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terça-feira, 11 de março de 2025

Especial: Azol: caligrafias de narrativas ancestrais

 

Habita o tempo, não o espaço. 

Inconsútil é sua túnica, 

não de ouro ou púrpura tecida: 

de matéria mais simples. 

Henriqueta Lisboa 



Azol (Natal, 25.11.1964) tem formação em Cinema e Artes gráficas nos EUA.  Reside em São Paulo há mais de 30 anos. Trabalha quase sempre com acrílica sobre tela  ou papel Hahnemühle Photorag 308g. De temperamento inquieto, não se conforma em  trabalhar tão-somente com pintura. O desassossego na arte sempre vigora em pessoas  dotadas de domínio técnico e consciência reflexiva do que está sendo organizado, como  uma nova série ou o esquecimento momentâneo do que podemos chamar dicção (permanecer a vida inteira com o mesmo estilo); porém, Azol faz do seu trabalho uma  espécie de laboratório no qual muitos modos de plasmar as expressões artísticas vêm à  luz, tais como: colagem, videoarte, fotografia e escultura É bom lembrar que ele trabalha sempre com séries, conformadoras de narrativas  implícitas ou explícitas. Mesmo as telas não perdendo sua autonomia de um trabalho à parte, valendo por si, somente ao justapor o conjunto de trabalhos em sua singularidade, é que nos chega a totalidade de uma narrativa. Essa maneira de elaborar seus trabalhos,  com forte consciência do que retrata, — sabe muito bem o que está fazendo, outorga à sua  obra em processo uma preciosa fonte de conhecimento. Quero dizer de duas formas de acesso ao real, ou seja, a arte como conhecimento  de um evento histórico, algo exterior, e também como maneira de acesso às regiões mais  abissais do humano. Sendo assim, a arte vale como forma de conhecimento tanto quanto  o mito, a ciência, a religião. É o que sucede acontecer nessas obsessões de temas que o  artista visual Azol cinge seu trabalho em um movimento de abrir e fechar ciclos, ou seja,  cada série narra uma temática. Para um leitor/espectador com mais agudeza e penetração  de vista, dificilmente deixará passar determinados conteúdos. Em alguns casos, se for  pertencente à região Nordeste, seu talento compreenderá a série como narrativas  tradicionais dessa região. Mas não é só isso. Chanta sua atividade em forças atávicas que permanecem no  imaginário ou no inconsciente coletivo, adormecidas pelo trotar ansioso e ligeiro de  Cronos. Nada deixando de pé, transmudando o espírito de época com rapidez e impondo  seu jugo em novas formas de ser e de se comportar. O melhor exemplo é nossa época.  Em poucas décadas tudo foi mudado, não apenas o comportamento humano, mas a  própria natureza não ficou impune. É bom lembrar, como já disse, que cada série compõe uma narrativa, não importa  se apresentada através de fragmentos, ou seja, há que reter um olhar bastante observador  para circunscrever a totalidade de um relato pertencente a um acontecimento ou discorrer  determinada sequência de eventos, que tenham sucedido ou sejam uma narrativa  mitológica. A narrativa contém esses elementos, nem sempre todos: quem sou, onde  estou, o que quero, o que me impede. 

Embora adormecida no esquecimento das gerações contemporâneas, vale por  dizer respeito à História de um lugar ou país. Se tudo foi esquecido, não importa, não  compete ao artista defender por meio da arte engajada. Queda-se em continuar edificando  sua arte, em completa ausência da realidade, criando a partir do que se gesta ou lateja nos  meandros de sua psiqué, exorcizando por meio da criação uma ou outra epifania que se  mostra ou que se sente. No caso de Azol, é de deliberada consciência, uma espécie de  matemática interior, que só a ele pertence, configurando suas obras por meio de um saber  o que está fazendo. (Vejamos como os antigos gregos representavam a Narrativa. As nove musas  inspiravam a criação artística ou científica. A musa Clio, “a que faz famoso”, “proclamadora”, era a musa da História, da criatividade e da eloquência. Calíope, musa  da poesia épica).  No que diz respeito a Azol, por organizar cada série de maneira monotemática,  narrando uma História submetida à proteção e inspiração da musa Clio, sendo que a  narrativa, qualquer uma que houver, será submetida às linguagens do seu íntimo, manada em ritmos interiores que buscam plasmar-se em arte. De outra parte, a musa Clio também  jorra seus fluidos, na medida em que é responsável pela retórica ou eloquência. Uma série  busca narrar da melhor maneira uma História, por meio do dom da retórica, da eloquência.  No caso da poesia, é apenas um poema de cunho narrativo (Camões, Os Lusíadas).  Por fim, é bom dizer da importância desse modo de se expressar, sabendo como  se organiza determinada narrativa, com sua forma de ser, através de um feitio abstrato ou  um modo figurativo. Em algumas séries as formas estão dispostas de maneira fragmentada, todavia, há que se deter com mais atenção, para que as partes venham a ser  segmentos de um corpo, conduzindo o leitor/espectador a estabelecer um desenho que se  encontra em retalhos ou partes de um todo, como se fosse um quebra-cabeça. Então, eis  uma figura retratada, como parte de uma história, de uma narrativa. 



Sagrado 

Embora tenha associado o sagrado à uma Instituição, a Igreja Católica com seus  santos e oragos, creio que sucedeu (talvez), por conta das possibilidades de retratar os  ícones com suas indumentárias ornamentadas e seu caráter hierático, evocando muito  mais a forma de representar das igrejas ortodoxas. Mesmo sabendo da decadência do rito católico, atualmente pleno de polêmicas e  escândalos, pouco nos importa, visto que nada agrega ou acrescenta à nossa hermenêutica.  O que nos interessa é o referente e sua metodologia até chegar finalmente em uma nova  configuração, em um novo feitio, em uma expressão singular, em uma nova aparência. Enfim, o que chega para conviver com seus pares detentores também de  configurações inusitadas e plenas de um caráter estético. Acrescentando novas  concepções ao que já detém mais de 2000 mil anos, e parece arfar de cansaço. Bom  lembrar a importância do que se refere aos novos meios ou logrando êxito a partir de  como se elaborou determinadas imagens ditas sagradas, explicitando sua diferença com  o outro. Essa justaposição de artistas visuais, em um convívio estético, lança seus vetores  ao que difere das maneiras como a Igreja Católica fez parecer os santos com seus  atributos. Penso que essa série nominada Sagrado está muito mais exercitando um convívio  primário com seu antípoda, o Profano. Esse sentido de profano destitui o sagrado, pondo  no lugar, para efeito didático, o Mito, que no nosso tempo, confluiu para livros de  literatura (Ilíada, Odisseia), cinema (Troia), pintura (afrescos nos túmulos do antigo  Egito). Em síntese, para serem interpretados e compreendidos como certos povos  exerciam seus princípios organizacionais, buscando a maneira como sentiam ou agiam,  bem como o funcionamento do intelecto. Desse modo, o mito integra a história de todos  os povos. É aqui que eu queria chegar: O Mito não desapareceu (“O mito é o nada que é  tudo” – Fernando Pessoa), mas integra o Imaginário, tendo sido sobreposto pelas crenças e objetos ditos sagrados. Desse modo, o Sagrado ocupa o lugar dos deuses antigos e suas  narrativas (Egito, Grécia, Roma). O Ar do Tempo altera as formas de convivência e  substitui por outras maneiras de representar e sentir. O que fora Mito um dia, não faz mais  sentido, passando a integrar o substrato da civilização ocidental. Antes de mais nada, algumas determinadas ações, mesmo involuntárias, mas não  destituídas de um sentido assemelhado aos costumes de outrora, como se fosse um rio  subterrâneo, valendo em muitos aspectos, em outros não, pois Cronos devora tudo, e  desintegra os anos e as décadas, emergindo um novo Espírito da Época, com diferentes  modos de ser ou estar. Isso é tangível, basta ser um bom observador. Vejamos, o nosso  tempo é uma fronteira de passagem, haja vista a maneira como ocupamos o tempo, como  nos relacionamos uns com os outros, como nos vestimos ou como ocorre o dinamismo  sensitivo de representar, ou os discursos distribuídos pela mídia e as redes sociais,  determinando valores bastante questionáveis. A série Sagrado, de Azol caracteriza-se pela franca originalidade em retratar  santos devocionais da Igreja Católica. Via de regra, a figura em evidência recebe um  tratamento de uma moldura, visto estar no centro, embora quase nenhum santo detenha  seu respectivo atributo, como acontece sempre (uma palma, por exemplo), para a  necessária identificação por parte de quem se persigna em uma atitude de fé. Despontam  rosas ou ramagens, coroas ou resplendores, como se fossem muito mais para adornar ou  elencar um jogo de cores, conformando belos contrastes. Quase todos os retratados detêm uma espécie de moldura ou parede como pano  de fundo, muito mais para causar um efeito pictórico, elaborando um jogo de cores com  os mantos ou auréolas que circundam as cabeças. No geral, há poucos elementos cênicos,  talvez seja justo aí de onde emana a beleza plástica, quero dizer, é resultado de um  minimalismo de cores e elementos contrastantes. Consabido é da dificuldade em conseguir extrair beleza pictórica de objeto de arte, falo no sentido de que o simples vem  a ser algo muito complexo. Voltemos ao mito. (Assim a lenda se escorre. / A entrar na realidade / e a fecundá la decorre. Fernando Pessoa). Observem que o poeta português fez uma inversão no que  estamos acostumados a raciocinar, pensar ou relatar uma história. Não é a realidade  (História) que adentra pelo discurso mítico, mas é a lenda que suporta o discurso ou  eventos acontecidos, escorrendo para o campo do mito. Sendo assim, podemos  compreender que o Sagrado não é uma verdade eterna; é uma duração de acordo com o  tempo de sobrevivência de povos que fizeram durar seu modus vivendi. Haja vista a organização mitológica do antigo Egito com sua trindade (Osíris, Isis e Hórus). Ora, a  Igreja Católica detém sua trindade (o Pai, o filho e o Espirito Santo). Isso nos conduz a  refletir sobre todo um ritual e sua pompa da Igreja Católica, com toda uma herança dos rituais da Roma antiga.  Mudemos o registro, vamos à estética. Azol pintou uma série de santos  pertencentes à Igreja Católica. Quase todos recebem um tratamento de uma moldura, visto  encontrar-se no centro, em uma simetria bilateral. Há uma Nossa Senhora, reconhecida  pelas duas cores da indumentária, o branco e o azul (coincidentemente eram as cores de  Vênus), rodeada por um vermelho sarapintado de manchas negras. Com efeito, há uma forte evocação do Barroco, empregando seu ethos ornamental,  visto que na retratação não existe nenhum elemento funcional ou utilitário. O que pode  haver de mais belo na paleta de cores? O contraste entre um vermelho escuro e um verde bandeira, nem sempre fácil de justapor e registrar beleza. Mesmo se formos aos ícones da  Igreja Ortodoxa, para cotejar, fica difícil encontrar, pois esta se firma sobre um hieratismo  resplendendo o dourado. Azol nega o neoplatonismo da inspiração; filia-se, como todo homem sensato, no  campo aristotélico. Suas séries são fruto de uma metodologia previamente estudada; assim, emprega seus conhecimentos adquiridos com mestres ou escolas. Bom lembrar do antropólogo francês Gilbert Durand, no seu livro As estruturas  antropológicas do imaginário, no qual também referenda a natureza do mito como uma  invariante do Imaginário. Quer dizer, com essa assertiva, a importância e a vitalidade da  comarca do mito. Ou seja, o mito talvez seja a causa primeira que encontra-se presente  na dinâmica da gramática de uma determinada sociedade, incluindo nas formas de sentir  e raciocinar. É suficiente perceber o quanto nosso tempo ancorou uma nova forma de  pensar e agir. Muito mais está havendo uma mutação civilizacional (Marilena Chauí).



