Por Márcio de Lima Dantas
Maria de Zé Marcolino, Lilia, guarda numa caixa de papel grosso uma pequena coleção de fotografias retratando crianças mortas. “Era o povo que me dava: de lembrança”, recorda com detalhes o tempo em que amortalhava anjos. Hábito adquirido por causa do seu ofício de costureira, pois antigamente quem ataviava as crianças mortas para o sepultamento, via de regra, era uma costureira de profissão.
Outrora, os meses nos quais a mortalidade infantil aumentava eram janeiro e fevereiro, fenômeno relacionado com o leite de gado tomado pelas crianças. Nos anos de invernos irregulares, quando não havia pasto verde e vigoroso para o rebanho, as reses se alimentavam da rama murcha, babugem que produzia um leite de má qualidade, causador de diarreias nas crianças. Os mais frágeis pereciam, indo aumentar as legiões celestiais de querubins. O sertão era um grande fornecedor de anjos à Corte Celestial.
Os rituais de mortes relacionados aos anjos eram cheios de filigranas, entornados de uma simbologia rica e curiosa, denunciadora das crenças e costumes das gentes sertanejas habitantes de lugares nos quais não havia assistência hospitalar ou médica. Morrer à mingua era encarado como componente da existência, integrava o horizonte de expectativas do cotidiano dessas gentes. Uma concepção fatalista da vida amparava o discurso de registro cultural que era encarado como fazendo parte das coisas mais banais, servia de lastro para sustentar e justificar a tragédia e o genocídio de milhares de crianças mortas. Há que lembrar a noção de Ideologia, discurso produzido pelas classes dominantes, grassando desde sempre no Imaginário, perfazendo contornos firmes e capazes de deter uma grande eficácia na reprodução das estruturas sociais, fazendo saber que aquilo resultante de uma construção histórica e social aparece nas cenas do cotidiano como algo imanente, intrínseco e natural, o tanto o quanto as necessidades do corpo.
Com relação as cores do tecido das mortalhas, podemos agrupar em dois arranjos. O primeiro, eram em tons pastéis: azul, branco, cor-de-rosa; o segundo, mais fechado, detinha as cores roxa, azul ou preta. Confeccionada em uma só peça de pano inteiriça, dobrada em duas, apenas abrindo-se com a tesoura o círculo do pescoço. Poderia ser dita como túnica inconsútil, se não fosse o fato de receber todo um alinhavo ao longo das duas metades, para formar o pequeno e humilde sudário. Cosia-se a orla inteira do tecido, só que o chuleado não era visto, porque arrumava-se o caixãozinho com guirlandas de flores, preenchendo todos os espaços deixados vazios entre o pequeno corpo e o ataúde. Na verdade, nem de madeira era – requinte resguardado apenas para as pessoas “mais ou menos” – mas apenas uma armação de ripas revestidas com um tecido.
Era assim, como se não se permitisse gastar muito na confecção do féretro. Havia que economizar em todos os elementos que faziam parte daquela criança, arrumada para ascender à corte celestial, indo fazer parte do grandioso coral de anjos enviados pelos sertões do Nordeste. Quiçá, quem sabe, o maior distrito de anjos pertencentes a uma mesma região geográfica.
Porém, havia entre os pobres, pessoas em absoluta miséria, e que levavam os anjos, quando recém-nascidos, em telhas ou caixas de papelão revestidas de papel de seda. Sepultamento humilhante, sem qualquer resquício de uma dignidade, de uma pompa fúnebre que prestasse uma homenagem aquele ser inapto a participar do grande teatro do mundo. Natimorto, descartado à revelia, apenas por ser frágil. O despotismo da pobreza riscando de vergonha a alma do pai com um arremedo de féretro no ombro, caminhando com legiões de pensamentos na turva cabeça com sua imensurável coleção de fracassos. As imagens do inconsciente coletivo, mesmo sem contorno preciso, acendiam lembranças atávicas de que aqueles sepultados sem ritual permaneciam como almas atormentadas. Peito travado, nada podia fazer senão apressar o passo e encurtar o sofrimento, retornando para casa com o fardo da vergonha de se sentir ninguém.
A batida do sino, anunciando que mais um anjo fora enviado para enfeitar o céu, chamava-se repique; diferente de quando o defunto era homem ou mulher, caracterizava-se por ser intermitente, não cessando. Assim, os habitantes da cidade identificavam que uma criança havia falecido.
Vejamos uma coisa, não quero esquecer de registrar. Outra senhora especialista em amortalhar anjos foi Da. Francisca, mãe do mudo de Mica (seu nome era Francisco). Por demais conhecido, ele. Prestava pequenos serviços, por um pouco dinheiro. Queria saber se trabalhava e amealhava um tanto que possibilitasse comprar algum mantimento. Dona Francisca também era rezadeira, com folhas de uma cajaraneira que tinha em seu quintal. Lembra, como se fosse hoje, as grinaldas de areia brilhante ou bugarís de papel, que adornavam a cabeça das crianças falecidas.
Ao se falar nas incelenças, inquirindo sobre como eram cantadas, disse em misto autoridade e ensinamento. Havia o antigo interdito de se cantar incelenças que não fosse em presença de um morto. Dizia-se que fazia mal, pois agourava a casa e os presentes.
Ao se perguntar a uma mulher que arrumava os anjos para os funerais por que ela fazia isso, inexoravelmente responde: “por que gostava”. Piedade e estética se confundem num mesmo ato, como se fosse assim um jeito de já ir se preparando para sua própria morte. Arrumar um anjo é um exercício inofensivo, visto que se trata de uma vida incipiente e sem mácula. Exercício que lança à compreensão e aceitação de uma próxima morte. De certa maneira, é brincar de boneca, enfeitando e ajeitando o pequeno e lívido corpo frio.