Autor: Márcio de Lima Dantas.
Entre os escaravelhos e o arbusto
do peito frágil existem
segredos buscando alívio
através de sussurros.
Henriqueta Lisboa
Goreth Caldas (Caicó, 1958), embora detenha um parentesco muito próximo do nosso maior pintor de todos os tempos, não reteve maiores influências daquele que a incentivou no início da carreira de artista visual. Mesmo sendo autodidata, apesar de ter recebido a influência e o necessário apoio de seu primo Dorian Gray para realizar suas exposições individuais e fortalecer seu espírito de convencimento de que era uma pintora que nascia e buscaria seu lugar no universo das artes do Rio Grande do Norte. Quero dizer com isso que seu desenho expressa um exímio domínio em elaborar os contornos e sugerir a perspectiva por meio do uso preciso das pinceladas, mormente nas marinas ou paisagens cuja temática é uma nesga de mar. Com efeito, o pincel obedece docemente às oscilações de ascender ou descer, como sucede nos morros que barram as águas ou dividem as praias. Tendo iniciado usando tinta acrílica sobre tela, também usou tinta óleo, bem como construiu várias séries com xilogravura. Fez vasto uso de pintar casarios erguidos como palafitas, mas aprimorou, e muito, as marinas e os buquês de flores.
A obra multifacetada de Goreth Caldas, constituída por um arco que vai do figurativo ao abstrato, passando pela xilogravura, como já dissemos, permite-nos circunscrever uma espécie de sistema que tem o epicentro na simbólica da metáfora. Em razão de possuir esse símbolo que irradia por toda obra, nos deixa entrever que o semblante do que se encontra ao largo ou quieto em seu silêncio, permite também que cada um espectador lance sua interpretação. A metáfora não é isso: uma coisa no lugar da outra? Inerente aos códigos inventados pelos humanos, quer seja por meio da linguagem escrita, quer diga respeito ao pictórico. Ademais, as metáforas são formas, digamos assim, bastante simples de comunicação e que podem ser analógicas ou digitais; o que importa é a capacidade de justapor dois elementos diferentes com o intuito de se fazer compreender ou, quando levada para o universo das artes, gerar beleza, contraste de cores, texturas, reorganização do espaço no qual habita o homem e seus semelhantes. É bom lembrar dessa insistência em paisagens marinhas e casarios modestos, sem a figura humana, que somente em algumas séries é que despontam com vigor. De resto, a senda primeva da obra está nos limites do que livremente nominamos sistema. Aliás, podemos, para efeito didático, nos permitir essa organização, na medida em que um elemento presente nos quadros vale por relação, o que nos círculos concêntricos de imagens (barcos ancorados, xilogravuras, buquês de flores, casario, marinas) lança seus vetores sempre para o mesmo lugar: uma espécie de metáfora. Sim, há de lembrar o existir de relações precisas entre todos os paradigmas presentes, perfazendo uma organização na qual cada obra contém resquícios ou nacos das outras, engendrando uma pronúncia estética cujo valor é o reconhecimento do trabalho edificando uma dicção eivada de originalidade ou releitura de um estilo histórico presente na História das Artes. É bom lembrar que nem todo artista detém essa singularidade revestida de um fulgor que inscreve sua assinatura no conjunto dos seus pares, triunfando a beleza solene de quem é capaz de extrair, por meio de parcas cores ou diminutas linhas, alguns elementos que nos cercam e nos fazem ser e sentir, identificando nossa humanidade. Contudo, faz-se necessário lembrar de artistas que são dotados de mil e uma maneiras de expressar, conduzindo ao espectador uma coleção de semblantes incomuns e diferentes do que fora há dois ou três anos.
