Márcio de Lima Dantas
Apesar dos sete mares e outros
tantos matizes somos um.
Henriqueta Lisboa
Malgrado as secas periódicas e as terras nem sempre férteis ao cultivo das lavouras, impondo uma série de limitações à sobrevivência de animais e homens, os sertões do Rio Grande do Norte permanecem como um manancial de talentos que vêm a tornar a vida mais agradável, quer seja a música, a dança e tudo o que concerne ao que pode doar seu ethos contendo uma aura a revestir a existência com um ônus mais agradável, ou seja, os ofícios e as artes para entreter o tempo, matar as horas, com o que traz para o íntimo de graça e beleza. E chega, para quem já detém no sangue o pulsar de uma energia em estado de potência, querendo por que querendo edificar o que fomos acostumados a reconhecer como Arte. Esse esquisito júbilo de uma potência que nem mesmo quem a detém sabe de onde veio nem para onde vai. Apenas sabe que tem que ser, que tem de escrever poesia, que tem de pintar telas, que tem de organizar materiais em escultura. Enfim, o que chamamos coisas do espírito, uma inquietude que só sossega enquanto tem à mão o objeto pronto. O artista visual Pietro (Alexandria, 12.1989) é nascido numa pequena cidade dessas terras inóspitas durante parte do ano, visto que pode ou não chegar à estação chuvosa chamada inverno. Por volta dos seis ou sete anos, o sopro da dynamis (disposição ou potência da alma) chegava precocemente, buscando realizar-se por meio do desenho, ou seja, sem muito como explicar, essa tendência chafurdava no imo do rapazinho impulsionado pela enteléquia (realização plena e completa de uma tendência). Só se sabe de verdade o que não se entende por completo. Não posso esquecer de um grande artista nosso que nasceu na mesma pequena cidade de Pietro: Antônio Roseno Lima, classificado como Arte Bruta e detendo trabalhos em vários museus da Europa. Que anelo intenso e de grande força circunscreve vários conjuntos de significantes desejando à força e ao fim delinear seus riscos em linhas curvas ou desenhar em ângulos retos o que jaz sob um véu do inconsciente? O que se sabe quase sempre não se sabe muito, pois é o lugar da magia, dos mitos, do que não tem rosto, dos augustos vasos litúrgicos, das profecias, das artes, da poesia. É onde o deus Apolo habita seus naipes de tantas e muitas áreas de garatujas à espera do lápis de ponta mais grossa, para fincar os desenhos com o seu realismo ou com sua incompletude, configurando o que se conhece, o que existe de mesmo mesmo ou apenas o que persiste em existir/insistir em despertar emoções ou sentimentos quando de uma fase que estamos passando. Vamos nos valer de duas categorias básicas da Linguística: a metáfora e a metonímia, visando encetar uma melhor compreensão do desenho digital de Pietro. A metáfora é o eixo paradigmático, onde se encontra a seleção das imagens, das palavras; já a metonímia é o eixo da combinação, lugar onde a sintaxe da gramática normativa ou outras gramáticas se refugiam para organizar os paradigmas em unidades de sentido, como a oração gramatical, por exemplo. Metáforas e metonímias povoaram os desenhos. Na primeira, os elementos comparados são arbitrários, resultados de uma convenção estabelecida por um sujeito, um olhar que contempla e realiza o símbolo que irá tomar forma e aparecer. A metonímia resulta de algo objetivo a ser justaposto. Foge ao arbitrário na medida que só existe se os elementos têm algo em comum, ou seja, um elo de parecença que se efetue. Não há lugar para os dois elementos se não houver algo que os una, ou lembre, ou busque ter algo que os aproxima. Por fim, há de observar essa inumerável plêiade de seres pouco interessados em serem concretos ou não, vale, por sua eficácia ou pelo fato de serem metáforas de distritos do imaginário, nos levando a refletir sobre os limites entre o que nos diz respeito, existente desde que o homem é homem. Metáforas e metonímias podem ser o iceberg do inconsciente, os carrascos, as colinas, as pradarias mais profundas da mente, não se deixando habitar ou possuir pelo que chamamos de racional. Os desenhos de Pietro sugerem um mergulho nas profundezas de uma outra espécie de inconsciente, a saber, o inconsciente coletivo (Jung), espaço onde habita o que todos possuem. Os desenhos sugerem algo que todos podem reconhecer, o contorno de seres e formas a representar o que nem mesmo, quase sempre, sabemos. Através da arte digital cujas técnicas pode ser: digital – hachura – xilogravura, caneta e grafite, digital tradicional – colorido. Assim sendo, temos um artista visual antenado com seu tempo, com as novas formas de presentificar o que acima chamamos de artes do espírito. E faz com grande maestria, usando os meios contemporâneos como o computador, capaz de desenvolver inúmeras técnicas e imprimir no papel nossa imaginação, nossas alucinações.
O processo criativo de Pietro é bastante simples, mesmo que os desenhos deixem passar uma primorosa elaboração e um completo domínio das técnicas da arte digital. Segundo o artista, suas séries expressam seu atual momento: “quer dizer, o que estava lendo, assistindo ou jogando, alguma obra relacionada ao tema”. Nesse sentido, o conceito de inspiração se achega como a possuir a cabeça do artista, e vai se tornando complexo à medida que o desenho demanda mais e mais para conseguir configurar o que gestara inicialmente. Podemos observar alguns seres que pertencem a um bestiário de personagens integrantes ao mundo onírico da imaginação retirados de deuses antropomórficos ou os que existem desde sempre no imaginário dos homens, tais como o Lobisomem, a Medusa ou a Fênix. Nesse sentido, “pode se inspirar em uma foto ou imagem para tomar como base; tão-somente como ponto de referência, depois vou criando os contornos com base nelas”. Quase nada é premeditado, na verdade as imagens são resultado de algum fenômeno no qual o artista esteja envolvido, seja relacionado aos objetos do cotidiano, seja vinculado a elementos emanados do seu trabalho de informático, não premeditando quase nada, apenas tomando como ponto de partida, talvez nem tenha muita consciência daquilo que resultará ao término do desenho. Essa série refoge das demais, visto que encontramos alguns desenhos que não remetem às invariantes mitológicas pertencentes ao imaginário. O artista, por meio de artifícios, busca criticar comportamentos das pessoas e o enfrentamento com as atribulações de cada ser.
Uns tantos desenhos são decalcados a partir de áreas cerebrais responsáveis pelo caráter sanativo que todos trazem em suas estruturas mentais, apesar de poucos terem consciência desse poder interno que nos conduz a mergulhar nossas mágoas, lutos ou feridas, procedendo a uma assepsia que lava e limpa com um poder que habita em nós desde sempre, desde que nascemos. Com efeito, há uma série de outros desenhos decalcados dessa dimensão lírica acima aludida, o que seria formas muitas a amenizar ou curar de vez as atribulações ou enfermidades que nos chegam sem aviso, prudência ou conselho de outrem, ungindo com a delicadeza das coisas simples, como o Lótus com borboletas, a lua, Um par de botas, uma Mochila ou o enigmático rapaz, em uma tomada de costas, de Fogo à noite. Qual seria o enigma que esse personagem parece sugerir esconder ao olhar de lado e não de frente[a1]. O que procura esse solitário a caminhar pela noite? O que busca na face séria oscilando entre o negro e o branco do desenho pleno de sombras que o fez obliterar os olhos e a transparência de um olhar?
E eis que se mesclam uma infinidade de imagens, símbolos, signos, tanto oriundos da antiguidade – como da mitologia grega –, quanto como desenhos mais minimalistas, conformando metáforas pondo em xeque determinadas formas de considerar a existência, falo dos inúmeros equívocos que conduzem o senciente contemporâneo ao sofrimento e às atribulações que talvez não necessitassem serem potencializadas por causa de uma simples vicissitude que nos acomete e, sendo assim, poderíamos encarar com mais resiliência. Com efeito, o ar do tempo nos conduz a sermos mais inquietos do que deveríamos, haja vista, sermos uma sociedade voltada para nos debruçarmos sobre inúmeras enfermidades que nos acometem. Sendo basicamente um mundo de enfermos, basta ver os hospitais lotados. A obra de Pietro como que clama para observarmos a valia do que é utilitário (como a mochila ou o par de botas) ou o que não passa de algo que nos surge sem que haja algo plausível (Apolo, Atena), que não encontramos na realidade. O arco temático, está relacionado tanto a uma verga chantada em uma ponta, no qual pululam mitos da antiga Grécia como do lado oposto, com seus objetos do cotidiano, como um par de botas ou uma simples mochila para conduzir objetos no cotidiano. Bem claro que os dois conjuntos de imagens podem ser uma alucinação, ou melhor, uma metáfora que não tenha o objeto a ser comparado nos confins do corpo e da alma. Existe por uma vontade humana de buscar a figuração de elementos por meio de processos mentais que farão repousar em planícies onde o sanativo deseja atuar. Hoje em dia, passamos a indigitar como transtornos afetivos. Quer dizer, indigitar com palavras médicas que não conduzam à estigmatização ou colocar um lençol para evitar certas caricaturas que houve desde sempre. Por fim, não fica tão difícil aceitar e compreender os desenhos de Pietro, visto que se revestem de uma claridade, de um desenho rematado, conduzindo o espectador medianamente culto a remeter a uma ou mais metáforas, não deixando de fora o desenho oferecido em sua quase sempre perfeição. Sendo assim, há uma identificação, como se fosse um espelho a buscar nas profundezas abissais o que pode ser sanativo, fármaco, pensativo pleno de boas-novas, deixando aquele que contempla com menos medo, com a coragem da alma, esquecendo o ato de autossabotagem, edificando um muro de tijolos justapostos, levando a pessoa a deter nos meandros da alma um bem-querer que torna a vida mais agradável, por meio de um ofício, através do exercício de um dom artístico.
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