera o resto de cada casa. Finalmente, “Rio Potengi”, com as águas serpenteando seu espelho líquido, descansando entre casas e barrancos. Há uma tela abstrata, com linhas azuis e vermelhas, nervosas, delineando planos,  com o verde e o laranja. Esse manuseio compreendendo a justaposição de fortes cores  nada evoca da chamada realidade. Acontece por sim, em seu abstracionismo  expressionista. Ao que parece, emana de uma ordem procedente de regiões abissais do  ser, onde o inconsciente repousa seu naipe de imagens simbólicas, e que, mesmo havendo  um enigma ao se trazer ou aparecer nos sonhos, permanece como um distrito que nos comanda e nos faz depositar memórias, nacos de histórias incompletas, enfim, o que nos  delineia e cria a falsa harmonia do que somos enquanto seres humanos. 

As marinas de Ana Amélia evocam nosso mestre Dorian Gray. Somente por sutis  resquícios de uma linha separando o firmamento, a areia e os arbustos, como se fosse um  construto puramente mental. É assim que nos chegam as paisagens do mar e da água. Essa  técnica também detém outro exímio parentesco estético: Goreth Caldas. De toda maneira,  repete-se esse procedimento na tela “As salinas”. Há o paralelismo que já reportamos,  com três planos. Apenas as colinas e algumas serras estão no esperado lugar de equidistância entre os três planos que dão forma a uma salina ausente de operários.  As nuvens de um belo e puro azul ultrapassam tanto a linha do horizonte quanto as rumas de um branco já ajuntado, fixos, esplendendo o sol no aguardo da chegada dos  transportes que conduzirão em direção aos processamentos. O nosso maior pintor fundou uma escola estética com as características acima  enumeradas. Se não conseguiram proceder a uma separação, então podemos pensar em  termos de solução de continuidade. Parece, mas não é igual. Nem Ana, nem Goreth,  conduzindo essa técnica lançada ao mundo das artes como herança que é nossa e aprece em outros artistas visuais: variações em torno de um tema só. É que parece não se esgotar  essa nascente estética, cujos artistas buscam nesse arroio não superar ou ser melhor, mas  definir um parentesco de formas e cores. Na artista Ana Amélia ocorre um diferencial dos demais que pintam marinas. Os  planos das dunas, da água e das nuvens não seguem a perspectiva acadêmica. Para se ter  uma ideia, as nuvens se encontram bem mais próximas do olhar de quem mira a paisagem,  quando deveriam, se fosse expressar de acordo com o desenho acadêmico, se encontrar  mais distantes (Lagoa de Genipabu). Talvez o mais belo trabalho, sua Opus Magnum, seja um óleo, à guisa de natureza morta, com um violino escorado na parede do lado direito e uma garrafa de vinho com  dois copos, do lado esquerdo. Ao fundo, uma janela descortina a paisagem, com o mar e  o céu. Ora, esse trabalho vem para demonstrar o aprendido domínio técnico das lições da  pintura acadêmica em escolas constituídas. Transpõe para a tela, com maestria e simplificação, a imagem mais obsessiva, ou seja, o ermo das paisagens e os objetos sem  a presença do humano. Nesse caso, encontra-se, tão-somente implícito, denunciado pelos restos de vinho  nos copos. O violino quedado em um resignado silêncio de um aguardo do proprietário.  Pontuamos aqui mais um exemplo da mitologia que povoa o imaginário da artista: o  cultivo de um silêncio que se orgulha como escolha, não é solidão, mas solitude buscada  nos resíduos de experiências do passado, como quem se acostuma consigo mesmo e  dirige-se a si na terceira pessoa, como um fármaco vindo a atenuar as cicatrizes de  vicissitudes sopradas do passado, com uma proclamada amizade consigo mesmo, nunca  levantando a hipótese de se abandonar, subjugando-se às doenças físicas e aos transtornos  afetivos. As sombras do violino e da garrafa de vinho fazes lembrar quem deixou ao largo  por um instante o cômodo ordenador de alguma forma de amar entre duas criaturas. 

Quando o sol toca a linha do horizonte, hesitando em banhar-se nas águas negras  da noite, encerrando de mal ou de bem mais um dia. E um dia queimado a menos para  cada indivíduo em uma caminhada que mais suja as sandálias do que conserva limpos os  passos. Na verdade, esse momento do crepúsculo vespertino, para os atentos aos relógios  consumindo, por meio da areia das ampulhetas, sempre vigilantes, resume o triunfo cruel  de Cronos, devorando com volúpia seus filhos. Os maquinismos não cessam esse  exercício do qual se veste de uma autonomia impossível de se derrotar e destemido ousar  parar. Impossível! Já estava tudo preparado com uma tratativa de um senciente não ter o  direito de voltar atrás ou buscar caminhos outros em encruzilhadas. Inútil, pois todos os  caminhos conduzem a um fim que se chama Morte. Assim sendo, faz-se necessário remarcar essa obsessão nas telas de Ana Amélia  por essa plêiade de mitos relacionados com o pôr do sol. Isso mesmo, desdobrando-se em  múltiplas maneiras de apesentar o ocaso como metáfora viva da jornada do indivíduo sendo devorado por Cronos (o Tempo). Uma vez que essa obra encontra-se povoada desse mito errante nos crepúsculos  noturnos, vagueando pelas noites à caça de companhia, podemos pensar que é como se  fossem metais fundidos em bigornas de puro ferro. Não usamos a audição para assuntar as imagens com suas cores fortes, usamos, sim, a visão, visto que o sol vem declarar o  fim de mais um dia, clamando para vivermos o terceiro turno: a noite, fechando sem  piedade dos elementos que um ou outro ousa o grito da revolta por não persistir no claro  e no trabalho o bulício de mais um dia, com seus ruídos, automóveis, enfim, o movimento  característico do que se encontra de pé e vivo. A assuada do dia é lentamente apagada, lambendo os céus da parte Oeste da terra,  lugar onde furtivamente a luz natural limita-se a lentamente ir diminuindo a claridade, até que afunda em um espetáculo de vária beleza todos os dias. 

Essa imagem de um sol que toca a linha do horizonte e em seguida afunda  hesitante no negro da obrigatória noite foi retratada de maneira dramática no filme  Drácula, de Francis Ford Coppola (1992). O filme está chegando ao fim, o vampiro, numa  carruagem apressada em chegar ao castelo, rasga as sombras finais de um crepúsculo  demorado. Drácula aproxima-se do seu castelo envolto em penumbra, na Transilvânia  (Romênia). Os ciganos apressam os cavalos da carruagem. Assim sendo, Mina, a companheira do vampiro, sobre um alto, evoca os braços,  conclamando as forças físicas que regem o movimento dos astros, em uma vã tentativa  de apressar o crepúsculo vespertino. Inútil, não há o que fazer contra os relógios com seu  tempo determinado. Cronos, ancho de si, nada permuta ou doa pela exata medida de  minutos e segundos, apenas uma vertigem, uma alucinação pode engendrar um retardo  do sol posto, deixando as cinzas de um dia dispersas pelo chão. A noite impõe sua  negritude sem piedade dos seres apolíneos que amam a luz solar e seus reflexos dos  contornos dos objetos com sua diversidade de cores. Falo da mitologia dos vampiros porque este é o ser que mais diz respeito aos  hábitos noturnos. Ergue-se como criatura quando o sol retira sua frágua do dia, permitindo  a chegada das brisas e ventos a soprar com um frescor as luzes artificiais dos lugares onde  habitam as gentes. Com efeito, o ciclo do dia vai sendo dominado por leves pinceladas saídas de uma  paleta que só possui cores esmaecidas ou o tormento do sol como uma fornalha em brasas  a queimar as cores vivas que o dia adentra para os lados do Oeste. Bem claro que esse  espetáculo cotidiano varia de acordo com o posicionamento das nuvens, da neblina ou dapaisagem edificada pelo homem, interpondo ângulos entre as últimas luzes e os  impedimentos, resultado da verticalização das cidades, com seus edifícios e condomínios. Impossível não tratar aqui do deus Apolo, o sol. Logo que as primeiras luzes  anunciam a alba, sabe-se do nascimento de um novo dia, de uma nova esperança, de uma  nova medicina para nos redimir das enfermidades que não escolhemos, chegam sem  avisos prévios, de descanso que a rotina acumula em cansaços, necessitando recompor  forças para dar continuidade às atividades tantas de um dia qualquer. E quase nos  impondo a obrigação de esquecer o ontem com seus intermináveis trabalhos requeridos  pelos que detêm responsabilidade com a vida. E é assim que Apolo, em sua carruagem de fogo, puxada por cavalos robustos e  queimando como brasas, ascendem para as bandas do Leste, proclamando o ciclo do que  tem que se cumprir, quer aceitemos ou não, em uma contagem regressiva, fazendo cada  indivíduo enfrentar a senda inexorável em direção ao futuro. 

Por fim, e ainda dos vampiros falando, para reforçar nossa interpretação da  insistência em retratar o pôr do sol nas telas de Ana Amélia. Os vampiros trocam o dia  pela noite. Entre os chamados “normais”, isso é mais comum do que o que se imagina.  Mormente nos tempos atuais, nos quais os indivíduos permanecem noites insones,  pingando seu minério negro e líquido na ampulheta da tirania das noites em claro, sem a  possibilidade de negócio de câmbio ou aceite de orações, para os que professam uma  religião. Além disso, o ar do tempo apalpa os indivíduos buscando os mais frágeis e os  conduzindo a um mesmo diapasão. Os que não mais conseguem viver sem a parafernália  dos aparelhos eletrônicos são os mais susceptíveis em inverter esse hábito do sono que  instaurou-se em nossa cultura. Procurando o quê? Cultura é que não é. Impondo sofrimento e inquietude ao não conseguir caminhar pela cadência dos dias em sua  alternância de dias e noites, cuja medida os conduz em direção a um final inerente à  existência.  

Para encerrar, ainda vamos insistir um pouco acerca dos nossos dias com seus  costumes nada saudáveis, conduzindo os indivíduos a um cotidiano nada salutar, basta  ver a quantidade de psicotrópicos usados pela população, independentemente de classe  social. As doenças advindas de transtornos afetivos, como a depressão, a ansiedade  (TAG), os surtos psicóticos, são cada vez mais comuns. É nesse sentido que podemos afirmar as características do espírito do tempo: o  triunfo do senso comum, da infantilização, do narcisismo e do pouco letramento. Sabe-se  do desprezo pelos livros e do pouco fôlego em ler algo com mais de duas laudas. Uma  cultura mediana com conceitos básicos ou argumentos críticos parece caminhar para a  extinção.  Seria estar cego ou completamente alheio ao que acontece nos nossos dias. Por  isso, insistimos no grande êxito da vitória do senso comum, de que não há necessidade  de, pelo menos, o lugar do sensato, para conduzir os indivíduos nos seus espaços vitais,  alcançando um termo, um acordo, uma negociação, para que ambos os lados possam viver  consoante o livre-arbítrio. A verdade é que não se trata de perder ou ganhar, mas de construir uma estrada  onde caibam todos com seu modo de agir, pensar e ser o que se é, não precisando  representar papéis. A escolha do nome: eis / o segredo (Orides Fontela).