Essa simbólica do ermo, do abandono, da solitude, encontra-se até mesmo no casario e nas palafitas, onde o humano não é presença, outorgando ao que contempla a mesma sempre pergunta: onde estão as pessoas, os idosos, as crianças e as mulheres ocupadas na azáfama da casa? É bom lembrar dessa insistência que acaba por moldurar uma mitologia na qual os lugares dos humanos estão desertos. Para onde foram banidas as criaturas, o que é vivo, como os animais e as pessoas? Uma vez que ao chegar com o olhar a tais lugares, não há outra atitude a fazer senão apalpar seu próprio espírito, resguardador da psique, cumprindo-se o papel da arte na existência dos que errantes estão tentando debelar Cronos (tempo), o devorador de seus filhos, caminhando por todo tipo de rodagem, pelas zonas rurais ou pelas cidades. De certa maneira, nas paisagens e marinas de Goreth Caldas, apenas existe lugar para o inexistente, ou seja, para o abstrato dos mitos. É bom lembrar o que disse Fernando Pessoa em um poema do livro Mensagem: “O mito é o nada que é tudo”. O poeta português trata de coisas abstratas, organizações mentais, personagens cultivados em nossas mentes, habitantes que vivem nas herdades do que Jung indigitou de arquétipos, e que dizem respeito a todos os humanos, ativando seus maquinismos consoante nossas necessidades para explicar ou delinear com linhas de grossa qualidade aquilo que somos ou que temos, mas não controlamos. De resto, a senda primeva da obra está nos limites do que nominamos aqui como sistema, uma vez que são elementos a remeter uns aos outros, perfazendo uma organização na qual um trabalho na tela remete a outro, engendrando uma pronúncia estética cujo valor é reconhecimento da obra terminada através de uma eventual dicção.
O que de tíbio risca os limites da tela não anula o desenho pretendido, ao se contemplar com mais demora e atenção, aos que miram os detalhes com cuidado do que não parece ser um quadro. Apenas podemos afirmar o quanto atípico é, sem deixar de ser o incomum que também habita nossos distritos internos e que muitas vezes só o objeto de arte vem trazer à tona e nos deixar mais anchos na quietude de compreender a arte como fármaco, doador dos dons, conselhos de caminhos que devemos seguir. Enfim, a arte é uma espécie de sanativo, – sobretudo para quem tem a necessidade de plasmar por meio de diversos procedimentos – busca concretizar o que era germe ou semente, como se fosse uma cepa a se preencher de galhos que logo em seguida se tornarão em flores. Eis que temos apenas riscos entrecruzados, a cumprir o papel de expressar na tela o que busca dizer de uma situação de pertencimento aos lugares quedados no nosso imo, emergindo quando de uma necessidade ou procura ansiosa de uma resposta ou mesmo uma compreensão do que chafurda nos prados de nosso íntimo. O poeta conseguiu no livro Mensagem, em um dos seus mais belos poemas, dispor de forma ordenada a serventia do mito. Fomos acostumados a compreender a realidade como o lugar para onde o mito repousa seu universo de significantes. Ou seja, é bem diferente o que parece suceder, a realidade deve mais ao mito do que possamos imaginar. Assim a lenda se escorre / A entrar na realidade, falo de algumas séries cujo desenho almeja sua tentativa através de uma franzina de riscos em muitas cores. E tudo o que é intangível vigora na obra de Goreth Caldas, contudo, conseguimos saber que existem na nossa psiqué (mente) e no nosso soma (corpo), chegando entre muitas formar, dentre elas as enfermidades que nos afligem, atribulam e quebrantam a nossa totalidade de existente. Ora, cada um faz uso do que crer, como a religião, com suas diversos maneiras de contemplar e ter fé. Isso vai de cada um. A medicina também reserva um papel de suma importância no conhecimento dos meandros do corpo. Quase ia esquecendo, esse também é o chão rejuntado onde Hypnos (Sono) e Morpheu (Sonho) aguardam o fechar dos nossos olhos, de cansaço ou porque é noite mesmo, necessário se faz o descanso.