O sertão virou mar  

Essa série tem uma história bastante inusitada, visto ter sido inspirada a partir da  contemplação do artista quando de uma visita ao Castelo de Zé dos Montes, localizado  no município de Sítio de Novo, no agreste do Rio Grande do Norte. No meio da  vegetação, sob um lajedo, ergue-se um castelo com fortes resquícios da arquitetura  tradicional bizantina e árabe, bem como da tradição gótica, que por muito tempo predominou nas igrejas dos sertões adentro (DANTAS, Márcio de Lima. A persistência  das formas góticas na arquitetura religiosa do sertão do Rio Grande do Norte. Revista  Barbante, Natal, ano IV, n. 15, p.72-78, 2015). É curioso como um militar aposentado, sem maiores contatos com nenhum castelo, apenas talvez, por meio de fotografias, inventa de erguer um castelo perto da sede  do município, alegando uma solicitação de personagens da Igreja Católica. Creio que só  pode haver uma tentativa de explicar: ungido de forças interiores, com a simbólica do que  chamam sagrado, funcionou como um assinalado, não muito diferente do que sucede com  os artistas ou os cientistas. Acredito que seja melhor utilizar a noção de Inconsciente Coletivo (Carl Gustav  Jung), na medida em que o construtor, provavelmente, não teve contato com símbolos  relacionados a castelos, sobretudo quando constatamos a presença de uma simbólica com  grande parte dos cômodos voltados verticalmente para o alto (obeliscos, zimbórios), mas  também serve para ambas as explicações, haja vista que todo e qualquer humano possui  essa comarca em suas interiores regiões pelágicas. Ora, todas as culturas possuem os  mesmos mitos, as mesmas respostas às demandas da natureza, a mesma relação com a  agricultura e o pastoreio (período Neolítico), as mesmas práticas religiosas, as mesmas  maneiras de estratificação social. Enfim, por que Zé dos Montes não poderia ser um  selecionado para erguer determinado edifício da arquitetura? Maria do Santíssimo não  tinha a menor consciência do que estava fazendo ao pintar seus galos e ramagens com  flores nos seus desenhos em anilina. Vejamos como o castelo de Zé dos Montes se organiza. Basicamente foi edificado  em cimento com chapisco e o branco da cal para fazer o contraste das coberturas. Dotado  apenas de duas cores, encontradas nas casas de gente modesta, não deixou de erguer uma  construção eivada de mistério e beleza. Encontramos duas formas básicas: pequenos  nichos retangulares, como se fossem guaritas e essas mesmas formas cilíndricas, todas  com cúpulas no cume.  Nesses pequenos nichos retangulares ou cilíndricos de cimento à vista, coroados  por pequenas cúpulas de pura cal, existem pequenas aberturas simulando arabescos. Essas  pequenas construções estão dispostas em patamares, níveis que ascendem para o alto,  como se fossem socalcos ou curvas de níveis, elevando-se em direção ao firmamento, até  que enfim chegar ao último patamar, nos quais todos são brancos, como se desejasse ressaltar o coroamento do castelo. Também erguem-se para o alto uma série de pequenos  obeliscos brancos, evocando fortemente o estilo gótico, no qual todo e qualquer elemento conflui para o alto. Desse modo, obtém-se um efeito estético de beleza e simplicidade,  manuseando poucos elementos, tanto nas cores, quanto no conjunto de formas  geométricas. Vejamos a mímesis de Azol quando do seu contato com o castelo e suas maneiras  de contemplar o todo e depois as partes. Ora, mímesis não constitui a tão-somente a  retratação de uma coisa pertencente à realidade, do jeito que ela se encontra, como se  fosse uma fotografia em pose tradicional. A mímesis é a transfiguração por meio de um  olhar, ou seja, é necessário que seja submetida ao nosso íntimo (Aristóteles, Poética), à  guisa de um filtro, retendo do objeto externo aquilo que é uma necessidade do sujeito que  constrói a arte. Com efeito, faz-se necessário que um mesmo seja outro, sem deixar de  ser ele. O importante é o fato de o objeto de arte ter passado pelas entranhas de um sujeito,  extraindo o que projeta do objeto contemplado, acrescentando à realidade mais um  elemento, quase sempre digno de ser visto, fruído e despertador de encanto. Azol deliberou transpor para a tela ou o papel a dimensão não funcional do castelo  em seu ordenamento, optando por selecionar, assim como Zé dos Montes, uma paleta  limitada de cores. Desse modo, a rarefação das cores, e mesmo assim, indecisas, como,  por exemplo, o vermelho justaposto ao ocre, ao amarelo. Há também o branco e o preto  e algumas das suas nuances. Vejamos como interpretar as construções quando transformadas em arte. Sem uso  da perspectiva, apresenta uma série de desenhos ogivais e outros arcos, sobrepondo como  se fossem simulacros de habitações, porém nada a ver com utilitários, mas com o objetivo  de presentificar estilizações de partes do edifício. Essa preferência de escolher determinada arrumação do próprio castelo, já fora  encontrada em Zé dos Montes: não é para habitar. Segundo ele, teria sido uma ordem de  Na. Senhora, mas para simplesmente estar, quedado no meio do mundo, soerguendo algo  que muito diz do que se passava no interior desse militar aposentado, como se fosse uma  potência capaz de revitalizar seu espírito, à medida que acrescentava mais uma guarita,  mais uma ogiva, mais uma torre. Algumas telas, se não tivéssemos conhecimento do Castelo de Sítio Novo, poderiam serem nominadas como abstracionismo geométrico, mesmo que algumas são  francamente figurativas. Essa ambivalência nos conduz a apreciar ainda mais essas  pinturas, reivindicando no nosso imo uma maior energia de inquirir o que se encontra de  enigma e questões levantadas durante nosso passeio pelos corredores de uma exposição. Ainda assim, há todo um elenco de triângulos, mormente na cor vermelho-ocre, justapostos nas ogivas detentoras de outros matizes, contrastando com o preto e o branco.  Até parece que Azol andou cortando em fatias o corpo todo do castelo em corte  transversal. Ou seja, uma tela forjada da geometria que aprece à sua frente, como  característica particular, engendrando um trabalho minucioso e de ordenamento singular. Essa espécie de recorte não apenas causa esse fenômeno do artista ser ímpar, mas  também imprime um número diferente do dele, havendo dificuldade em distinguir.  Embora não suceda em todas as obras da série, algumas são francamente remetedoras  para o desenho do arcabouço do castelo, no seu ordenamento de ogivas com cúpulas  brancas, guaritas com portas e janelas abertas vazadas, pequenas pirâmides elevando-se  para o firmamento. Ora, essa disposição de todos os elementos verticais erguerem-se paulatinamente  em direção ao cume, no qual se encontra uma construção totalmente branca, coroando o  castelo, evoca os elementos presentes na arquitetura gótica, estilo histórico que floresceu  na Idade Média e ainda persiste por todo o Nordeste na arquitetura religiosa. Azol  inspirou-se não em retratar ipisis litteris a singular estrutura do castelo, mas como sucede  acontecer, quase sempre, fazendo valer as partes visando evocar o todo. Dois arcos, via de regra simétricos, elevando-se para se encontrar em um  cruzamento na parte superior. Essas formas arquitetônicas são originadas da arquitetura  bizantina, arquitetura árabe; migrando para o Ocidente, onde veio a atingir seu fastígio na  arte gótica, nas catedrais e mesmo em tudo o que dissesse respeito ao que se verticalizava  em um inconfundível estilo de época do medievo. O que podemos contemplar nas telas é uma justaposição de pequenas guaritas ou  torres cilíndricas, uma espécie de miniaturas de zimbório em formas ogivais. Sobrepostas  em cores fortes e luminosas, com aberturas que sugerem janelas ou portas (creio que  podemos apontar essa “figura de linguagem”, a Metonímia, como o manuseio da parte  pelo todo, só para exemplificar). Essa estrutura integra todas as línguas, vindo a ser o eixo  Sintagmático, é um eixo horizontal que se organiza pela relação entre os vocábulos que  podem ser combinados para formar frases ou enunciados. Já o eixo Paradigmático é onde  se faz a seleção das escolhas, é o eixo vertical, como se houvesse n possibilidades para  compor uma oração, por exemplo, seria o lugar no qual se encontram os elementos  passíveis de serem substituídos, sem que se perca o sentido. Trazendo aqui para nossa  leitura, os paradigmas seriam os elementos selecionados pelo construtor: arcos ogivais, guaritas, pirâmides, aberturas nos nichos. Já o eixo sintagmático é a forma, a gramática,  a sintaxe de como ele arrumou os elementos, configurando o todo esplendendo sob o sol). José Antônio Bento (1932-2020) Serra da Tapuia, Sítio Novo. Agreste do Rio Grande do Norte Segundo Zé dos Montes, a primeira visão de Na Sra, ocorreu quando tinha oito anos. 



Estética do cangaço 

O que, em um primeiro momento, parece excesso de informações, não passa de  uma maneira de inscrever elementos referentes à indumentária do cangaceiro, tornando  um entrecruzamento de desenhos, linhas coloridas. Compete ao espectador, aqui nessa  série, diante de um fato estético, conduzir uma leitura portadora da história da região  Nordeste, plena de atavismos referentes à constituição do que ainda subsiste na região  mais antiga do Brasil. Quero dizer de uma subsistência na simbólica do Imaginário. O  que resistiu impregnado nos meandros do íntimo, sem termos consciência, vindo à tona  desde que a vida em sociedade demande nos seus costumes ou nas formas de representar. Falo do Ar do Tempo, do que predomina nos hábitos de determinada sociedade, e que confere ao termo uma naturalidade, emergindo em discursos, na imprensa, nas redes  sociais, para determinadas hierarquias sociais acomodarem seu jugo e mando. A bem da  verdade, isso se chama Ideologia, como devemos nos comportar, como devemos ser,  como devemos referendar as necessidades dos que mandam. Por isso referi ao termo  naturalidade, quis dizer que tudo é construído socialmente, tudo são convenções, hábitos,  maneiras de representar, como agir ou pensar. Desse modo, não podemos esquecer desses fragmentos de uma narrativa histórica,  fazendo parte do que nos concerne como agrupamento social, dizendo-nos de uma  pertença com sua natural memória.  Conquanto isso posto, é salutar sairmos de um regionalismo, para não repetir os  discursos e as obras que têm o Nordeste como referente. O que interessa muito mais é  especularmos acerca da universalidade da obra do artista Azol. Para além desse ponto  geográfico, há de observar sua singularidade e o seu condão, permitindo ser vista e  apreciada em qualquer lugar, país, cidade. Reconhecendo o seu valor como notável artista, capaz de, a partir de um evento histórico, com tempo e espaço determinado,  elevar-se a um registro de uma obra de arte universal, resultando em empatia diante de  qualquer um, em qualquer lugar, desde que se permita fruir o estético presente em uma  tela ou em uma sua série. A principal razão de compreender e nomear a obra de Azol como universal, diz  respeito ao fato de como transita em várias mídias da estética, fazendo prevalecer um  talento único manifestado em um domínio detentor de uma gramática estética  incomparável. Logo que aportamos diante de uma sua série, nosso íntimo diz que estamos  diante de algo não familiar, por mais que frequentemos vernissages ou ateliês de artistas.  O talento é único e quase não nos permite cotejar com o que conhecemos, algo bastante  diferente do que ocorre na arte contemporânea. Outra coisa a lembrar, diante de um bando de artistas plásticos que se comprazem  em repetir o mito do cangaço e do cangaceiro, cujo par Lampião e Maria Bonita é o ícone  maior, repetindo a mesmice em suas telas, com o senso comum referendando esse  discurso primevo e fantasioso. Azol chega e circunscreve esse evento por meio de  metonímias, para, ao final, deter em suas mãos uma bela metáfora (caracteriza-se por não  haver necessidade nenhuma de grau de pertencimento ao se proceder a comparação.  Paradigma é o eixo da seleção. Metonímia é o eixo da combinação). O livre-arbítrio da  nossa imaginação organiza a linguagem visando tornar o discurso com criatividade e  poesia. Apesar disso, a inventividade foi conquistada através de um recurso expressivo  multifário e heterogêneo. Nem por isso o conjunto dessa série plena de elementos  multifacetados deixou de ser harmônica. A Estética do Cangaço detém um fazer no qual  uma suprema mescla não fez perder a rara beleza de uma obra de arte destoante quando  se trata de uma temática geral apresentada em quase tudo o que tange ao tema. Raro é encontrar um artista visual manuseando esse tema sem escorregar na  caricatura ou apenas ressaltando o que há de pitoresco, lançando formas tediosas à  posteridade. Azol ousou apostar na diferença, mantendo tão-somente hiatos, para um eventual  espectador inquirir o que se vela tendo em vista elementos díspares. Se atento, há de  conferir uma integralidade, esquadrinhando o manuseio da luz, uma invariante dessa  série. Lembrando a transparência da luz na maior parte do Nordeste, fazendo com que o  casario, as águas, as reses, a vegetação e os inúmeros perfis de cangaceiros se mostrem em plenitude, com suas veras cores límpidas, derramando-se sem a interferência ou filtro  do que quer que seja. O de ter organizado as telas por meio de faltas, lacunas, com alteridade, no sentido  de que nada é completo em se tratando do fenômeno do cangaço, mas apresenta partes  independentes, mesmo tendo consciência de que a presença dos hiatos vem a ser na  totalidade um endereçamento referente a um evento histórico ocorrido no início do século  XX, deixando um rastro que foi ao encontro de um substrato presente no Imaginário da  região Nordeste, lugar onde se resolviam as querelas através de vingança por morte. Havia também os vaqueiros com suas indumentárias de couro (gibão) e uma religiosidade  popular, bastante híbrida e que nem sempre seguia os preceitos da Igreja Católica. 



Faz-se necessário um olhar mais demorado e perscrutador para conseguir extrair  elementos que se encontram justapostos, tais como pequenas rosáceas, mandalas, cruzes  em série, o fuzil, o mandacaru, o xique-xique, revólveres e cruzes. Essas invariantes  podem aparecer em uma tela ou não, o que vale é sua simbólica, quando as telas são  revisitadas, detendo-se com vagar para extrair uma compreensão tendo em vista a  totalidade. São poucas as figuras riscadas de corpo inteiro, predominam os rostos de perfil,  sobressaltando os olhos, como se estivessem atentos a algo que fugisse do controle. Esse  comportamento, nas andanças pela caatinga, era o geral, nunca a exceção. Também  podemos encontrar chapéus de couro com estrelas de Salomão ou estrelas de Davi e mandalas. Tal presença desses signos tinha como função proteger o cangaceiro de  vicissitudes ou de surpresas na errância do meio do mato. São signos cabalísticos de valor  universal. É possível encontrar em todas as religiões esses símbolos, quer seja na  arquitetura ou nos seus rituais, quer seja como parte dos adornos que um indivíduo sempre  está apegado, por razões de fé ou tradições familiares.  Essas presenças distribuídas ao longo do corpo, na verdade, funcionam como  metáforas que dizem respeito a uma característica do cangaço: suas indumentárias ou  adereços, elaborados durante o descanso nos coitos. Os homens também costuravam,  sendo a arte de cerzir ou bordar, atributo de ambos os sexos. Assim sendo, o pintor retirou  talhes dos objetos ou imprimiu uma miniatura, confluindo para uma estética inerente aos  bandoleiros que diferenciavam-se dos lavradores ou dos trajes das gentes citadinas. Proteger-se através de divindades representadas por adornos era mais do que necessário, para quem levava uma vida hostil e errante. Ora, é muito curioso, como esses bandos  errantes de homens e mulheres se autorrepresentavam: era um meio de vida como outro  qualquer. Quero falar da obrigação de haver um domínio sobre o corpo, na medida em que  hesitar ou ser indeciso poderia conduzir à morte. A agilidade no tomar decisões era  imprescindível, fazendo-se deter sempre com a razão somada com a intuição, o  conhecimento dos inimigos, lançando para fora de si a insegurança, a incerteza e a  fortaleza de espírito, como componentes da razão e da capacidade de conhecer por meio  de pressentimentos os coiteiros, as volantes, os lavradores. Mister se fazia deter uma relação intrínseca com a caatinga e suas possibilidades  oraculares, conduzindo o cangaceiro a selecionar muito ligeiro a vereda certa por onde  deveria caminhar, quando do confronto com as volantes. Tanto é que não havia grande  número de baixas do lado dos bandoleiros, somente no confronto final (houve delação de  onde se encontravam), na Grota de Angico, quando da morte de Lampião, ocorre a  chacina de onze mortos, inclusive o fim de Maria Bonita. Voltemos a Azol e sua sintaxe pictórica capaz de ousar cingir uma expressão  eivada de múltiplas nuances e suas luzes, capaz de ordenar uma pintura cuja luz pode vir  dos lados, de trás ou mesmo da figura em relevo. A paleta de cores não deixou nada de  fora, toda ela é luxo só, devido à maestria do pintor com seu conhecimento “científico”,  afinal estudou nos EUA, tendo como mestre o pintor e gravador Serge Fingermann. Sua  obra se inscreve como antípoda à monotonia, reinventando suas séries a partir de viagens  que faz. De outra parte, presentifica e reitera os símbolos das gentes de determinados  lugares, alimentando por meio da imagem e seus signos, nacos de uma constelação  fulgente, fazendo o pintor como mais um indivíduo antenado com imagens que emergem  do seu interior.  Essa prodigalidade de luzes e cores vem ao encontro do locus onde sucede o  fenômeno do cangaço. Andavam pelas veredas ou mesmo fazendo o caminho em uma  vegetação inóspita ou espinhos de plantas cujo atravessar precisava deter uma coragem  sempre presente. Quero dizer que a luz saída das telas tem como referente um causticante sol com  seu calor e mormaço encontrados na Caatinga, mormente ao adentrar o sertão. Essa luz  fulgente remete ao que se trata como conteúdo (se assim podemos falar didaticamente, pois arte é forma e não conteúdo). Afinal de contas, o artista vibra seus pincéis e esboços  de desenhos tendo em vista essa forma alternativa de viver, que era o cangaço. Faz valer  e se entrega ao que julga como imanência dessa narrativa. 



Fotografias 

Outro meio de expressão de Azol é a fotografia. Assim como suas pinturas,  inscreve-se em um registro no qual resguarda a singularidade e a dissonância com relação  aos seus pares que também fazem uso desse meio expressional. Para obter os efeitos de  cor ou contrastes entre os referentes presentes na foto, manuseia algumas técnicas, tais  como Apps Snapseed, Blend Editor e o Dramatic Black and White. Por meio do uso  desses apps, consegue uma beleza inolvidável, quase sempre usando seus mesmos temas:  os lugares inóspitos dos sertões, sendo que essa presença refoge ao lugar-comum, não é  jeito como a mídia representa. A vegetação quase sempre é assemelhada a um elemento ornamental, no sentido  que faz parte do enquadramento visando obter contrastes, via de regra em um primeiro  plano, formada por garranchos secos elevando-se para o alto, obliterando outras plantas  da caatinga, como o Mandacaru, mais também ocupando o plano mais próximo de quem  mira um animal, um casarão abandonado, uma cerca de madeira e sua cancela, uma cerca  de pedras. Vale lembrar que as cores aparecem quase sempre em uma parte da foto:  vermelho intenso, amarelo, azul, também com o objetivo de ressaltar ou emoldurar o  referente.  Com efeito, em outras fotos o sol encontra-se rarefeito, escondendo-se por trás de  garranchos. Interessante é que a presença humana inexiste, embora sua obra, na maioria,  seja marcada por essa hiância, fazendo valer o que é ermo e sobrevive sem que o humano  necessite marcar sua presença ou pose. Podemos enumerar algumas experiências fotográficas com o intuito alcançado por  parte do fotógrafo, falo no sentido de uma imanência que não se repetirá, prolongando-se  indefinidamente. Para os gregos, esse momento certo, único ou senso de oportunidade, era nominado kairos. Mesmo que a foto receba a interferência de programas digitais,  ainda assim não vai se repetir o que foi enquadrado e apresentado como fotografia, não  relegando para nenhum lugar a oportunidade de surpreender, de admirar, de se espantar. No fundo, a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba ou mesmo  estigmatiza (Roland Barthes, A câmara clara). Vejamos as fotos. Castelo de Zé dos Montes, reaparece nas fotos, detendo uma  luminosidade amarelada ou fundo azul, de um belo azul real em tom claro. Há também  pequenas capelas encontradas no ermo do sertão adentro, quase sempre à margem das  rodagens, cujas cores sobressaem para delinear suas pequenas construções; então temos  o vermelho, o verde, com garranchos impondo, quase sempre à esquerda, um escamotear  que faz esconder o referente. Outra coisa, já em franca extinção as cerca de pedras tão comuns outrora, cuja  tradição remonta à sua origem: a Península Ibérica. O casarão abandonado e perdido no  meio da caatinga, situa-se ao longe, fazendo ver a babugem de um esplêndido vermelho,  o contorno nos quatro cantos é negro, configurando uma bela foto, a partir de algo tão  simples, com poucos elementos enquadradas na cena. Por fim, ao que parece, em quase toda sua obra, o ser humano não é retratado com  nenhuma parecença que remeta ao realismo (quando aparecem traços, são deformações)  nem na parte, nem no todo. Sucede a imagem desabitada de indivíduos. E se aparece um  rosto inteiro, encontra-se coberto por um manto ao redor de cores vivas, ocultando, como  algo parecido com pudor. Dissimular o que não é possível encontrar na realidade, mas que é corrente e banal,  emerge uma questão do fundo do espectador/leitor. Por que encobrir o humano com  vestes coloridas (eu sei que gera uma voltagem estética, mas não fica só nisso) ou mostrar  apenas fragmentos? Porém, a depender do tipo de ausência, esta pode ser uma presença que se queixa.  O que chamam de os gritos do silêncio. Assim como se fosse um brado que nunca se  assemelha ou detém parecença com o estado da felicidade, todavia resguarda-se em um  silêncio retesado, duro, em uma imobilidade hirsuta, sem demandar uma completude, um  conselho, uma guarida, um apelo mínimo que seja. A obra é plasmada por um indivíduo. Há de buscar as respostas das inúmeras  questões naquele que edificou o objeto, acrescentando, talvez por negá-la, por não se  sentir confortável, ou mesmo porque é um assinalado pelas forças do destino a questionar  o que somos obrigados a conviver.  Creio ser suficiente contemplar a tela ou a fotografia, não se faz necessário  perquirir as razões pelas quais está propondo novas formas de representar, de ser, de  ocupar seu tempo, de se sentir ancho dentro de si mesmo. Por fim, diferente da fotografia dita tradicional, preto e branco ou colorida, é bom  atentar que o evento só ocorre uma vez (a não ser que interfira em foto-matriz apps de  computadores), petrificando o que foi mirado, por pose ou por instantâneo, relegando ao  passado o que nunca mais se repetirá. Essa fenomenologia do chamado “retrato”, depois  do advento tirânico das redes sociais, ou seja, com um celular na mão, ampliou-se  inúmeras maneiras de executar novos meios de expressão. Bem claro que nem todo  mundo vai receber o nome de artista visual. Há a necessidade de possuir domínio sobre o manuseio, nem sempre simples, das  técnicas surgidas nas últimas décadas. Imprescindível um feeling, um interesse, uma  compreensão do que fora e do que é a fotografia: uma profunda leitura do passado e uma  domada arte lançada aos pósteros. 


 

A natureza íntima das coisas 

O conjunto de telas que compõem essa série sugerem mais do que explicitam. Não  que suscitem enigmas o que quer que seja, mas exigem do espectador/leitor um maior  esforço em encontrar o referente (para onde remete) subjacente às linhas sinuosas por  onde dissemina uma luz originada do interior das formas, sendo elaborada por fronteiras  de um negro informe, porém conseguem dividir em partes, configurando compartimentos  proporcionadores de um esquartejamento para que a luz reverbere e cumpra seu papel de  fluir ao contracenar com marcadas linhas negras. Mesmo assim, emana do interior um discernimento que faz aparecer  discretamente a cor azul, o amarelo, o ocre, de maneira discreta. Logo que entramos em  contato com o título e as representações, nos chega de chofre uma vontade de classificar  essas expressões como pertencendo ao abstracionismo expressionista. Contudo, não há  uniformidade na série, ou seja, não detém a mesma impressão digital. Só resta  esquadrinhar com acuidade as partes na tentativa de justapor fragmentos. Mesmo  perquerindo, ainda persiste o desafio. São perfis de figuras? Rostos evocando Picasso? Tentativa de dar uma forma às entranhas de um ser? Como disse, a série não é homogênea. Acontece que uma mescla de formas sinuosas, podem vir a ser um cubismo em  parte, na medida em que certas parecenças de olhos ou dentes (se é que são mesmo),  perfis com sugestão de nariz ou boca sugerem, sendo que a ausência de simetria bilateral e a visível inquietude que parece se mover, buscando encontrar conforto ou algo no qual  se sinta ancho de determinada maneira. Sendo assim, evoca algo trágico, tanto pelas formas como pelo uso da tinta negra  com marcas extremamente fortes. As linhas sinuosas sugerem a interioridade de elementos compondo o todo do  interior, como se buscassem a essência do informe e com impaciência fossem gerando  transmutações. Como não poderia deixar de ser, predomina o estranho ou que não tem  proporção, apenas detendo uma ideia das causas e efeitos habitantes do íntimo,  revolvendo-se em uma procura inútil de consolo ou bem-estar.  Se as imagens detivessem formas que estivessem no lugar de metáforas, talvez  não houvesse tanta dúvida em apontar o que faz do nosso íntimo algo no qual se fundem  as partes, para, a pouco e pouco, justapor como peças de um quebra-cabeça. Mas é tudo  menos isso, menos assim, mais profundo e pleno de meandros, outorgando questões de  complexidade fora do comum. É uma ideia do funcionamento das coisas, arrastando as  causas e os efeitos do que nos organiza interiormente? É uma insistente busca de uma  provável essência, repousando nas partes mais abissais do nosso ser? Enfim, o pó das perguntas resta no chão, reverberando sua cor de um ocre baço,  pois esta é a cor da terra, da pele, por oposição ao azul, que é a cor da imaginação, do  inalcançável, do que não é tangível. 



Sem título (últimos trabalhos, pinturas outras) 

As séries não negam o impacto memorável da visita que Azol fez ao castelo de Zé  dos Montes. Em quase todas as obras dessa série, é possível encontrar traços que remetem  aos arcos, as ogivas e as fendas escuras, à guisa de aberturas presentes na geometria dessa  construção, edificada no ermo de uma vegetação sertão adentro. Ainda assim, organizada  com matérias simples, como cimento e cal, acabou por resguardar enigmas, pois não  conseguimos deter respostas para tudo o que seus elementos, inerentes à cultura, porém  tecidos em uma urdidura enigmática, devido à maneira como estão dispostos os elementos que o compõem. O exercício por meio da estética de capturar a figura humana inclui não somente  a forma, com suas linhas curvando-se para expor um desenho, que, por sua vez, precisa da geometria e as necessárias paletas de cores. Com a paleta presente, pode-se julgar a  intenção do registro estético como sua função final. Mas capturar a figura humana também diz respeito a inquirir acerca da essência,  condizendo com a compleição de como o corpo se porta no espaço ou na interação com  o outro. Quero dizer do corpo e de seus trejeitos e maneirismos na evidência de interagir  com outrem. O que dizem os olhos? A fala e seu timbre? O modo de entrar e sair de um  cômodo? Essa série de Azol simula um estar presente no cotidiano, apesar das figuras  retratadas frontalmente ou de perfil, não denota como referente o bulício de uma animada  conversação. Já tivemos oportunidade de evocar esse estar no mundo sem maiores  interações com seus semelhantes. Uma das telas sugere uma conversa, sem entusiasmo,  como se fossem períodos sintáticos plenos de lacunas, conduzindo para algo que não  detém de valor. Uma grande parte da série acomoda homens circundados por cores, tendo em  vista, ter posado para o retrato, com pequenas construções em geometrias simples  (podemos encontrar as composições do Castelo de Zé dos Montes: arcos ogivais,  pequenos obeliscos, cubos com zimbórios). Interessante que muitos retratos frontais ou  de perfil são coroados com tiaras ou coroas, apenas uma for-de-lis evoca a realeza. Outra forma de apresentar seus personagens é realizada por meio de estilizações,  o que vem a imprimir um caráter simbólico, na medida em que está posta em termos de  metáforas extraídas pelo espectador/leitor, haja vista o fato de ser uma coisa no lugar da  outra. Eis o que significa e se organiza a linguagem metafórica. Nunca apresenta por meio  de um realismo acadêmico ou assemelhado. Quer dizer, não apresenta o retrato fiel, muito  pouco se importando com a idealização conduzida a apelos emocionais acintosos. Por fim, os personagens coroados estão cingidos por um hieratismo que resvala  em qualquer discurso, quedando-se, parados, calados, indiferentes ao que os cerca. Isso  mesmo, em um silêncio que muito tem de místico, como se pertencessem não ao nosso  mundo, medido através de um raio, mas reside em distritos nos quais predominam em  herdades habitadas por seres vibrando em sintonias outras. Valete, frates!



Mês de Maio tem Cariri Cangaço Oeste Potiguar.

 


quinta-feira, 6 de março de 2025

Especial: Ivanise: a permanente alegria das cores.

Por Márcio de Lima Dantas. 

 Mais digno de ser escolhido é o bom nome do que  

as muitas riquezas; e a graça é melhor do que a  

riqueza e o ouro. 

Provérbios, 22:01 


 

Ivanise Lima do Vale (São José de Mipibu, RN, 1951) reside atualmente em  Parnamirim. Começou a pintar em 1985. É autodidata. É uma residência com muitos  pintores. Nivaldo Rocha do Vale, é seu esposo, também um naïf, nasceu em Santa Cruz  do Inharé, RN (25.08.1946). Começou a pintar no ano de 1964. Divaldo (01.01.1982),  seu filho, começou a pintar em 1999 e Lenivaldo (20.05.1977), também seu filho. Provavelmente, a tradição estética que mais dispõe de artistas de alto quilate, no  Rio Grande do Norte, seja a dos naïfs, haja vista a autenticidade encontrada quase na sua totalidade, revelando uma expressão espontânea advinda de uma pulsão que gesta  singularidades emanadas de qualquer lugar onde se encontram e vivem esses pintores.  Não é possível apelar para a geografia; talvez seja melhor remeter à história e suas linhas  de continuidade. Maria do Santíssimo é um excelente exemplo dessa forma de expressão. Se remetermos ao que essa deixou como influência, dificilmente alcançaríamos  explicar essa constelação brilhante, que se distingue pela originalidade. O que quero dizer  é o fato de quase nenhum desses artistas terem tido acesso às obras de Maria do  Santíssimo, não havendo solução alguma de continuidade. Maria do Santíssimo não tinha  a mínima consciência do fato de fazer pincéis com palitos de côco para pintar seus galos  e flores com anilina. Eram puramente funcionais e serviam para revestir os baús que seu  esposo vendia nas feiras.  Acredito que o Rio Grande do Norte, em termos de Brasil, detém uma plêiade de  naïfs de grande originalidade, haja vista participarem de exposições nacionais e  conseguirem prêmios. Pernambuco também é outro estado detentor de grandes expoentes  dos chamados ingênuos.  

Em se tratando de uma empreitada para analisar e interpretar determinado artista,  buscando compreender suas séries ou pinturas mais independentes, faz-se necessário  levar em consideração o cotejamento com outros artistas da mesma região ou do mesmo  país. De imediato, encontram-se imagens assemelhadas. Eis o que aparece: os mesmos  mitos, as mesmas narrativas, a arquitetura com suas pirâmides, as práticas religiosas,  deuses assemelhados, e por aí vai. Se é assim que funcionam as estruturas elementares,  talvez seja melhor buscarmos em outras disciplinas das Ciências Humanas, tais como a  Antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss. Para este, cada sociedade é constituída  de variados arquétipos simbólicos, sendo encontrados, quando de pesquisas mais  profundas, em suas tradições (cito de memória). Os arquétipos caminham para os mesmos arrabaldes onde existem agrupamentos  humanos, detendo eficácias bastante semelhantes, comprovando o que o antropólogo  francês descreveu. Com relação às artes visuais, essa tese se comprova bastante tangível;  é suficiente observar com atenção para reparar o quanto as diversas forças seguem em  direção a um vetor principal. Quero dizer que o fato de o Rio Grande do Norte deter tantos pintores naïfs,  mesmo cada um detendo sua individualidade e originalidade, é possível apontar aspectos  que não se filiam uns aos outros, pois a maioria nem se conhece entre si. É como se  houvesse uma necessidade intrínseca, formações das entranhas, que paira no espírito de  comunidades e acaba por determinar, inconscientemente, determinados comportamentos de representar, de ser ou parecer, conduzindo ações e discursos, disputas por alguns  papeis sociais. Mas não é de se espantar que outros países também detenham seu cabedal de  artistas sem nenhuma formação acadêmica e que seguem pintando como parentes  próximos dos naïfs. Explicitando, sem maiores explicações, um jugo que talvez, logo na  infância, instalou-se, conclamando à obediência de se expressar por meio de alguma  forma de arte. Como se fosse uma necessidade. Mesmo tendo certeza de que não era algo  funcional, não seria um meio de vida, um ofício, só se sentia aliviado, livre do  desassossego, se diante dele estivesse algo que foi plasmado com prazer, emanado de que  área da sua alma estivera adormecido. 

A paleta de cores presentes nas telas de Ivanise não exclui nenhuma cor,  configurando contrastes de formas e uma organização pictórica remetendo ao que parece  ser seu principal referente: a alegria de viver, seja no trabalho ou nas inúmeras  possibilidades de passar o tempo e se divertir. Esse caráter de concelebrar – como se fosse  possível – apenas um aspecto da existência, quer dizer, um bem-estar permanente, álacre,  só é possível na ficção (música, literatura, cinema, teatro, pintura). Parece ser o caso de  Ivanise, cujo trabalho exulta sem cessar essa adesão a compreender o cotidiano como  lugar onde não existe a atribulação, a ansiedade, enfermidade, envelhecer e a morte. Com efeito, suas telas organizam um propósito estético para eventuais fruidores  de arte, deixando-se impregnar durante o tempo que circulam em uma exposição,  admirando e deixando-se abismar em paisagens idílicas, onde a festa e seus  esquecimentos preenchem momentaneamente, como se fosse uma catarse. Não existe o  luto, a perda, as dores físicas, as lembranças teimosas, enfim, tudo o que não nos apetece,  do ponto de vista existencial. Ao se retirar dessa contemplação, resta tão-somente a  resignação ou a revolta, latejando o que o humano detém de possibilidade nos hiatos entre  uma vicissitude e outra, eis. 

A festa detém muitas funções nos distritos onde os humanos se organizam; não é,  pura e simplesmente, alguma espécie de desregramento elevando-se ou afastando-se da  Realidade. Também é uma contribuição aos liames de pertencimento a um grupo social,  fortalecendo a coesão de que significamos bem mais do que pensamos. É possível identificar, nas telas de Ivanise, folguedos populares: reisados,  quadrilhas de São João, bandas de música, feiras populares. Ou eventos reforçadores da  socialização e da identidade dos grupos sociais de certas paragens: mulheres tecendo  bicos em almofadas de renda, lavando roupa junto com outras mulheres, recreio da escola. Há também uma outra função mais subliminar: a festa como potencialmente  detentora de criar uma memória relacionada aos familiares ou vizinhos, lançando  fragmentos de narrativas aos pósteros. Uma memória com forte conteúdo de afeto, bem querer, irmanada que se encontra na identificação de cambiar, por meio de uma ruptura  com o cotidiano, o festim que reitera a amizade, o amor ou o parentesco. 

Penso ser desnecessário se deter com maiores explicações acerca da gramática  pictórica da arte naïf, caracterizada pela ausência da perspectiva ou um maior esmero no  desenho dos corpos e dos semblantes resultantes do contorno dos olhos e da boca, não  que expressar determinado tipo de estado da alma leve só em conta esses dois itens. É a  observação do todo, no nosso caso, que vai circunscrever o estar contente, não apenas  retendo cada figura humana, mas o cintilar de um conjunto no qual as cores concorrem  para exultar o júbilo de se encontrar em uma festa. Há de compreender a arte naïf como uma tradição estética que segue paralela, ao  longo da História da Arte, com as chamadas Belas Artes, também conhecida como arte  acadêmica, durante muito tempo necessária como signo de bom gosto e signo de  diferenciação social, fomentada pela aristocracia e pela Igreja Católica. Hoje em dia, esse  paralelismo chegou ao fim, pois as tantas e múltiplas estéticas fundiram-se em mesclas  nas quais se torna difícil apontar a pureza de algum fenômeno relacionado às artes visuais,  por exemplo. Por isso, não há o que buscar em uma tela naïf. Provavelmente tudo já foi dito,  analisado e interpretado, não sendo difícil identificar uma obra ingênua. Malgrado, como  já disse, se houver hibridismo de estilos de época ou confusão entre as duas tradições com  a arte digital. Sendo assim, o afeto e a admiração causada por uma empatia de se deixar  conduzir pelo feixe de símbolos presentes, reiterando individualidades de pessoas  pertencentes a determinadas paragens, chantando um modo de ser e parecer. Esses símbolos organizam estruturas mentais partilhadas por contornos e  meandros geográficos ou reiteram narrativas de eventos históricos. Não posso deixar de  mencionar os muitos ritos já extintos ou em processo de desaparecimento. Alguns  exemplos: as quadrilhas estilizadas ou o uso do ritmo forró com extrema vulgaridade.  Tudo se move. Fecham-se ciclos. Transmuta-se a memória; ninguém lembra mais de  nada. A cultura e o conhecimento livresco são apresentado de maneira fragmentada.  Chegam ao absurdo de resumir um romance. 

É o que sucede com a pintura de Ivanise. Ao que parece, resulta de uma  permanente vontade de se expressar por meio de figuras resultantes de uma simplicidade  que beira, no bom sentido, o desenho de feitio infantil. Contudo, seus referentes  plenificam com uma forma de viver concernente a todas as faixas etárias, trazendo para o que tem valia e sustenta os rituais referentes à condição do que se acha agrupado,  inclusive adentrando pelos arredores quando há possibilidade de agregação. Uma coisa bastante interessante nessa pintora é a presença de um ethos (caráter)  narrativo, presente nas figuras que povoam os planos, quase sempre dividindo a tela em  um terço mais dois terços ou metade e metade. Há, subjacente, uma espécie de: os  presentes estão submetidos a um intervalo no qual a imobilidade presentifica uma ação.  Acontece que, quando nos afastamos do quadro, contemplando o todo, há um bulício do  conjunto, proporcionando uma dinâmica na qual o olhar se enche de uma alegria com seu  caráter popular. Um contentamento se deleita ao extrair de tão pouco ou mesmo quase nada vindo  de fora para outorgar regozijo e esquecer a inquietude, via de regra, ancorada nas  atribulações chegadas de chofre e sem pedir guarida ou bater à porta. E tem mais. O uso  de cores, sem buscar o simbolismo de cada uma ou se deter sobre a paleta acadêmica,  para saber o que combina ou não, imprime uma feição ornamental presente em todas as  telas. Tudo é contraste espontâneo e beleza, nas casas, águas, firmamento, árvores com  frutos, arbustos floridos. Com efeito, ornamental destituído da sinonímia do querer enfeitar gratuitamente,  empobrecendo a obra. Ornamental que resulta em grande harmonia do evento que  acontece em um recorte de agrupamento social, originando uma festa lançada ao  espectador por meio de uma legítima obra de arte: fazendo-o assuntar como a existência  funciona, de uma presença no mundo, de desistências e inimizades consigo mesmo, de  compreender os valores relacionados a cada tempo, de uma obrigatória necessidade de  julgar através de um relativismo, de ser compassivo. Enfim, de compreender e aceitar que  a festa, o bom humor, o ser espirituoso, são apenas cartas no baralho da existência;  compete a nós decodificar logo cedo qual a sintaxe desse jogo todo, para tentar caminhar  na vera vereda e considerar tudo como uma trajetória, uma sucessão de ciclos que se  fecham, para que outros se abram e nunca esquecendo o adágio latino: memento mori.

O Cangaceiro Jesuíno Brilhante Foi o Destaque da Bateria da Escola de Samba Salgueiro.

 

No Carnaval 2025 das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, o enredo da Escola Acadêmicos do Salgueiro retratou sobre o tema "Corpo Fechado". Na pesquisa realizada pelo carnavalesco da referida escola, descobriu que o Cangaceiro Patuense Jesuíno Brilhante tinha o Corpo Fechado e por isso mereceu destaque na escola, no desfile da Sapucaí, dando nome ala da Bateria. Veja texto do Jornal O Globo: O cangaço também será abordado pelo Salgueiro, com a bateria fantasiada de Jesuíno Brilhante, o primeiro cangaceiro, que teve o corpo fechado por uma velha indígena, ou por referências a Moreno, cangaceiro mencionado no samba deste ano. As lendas são de que Moreno havia benzido um sinete colocado no chapéu de Lampião, mas que, quando o Rei do Cangaço foi morto, o objeto estaria no chapéu de... Moreno, que viveu mais de 100 anos. Já no fim do desfile, é claro, a malandragem ganhará destaque num carro sobre a Lapa. A opção foi por não fazer referências aos Arcos, mas, sim, à Escadaria Selarón, reproduzindo seus caquinhos vermelhos, nas cores da escola. Milhares de peças foram criadas a partir de espelhos cobertos por tinta vermelha. Já 70 azulejos foram criados a mão por 10 artistas selecionados pela agremiação.
Por  - — Rio de Janeiro.
O Globo em 0303/2025.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Especial: A subliminar semiótica de uma tela de Moura Rabello.

Por Márcio Lima Dantas.

 Todo começo é involuntário.

Fernando Pessoa



Eu me perguntei se era possível analisar e interpretar uma tela de um artista através de apenas uma pintura. Tarefa árdua e complexa, mesmo não propondo esgotar a maestria e o primor dos quadros de Moura Rabello, recorri à linguística de Ferdinand de Saussure (SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1995) e Roman Jakobson (Linguística e poética. In: JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1991) quando tratam do funcionamento de uma língua, organizando as formas de pensar por meio da metáfora ou metonímia. O certo é que nenhuma língua foge a esses dois arranjos básicos. Assim sendo, me debrucei sobre a metonímia, cujo funcionamento contempla uma relação de objetividade entre os dois objetos a serem postos lado a lado e comparados. É a parte pelo todo. Diferente da metáfora, que se compraz em grande livre-arbítrio, constituindo uma figura de linguagem na qual não há necessária relação entre o que se põe junto para se fazer compreender ou nas liberdades que a poesia proporciona por meio de suas licenças. Desse modo, a metonímia requer para seu efeito de comparação algo objetivo entre as duas partes. A saber, a parte pelo todo, o efeito pela causa, a marca pelo produto. Até o ensino médio, a metonímia é considerada, e estudada, tão-somente como uma figura de linguagem, bem como a metáfora. A diferença entre as duas é que a metáfora necessita de um elemento ou locução conjuntiva para que se efetive e o leitor deslize na semântica do texto. Acontece que, depois dos estudos de Roman Jakobson e seu amigo Lévi-Strauss, essas duas formas presentes na linguagem passaram a ser compreendidas como figuras de retórica. Ou seja, não são adornos presentes em períodos e orações, mas são o próprio funcionamento da linguagem. É possível fazer uma fusão entre a lista de figuras de linguagem dos livros escolares, restando dois básicos arranjos: metáfora e metonímia. Toda e qualquer pessoa elabora o seu discurso, sua eloquência, por meio de uma das duas, mesmo sabendo que não é possível encontrar nenhum estado puro. Fundem-se ou se encostam uma na outra, a depender da intenção que se quer passar para o interlocutor. Com efeito, isso não é tão complicado quanto parece, basta ouvir com atenção, escrever com esmero e clareza, falar pausado ou prestar atenção aos outros. Cada um com sua experiência, se mudou muito de lugares, se domina mais do que a língua onde foi socializado, se prima pela elegância no falar e no manuseio de sinônimos enriquecedores da comunicação. Enfim, se chanta naturalmente diferenças no sotaque, nos acompanhamentos de dêiticos com naturalidade. Enfim, uma elegância no falar, pleno de formas simples mais eivadas de metáforas e metonímias. Vejamos a tela de Moura Rabello que nos propomos a uma exegese estética, aos símbolos presentes e aos enigmas implícitos. O pintor Dorian Gray organizou uma retrospectiva (1970) de um dos mais importantes pintores daquela época, reputado por ser grande retratista, tendo deixado telas de pessoas do meio intelectual e político desse tempo. Nesse evento foi doada para a Pinacoteca Potiguar a tela, óleo sobre tela, “Augusto Severo e Sachê” (de 1963). Há uma coisa bastante curiosa a dizer. Essa tela foi feita a partir de uma fotografia da dupla em Paris, havia uma terceira pessoa à direita de Severo, eliminada, sendo difícil especular os motivos. A fotografia, ainda existente, retrata o dirigível Pax antes de ascender aos céus e explodir, matando os dois (1902). Creio que vale a pena apontar aqui a idade dos dois amigos, Augusto Severo (11.01.1864 – 12.05.1902) e Georges Sachê; o primeiro tinha na ocasião da tragédia 38 anos e o segundo, seu mecânico, 25 anos. Essa magnífica tela, anúncio de uma tragédia em Paris, resguarda uma série de signos a um espectador de olhar mais acurado e fruidor das obras de arte, não apenas como os passantes em vernissages de exposições. Como sabemos, mais vale o burburinho e a zoada das conversas, os comes e bebes. As telas expostas? São apenas telas. Se algum oráculo de respeito tivesse sido consultado que cores os dois amigos deveriam usar, na ascensão do dirigível Pax pouco antes do fatídico acidente, com certeza a pitonisa não hesitaria: “devem usar somente o azul e suas nuances. Nada mais pode ser dito”. Augusto Severo expressa um corpo atlético, ancho de si, confortável como representante de sua classe, de quem prima pela indumentária visando reforçar o que a natureza lhe emprestou até os 38 anos (Os deuses vendem quando dão. Compra-se a glória com a desgraça, Fernando Pessoa). Porte e elegância não lhe faltavam. Sabia muito bem como dispor as mãos: toque leve de dedos da mão direita sobre uma espécie de corrimão de madeira; a mão esquerda confortavelmente dentro do bolso da alinhada calça feita sob encomenda. Não nega que o alfaiate tirou as medidas com extremo cuidado, após fazer uma pergunta ao freguês (antigamente era assim). A perna direita cruza a esquerda, demonstrando uma nata elegância, de quem não precisou fazer caras e bocas para apresentar sua fina estampa de um homem detendo-se um tanto face ao guarda-roupa, antes de se vestir definitivamente. Diferente de Sachê, Severo mirou a máquina fotográfica, preferiu erguer a cabeça e fixar seus olhos oblíquos em algum ponto do horizonte, talvez soubesse inconscientemente qual a melhor posição para ser retratado em uma foto. Quase todo mundo sabe. Mas isso não implicou em deixar seu amigo Sachê em um qualquer desdém, respeitava demais seu mecânico para tratá-lo dessa forma. Algum incauto pode até levantar essa hipótese. Não creio eu.

Mesmo porque derreou-se para trás a partir da mão direita no bolso, acabando por engendrar uma geometria que se abre em um triângulo, com suas três linhas retas, as linhas que no imaginário remetem quase sempre ao masculino, assim como a linha curva evoca o feminino. Além disso, se olharmos com atenção podemos observar que o braço esquerdo encontra-se próximo ao braço direito de Sachê. Se marcarmos uma linha constituída de ângulos retos, é possível observar um paralelismo que segue até o ombro direito do mecânico (um homem com menos compleição física que Severo, no entanto, resguarda a mesma elegância). Ainda mais: deixou petrificado seu olhar misto de sereno e escrutinador, capaz de especular o que lhe interessava, seja de gente ou da paisagem. Inusitado é que os dois optaram por ancorar as mãos nos bolsos, como a proteger alguma espécie de segredo? Essa forma de se comportar condiz com os tímidos ou com os inseguros, não sabendo onde botar as mãos. Não parece ser o caso desses dois amigos. Uma amizade resultante do mesmo sonho: o de voar como os pássaros. Prerrogativa destes, mas não apanágio dos homens (naquela época). De toda maneira, ainda permanece no imaginário esse desejo de se evadir da realidade, de não andar pelas veredas nas quais a vida e o tempo determinam, são poucos os que escolhem seus caminhos por meio de embates com a realidade ou negociando certas cartas que conseguem rápido entender como é a gramática da existência. Mais do que mesmo esse estranho impulso os conduzia, emanado das entranhas e conduzindo a uma permanente inquietude? Isso mesmo, de fazer valer seus sonhos de asas pandas em inventos de vanguarda ainda não testados por outros? Algo me sopra que o preço pago foi alto, mas tudo que é de boa qualidade é caro. O barato sai caro. É sempre preferível pagar o preço do que queremos ou desejamos. Talvez seja bom mesmo sair da vida em um momento de êxtase, de provável triunfo, em uma tentativa de aclamação que os conduziram à História da aviação.

Vem ai o Cariri Cangaço Oeste Potiguar.

 

Patu - Martins - Lucrécia e Antônio Martins
22, 23 e 24 de Maio de 2025.




Especial: Ricardo Câncio: concelebrando o desenho e a cor.

 Por Márcio de Lima Dantas.


As folhas do calendário são leves.

Desprende-as o vento, surge uma data.

Henriqueta Lisboa



Ricardo Câncio nasceu em Mossoró (13.03.1958 – 28.08.1993), era funcionário do Tribunal de Justiça, residiu em Natal durante muito tempo, tendo retornado à terra onde nasceu, formando-se em Direito pela UERN. Produziu muito pouco, mas o suficiente para se inscrever como artista visual na sua cidade. Também deixou inéditos muitos cadernos de poesias. Nada publicou. De uma personalidade introspectiva, era reservado e discreto em tudo. Apreciava muito a casa da família em Tibau. De lá, ao que parece, veio a inspiração de pintar três belas marinas. Do que restou, há somente dois desenhos. Esboços, como se tivesse exercitando ou buscando um traço que poderia ser o seu ou não. Esse traço, tateando áreas relacionadas às coisas do espírito, o que chamamos arte ou outras atividades abstratas desvinculadas do tangível a que convencionaram realidade. Talvez ensaiasse um diferencial de outros colegas de convivência e pintores, como Varela, por exemplo. Esses dois desenhos foram esboçados de maneira incomum, não como a predominância do que sucede a um artista matar o tempo com uma procura que lhe diga respeito ou não. Sabe o que não quer, descarta, tenta outro traço, e assim por diante. São espécies de ensaios querendo comprovar para si mesmo o domínio de um desenho nem sempre fácil que é o de retratar pessoas. O autor preferiu um riscado que parece ter sido feito com uma rapidez, nas suas linhas retas e ângulos perpendiculares, encontrados em todos os três personagens masculinos. A bem da verdade, sem se demorar muito, esses poucos esboços só vêm ao encontro do que podemos confirmar em Ricardo Câncio. O segundo desenho representa um estranho homem, a saber, um enigmático retrato de um personagem com chapéu de couro de vaqueiro do Nordeste e um esquisito par óculos que esconde os olhos. Restando a boca em um sorriso contido. Os signos chapéu de couro e óculos escondendo os olhos são normalmente antípodas, resta deter questões acerca da índole desse personagem ímpar.

Ainda como parte dos desenhos deixados pelo artista, temos quatro croquis de excelente feitura. São três residências privadas e um prédio público. Podemos ver o bom gosto e a valorização de uma espécie de estilo hoje praticamente em extinção. De feição neoclássica, com sua rigorosa simetria bilateral, erguiam-se na paisagem urbana de Mossoró. Ao que parece, Ricardo Câncio sugere reter essas fachadas de beleza ímpar, com suas entradas pelo lado, permitindo a frente da casa dispor sua beleza com janelas rasgadas de duas maneiras: ou se abriam apenas em um nível acima da calçada ou ocupavam cerca de dois terços da linha onde iniciavam os elementos decorativos. Algumas janelas recebiam contornos, outras estavam ornadas de elegantes balcões, permitindo serem abertas para a rua ou também, diante do clima quente da cidade, abrirem para receber eventuais ventos frescos, sobretudo à noite, que, como se sabe, sopram os ventos marinhos emanados de Areia Branca. As platibandas eram as partes nas quais os elementos decorativos, com suas sinuosas linhas curvas, imprimiam aos adornos um requinte aristocrático, encontrando-se o manuseio das formas orgânicas (plantas, flores), lembrando um pouco o Art Nouveau. Via de regra, não se caracterizavam por serem grandes herdades, mas parece que os arquitetos se contentavam com o efeito de totalidade, emergindo um conjunto com grande individualidade; difícil era encontrar casas feitas em série. Por fim, existe um croqui da Cadeia Velha (hoje funciona o Museu Lauro da Escócia), cheia de histórias da municipalidade. Sua imponência e a grandeza de dois pisos, fazem-na, ainda hoje em dia, um lugar magnífico para se contemplar. Os adornos são muito poucos, pois foi erguida para ser algo exclusivamente funcional, diferente das outras três fachadas no qual havia o interesse, talvez, de ostentar uma distinção que só os das classes dominantes detinham, fazendo-se diferente.

Vejamos as três marinas, duas folhas com esboços, uma com três transeuntes e outra com uma figura enigmática, com chapéu de vaqueiro e óculos que veda ao espectador seu olhar. Vamos por partes. Em uma folha de papel estão representados homens caminhando, dois vistos de frente, um outro de costas. O primeiro da esquerda, visivelmente, com um saco pendurado às costas, não nega ser um homem pertencente às classes populares, o segundo, com seu talhado paletó, provavelmente pertence às classes dominantes, o terceiro é um militar. Ricardo Câncio pintou muito pouco durante sua breve vida? Depende, desde quando quantidade em arte circunscreve mérito ou valor? Leonardo da Vinci não deixou tantas telas (cerca de 15 pinturas), mas o que se encontra no Museu do Louvre (A virgem dos rochedos, São João) ou Hermitage (Madona Littia, Salvator mundi) chancela-o como um dos grandes de toda a História da Arte Ocidental. Revolucionando, no Renascimento italiano, a técnica de retratação. Não somente pelo manuseio das formas ao definir uma figura, tais como o contraste entre sombra e luz, o inusitado do sfumato, as fisionomias enigmáticas, desafiando o espectador. Essas formas de retratar foram de encontro ao que, desde sempre, estava convencionado pela aristocracia e a realeza. Retornemos às marinhas. Das três, duas representam o ânimo do litoral habitado pelo homem, em modestas condições. Percebem-se os barcos ancorados, durante um crepúsculo vespertino, lembra um pouco a técnica impressionista, quando contemplamos uma organização de signos de uma tela vista a distância. Todavia há um barco dominando a cena, cujo desenho não nega deter os traços da representação acadêmica. Há uma outra marina ausente de humanos. Procura mostrar o cotidiano de pescadores, com a pequena casa lá distante, sob coqueiros e uma luminância de um sol pleno, na sua transparência de permitir as cores demonstrar seu brilho, resplendendo sobre a cerca de pedras, as duas jangadas ancoradas na areia, as redes de pesca quarando ao vento e o mar com suas ondas. Eis o resultado de uma soma engendrando um ambiente bucólico, talvez para apascentar um eventual bulício íntimo ou externo. A paisagem tranquiliza o que se move internamente sem o nosso controle. Parece ser o que proclama um locus amoenus, uma calmaria cujo antônimo é uma vida de atropelos, cheia de grandes atividades, gerando um estresse que, depois, vem a ser enfermidades. Tenho para mim que essa bucólica paisagem nos convida a se evadir um pouco das cidades, das redes sociais, com sua tirania de apresentar uma felicidade artificial, como se fosse de plástico. Nos diz que há outros meios de atingir sossego e saúde. Aqui tudo se encontra no seu lugar, a perspectiva muito colaborou para um cunho de plácida permanência, organizando os planos horizontais. Se não conhecemos in situ, podemos fruir o que a tela nos oferece: um repouso, uma evasão do que os budistas nominam Maya, o que se aproxima do real concreto e das cobranças que o “Ar do Tempo” bafeja no rosto e na alma. Porém, há os que nada invejam, tampouco se sentem na obrigação de usar determinadas roupas ou frequentar ambientes plenos das gentes que estão em sintonia com os que não sabem direito como se portar.

O eminente artista visual Diniz Grilo, retratou com redobrado primor uma tela

com apenas uma figura central: Ricardo Câncio, com vinte e poucos anos. Há um outro

retrato de Alex Rosado, no mesmo estilo, como se quisesse ressaltar uma realeza que só pode ter com alguém que cultivamos com muito carinho, e se houver, quem sabe, o amor Philia (amizade). É o que não deixa esconder as duas telas, sobretudo a de Ricardo Câncio (a outra retrata Alex Rosado). Retratado com as vestimentas de um príncipe, alquebrado pelo seu olhar de pessoa tímida, intimista e introspectiva. Malgrado esse traço de personalidade, a timidez (é sempre complexa; Clarice Lispector se dizia tímida e ousada ao mesmo tempo), fronteiriça do intimismo, vivendo muito mais para dentro do que para fora, esse jovem não se furtou a cultivar boas amizades, principalmente no meio artístico. Prova disso é que do seu espólio ainda resta na residência da sua irmã Sra. Nicácia, três bons trabalhos do amigo Varela, é bem provável que tenha sido presente desse grande amigo.

 O resto do espólio foi doado ao acervo da Sra. Isaura Amélia, inclusive seu excelso retrato no qual predomina a cor vermelha, imprimindo ao retrato uma beleza ímpar, pois todo o fundo, bem como o gorro e a indumentária, em um grande golpe de harmonia através do monocromatismo pictórico, apenas as listras verticais de um branco acetinado sobre o vermelho.A presença inapagável de um vermelho intenso, como se quisesse dar contorno e inquirir o eventual caráter do rapaz, busca um delineamento do rosto, ao proceder um contorno do que no final das contas, todo mundo sabe, que o semblante resulta do olhar e da boca. E nos mostra um jovem rapaz cujos olhos estão eivados de uma suave melancolia. É muito provável que nenhuma outra pintura tenha captado com imensa profundidade esse contorno dos olhos e da boca, a fisionomia com tão poucos recursos, ainda mais quando se ousou manusear tão-somente uma cor, nem sempre fácil de um uso na pintura. 
Ao se desenhar dessa maneira, Diniz Grilo mergulhava nas águas aparentemente paradas de uma personalidade. Muito provável que nenhuma tela desse pintor tenha captado com imensa profundidade o semblante do nosso personagem, descendo em águas mais profundas, longe de restar na medida do primeiro impulso do contado de adentrar pelas águas. Dessa maneira, faz-se revelar uma alma plena, ao que parece, de uma vida interna rica e povoada de signos que buscavam superfícies íntimas na qual se encontraria silhuetas de símbolos remetedores ao que detivesse quietude, sossego e caráter observador. Assim sendo, eis um homem cujos contornos diziam respeito a um substrato na qual poderia colocar em cima as nuances de um homem jamais distanciado de perto da introversão com suas estradas e aceiros do ensimesmamento. Porém, tal forma de se estar no mundo, o que chamam de comportamento, não impede que se tenha uma “vida normal”. Haja vista a totalidade de boas amizades conseguidas nos lugares em que residiu, um rapaz benquisto por familiares e outras gentes. Eu penso uma coisa desse jovem rapaz retratado como se fosse um príncipe, pelo gorro e pela elegância da roupa.
Eu penso, ao me deter sobre os olhos quebrantados de melancolia, acrescido de uma boca sóbria que parece não acenar para nada, pois talvez não faça concessões em demasia à sociedade, com suas regras inventadas por quem se interessa em tirar proveito disso ou daquilo. Bem claro que ao lado da introversão, havia um homem observador, cuidando do que se movimentava a seu redor, contemplando, porém, preferia se resguardar em círculo de profundo silêncio, fazendo fronteira com uma espécie de timidez. Com efeito, houve quem dissesse do seu comportamento reservado, não era muito de conversa. Talvez seja aquele tipo e personalidade destituído de seguir o rebanho, sem refletir para onde conduz a estrada. Optara por um jeito de ser e estar, interiormente confortável. Por fim, há de exultar a presença no vergado arco das artes do Rio Grande do Norte de um pintor com alto quilate estético, como o é Diniz Grilo, provavelmente integrando um conjunto de amigos da arte e do afeto entre pessoas, das quais o pintor Ricardo Câncio integrava. Mesmo tendo produzido pouco, este deixou trabalhos confeccionados com três técnicas, capazes de atestar do que era capaz se houvesse se dedicado com maior intensidade e tempo da arte do desenho e da pintura. Fica difícil duvidar dessas capacidades habitantes do interior da sua alma.