Por fim, essas telas tão-somente se comprazem em apresentar estruturas compostas por meio de pinceladas um tanto rápidas, renegando a presença humana. Essa hiância nos remete a evocar questões filosóficas como esta: qual o motivo de não haver gente, haja vista que não se trata de abstracionismo geométrico ou expressionista. Pontuamos aqui as marinas do seu primo Dorian Gray, cujas paisagens hesitam entre o abstrato e o figurativo. Vale lembrar que talvez as marinas sejam a obra-prima do nosso pintor. Tudo se restringe às propriedades do figurativo, mesmo que esteja esmaecido, sugerido ou riscos verticais, fazendo-nos refletir que se trata de algo que parece algo desde sempre integrante da cultura. Com certeza, e com o tempo passado, mais de um século, podemos não ter dúvidas de que a partir do Impressionismo, a figura humana foi como que desbotando das telas, em um fenômeno que só mesmo a noção de Espírito da época pode dar conta e nos conduzir a uma compreensão de como uma mesma forma de pintar, – independe dos homens e lugares terem qualquer tipo de relação, – procederem da mesma forma, ou seja, a figura humana de natureza realista desvanece-se. Antes de mais nada, não podemos simplesmente isolar esse fenômeno e afirmar que um estilo era “da hora”, pois quando se trata da arte, sobrepõem-se o passado e o presente, fazendo com que toda uma diversidade de formas de expressão tenha o seu lugar, desde que apresente qualidade. O início do século XX, com suas vanguardas, rompendo com o passado, é um bom exemplo de como toda uma diversidade de estilos conviveu lançando fronteiras na qual havia hachuras ou total independência. Chegamos onde gostaríamos de relacionar o trabalho de Goreth Caldas e sua relação com o Abstracionismo, não importando se é o geométrico ou o expressionista, o que vale é o manuseio das cores e texturas, conduzindo a plasmar desenhos hesitantes entre o figurativo ou o abstrato, mesmo que alguns fujam à categorização. Em arte, é quase impossível proceder a determinados enquadramentos pois é da sua natureza haver os estilos ou pintores que funcionam como referência. Antes de mais nada, para finalizar, só nos resta outorgar um referendo à beleza e à originalidade da obra multifacetada dessa eminente pintora, Goreth Caldas, destacando se na vasta lavoura de nossas artes visuais, em uma comarca plena de características agradáveis ao se perceber, ao se contemplar, ao se compreender, nunca esquecendo de um lirismo bem diferente daquele a que estamos acostumados a lidar ou ir nos vernissages da vida. Ia esquecendo de falar dos seus opulentos buquês de flores em vasos. Essas naturezas-mortas são compostas não de arranjos com diversas espécies de flores, como sempre sucede, mas são monogâmicos, ou seja, um punhado de fores dentro de jarro, ocupando todo o espaço das telas, em uma beleza que excede, por conta da maneira como estão justapostas. Até parece uma busca na qual, ao fim e ao cabo, mana o que talvez a pintora nem venha a ter consciência, como já dissemos: o desacompanhamento de quadros com paisagens ermas, nos quais a solidão arrodeia seu total domínio. Solidão no sentido de que a figura humana não aparece ou está presente. Comprazendo-se em apresentar estruturas compostas através de pinceladas, muitas vezes é como se se contentasse apenas em expressar os mastros que sustentam as velas. Em alguns casos, ficam explícitos, os barcos ancorados, com riscos que delineiam uma embarcação. Contemporaneamente, a condição do indivíduo solitário vem a ser matéria complexa, passando do plano individual, singular, para o coletivo, sendo já uma preocupação do Estado. Só para se ter uma ideia, alguns países criaram o Ministério da Solidão, tais como o Reino Unido e o Japão. Consabido é os desdobramentos da solidão, como enfermidade, lançando os indivíduos o tempo inteiro a se apalpar, buscando toda uma sintomatologia que quase sempre não é resultado de uma doença ou espécie de vício, mas deságua em transtornos afetivos, em síndromes do pânico. Com certeza, agora sim, surgem doenças como a depressão, o Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e outras mais relacionadas à psiqué, nem sempre fácil de debelar ou conviver com um estado que o indivíduo não deseja, mas que pode resultar em coisas mais trágicas, como a autossabotagem e o suicídio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário