Por: Márcio de Lima Dantas.
Henriqueta Lisboa
Dione Caldas nasceu em Natal (15.05.1964). Por ser filha do nosso maior pintor, Dorian Gray, desde sempre foi familiarizada com a arte na qual seu pai estava sempre envolvido. Assim, não poderia deixar de receber influência. Conquanto essa didática informal e a presença de telas e tapeçarias, que podem até evocar no uso das cores e de superfícies, como o casario ou as marinas, assentou sua rubrica, conduzindo seu estilo para uma assinatura própria, determinada a ousar sair da influência do pai. A pintora também publicou dois livros de poesias: Cadernos de poesias (1980) e Canto vivo (1983). Mas retornemos à pintura de Dione Caldas. O fato de retratar imagens hesitando entre o figurativo e o abstrato dificulta uma classificação do conjunto. A maior parte das telas não se revela à primeira vista; faz-se necessário insistir no olhar, para que as figuras ou as superfícies dela sugiram ao espectador objetos encontrados no chamado real concreto. Mesmo assim, o caráter ilusório permanece em algumas representações. Pode até ser que seja algo figurativo, mas a luz, a linha curva, a linha reta com seus ângulos, ora se apresentam como um compósito da realidade, ora são pura abstração que remete a referentes não passíveis de serem encontrados na realidade. Apesar disso, nos concerne fazer uma leitura a levar em conta múltiplos aspectos presentes ou implícitos nos quadros, pois estamos interpretando uma artista visual que fez opção por dar um tratamento que nos evoca o livro de Cecília Meireles: Ou isto ou aquilo. Porém, se estamos ungidos com o caráter didático de uma primeva interpretação, não invalida que se façam inúmeras outras. Figurativo ou abstrato. Muito bem, há de efetivar uma separação de basicamente duas vertentes no manuseio dos ângulos retos ou curvos. Bifurca-se em duas maneiras de expressão. Além disso, lidou com significantes que remetem à azáfama de movimentos citadinos, tais como os viadutos vistos de cima e entrecruzando-se, emergindo as silhuetas de automóveis em pressa. Provavelmente, para a pintora, os trabalhos bandeiam-se para o abstrato, remetendo ao espectador a liberdade de categorizar, consoante sua subjetividade reconhece as composições como fruto de uma intimidade de contemplar o mundo ou sua experiência de vida, assim como se fosse uma familiaridade com objetos que permeiam sua realidade. Para além do que afirmamos, penso que o papel do crítico é perscrutar uma eventual classificação e posterior interpretação, levando em conta que o mesmo também faz parte do agrupamento de pessoas face às telas, estando subordinado aos mesmos critérios ou arbítrio das demais pessoas.
Vejamos como fizemos, tendo em vista a técnica usada pela pintora: cânhamo sobre madeira e acrílica. Em um primeiro arranjo, predominam os casarios com uma verticalidade paralela, procedidas de colunas separando planos nos quais repousam o que parecem ser fachadas de casas, inclusive com janelas e, no fundo, um céu azul com nuvens dispersas em pontos brancos. Há a possibilidade de se fazer uma leitura nominando as telas como abstratas; todavia, optamos pelo figurativismo, fazendo as devidas ressalvas quando necessário. O conluio entre as linhas curvas (os telhados, as nuvens, os viadutos, as transversas das passarelas, a curva por trás de árvores, gerando uma superfície que sugere a luz do sol e as águas evocando lagoas ou mesmo o mar) e as linhas retas (colunas paralelas aparecem como troncos de árvores ou simplesmente marrons para causar um efeito inusitado de esquadrinhamento dos componentes da tela, fachadas de casas, retângulos amarelos caminhando em cima de uma autopista). Alguém pode muito bem contemplar com naturalidade e apenas permanecer ancho de si, diante dos referentes plenos de uma grande diversidade do que está acostumado no seu dia a dia. Prefiro efetuar minha leitura dessa linguagem pictórica, distribuindo indulgências a outros pontos de vista. Pois muito bem, encontramos inúmeras apresentações de um casario modesto, seguindo as linhas verticais que riscam a tela em todo o seu comprimento ou largura. Nem tudo na vida é igual; assim podem ser o contorno de um telhado que não segue a queda de duas águas, como durante muito tempo fora o padrão, presentes na cultura e no imaginário, consagrando-se como figuras geométricas retangulares, só que em um lado percebe-se uma linha curva, e não reta, como era de se esperar na elaboração de um telhado. Acontece que aparentes colunas verticais buscam o sopé da tela, como se fosse um reflexo. Seria querer muito apontar essas representações como de um abstracionismo puro. Todos os signos presentes são familiares e adotados desde a infância no inconsciente, confluindo para edificar uma paisagem que, mesmo detendo algumas partes estilizadas, não largam o caráter de objeto identificado no entorno do mundo de cada um, bem como conformador de um casario ou autopistas entrecruzando-se, em uma imitação de viadutos e passarelas, simulando o trânsito com sua grande atividade e atropelo. Mesmo um conjunto de linhas curvas ressaltadas, cuja mirada fora de cima para baixo, ainda assim aparecem as linhas verticais. Não é que se veja, imaginação de uma subjetividade, ponto de vista de qualquer coisa desse tipo, mas é o que um olho arguto pode atestar. Com efeito, é certo que algumas telas nas quais encontramos apenas um ensaio de um grande geometrismo abstrato ou calcado nas figuras mais comuns da geometria nos conduzindo a buscar na realidade tangível o seu equivalente, seja por aparência ou funcionalidade. De qualquer maneira, não são todas as telas que se abrem em muitas possibilidades, engendrando o duvidoso/ambíguo, bifurcando-se entre o geometrismo e o figurativismo. Contudo, fica difícil generalizar e considerar todo o conjunto como bandeando suas organizações de signos a serem classificados como vacilantes entre as duas formas de expressar os elementos presentes no que chamam de “real concreto”. Algumas remetem à realidade palpável, não requer grande esforço para identificar ou mesmo desenvolver rapidamente uma empatia, no sentido de que está diante do resguardo como signo dentro de si, a evocar experiências ou passagens em alguma fase da vida.
Tenho para mim que não habita o incerto, o duvidoso em muitas telas. Podemos arrolar alguns exemplos. Visivelmente figurativa é a tela que retrata o bando de Lampião, representado por três cangaceiros a cavalo, indo em direção à cidade de Mossoró para invadi-la (13.06.1927). O fato histórico recebe uma leitura extremamente original, visto que o senso comum das artes visuais sempre retrata o mito de Lampião de frente, numa busca de ressaltar a fúria ou a estética da indumentária do bandoleiro. Com efeito, mesmo aqui prevalece o apreço da convivência da linha curva e da linha reta, dispostas em uma legítima harmonia. É uma obra causadora de espanto por deter uma profunda voltagem estética. Há um visível crescendo no contraste das cores, buscando a representação de homens na paisagem (de cima para baixo). A primeira cor é o ocre, puxado a marrom; em seguida vem o verde, a representar a vegetação da zona rural; temos o branco dando conta da igreja e de um ralo casario; finalmente, o azul, com algumas superfícies brancas, à guisa de nuvens. O fato de encontrar uma retratação de um fato histórico eivado de mito e de discursos do senso comum, ritualizado todos os anos em grande palco de teatro, pleno de caricaturas e de um pitoresco tedioso, enfatizando os feitos da classe dominante, face ao maior conjunto de bandoleiros de todos os tempos, na região Nordeste. Bem claro a gramática do mito para se manter pulsante e em evidência no imaginário: necessidade de ser repetido, pode ser nos discursos feitos (versões da morte de Jararaca) ou no teatro e nas artes visuais (aqui é onde mais se encontram retratos e versões dos cangaceiros, beirando o pressentido e de uma enorme banalização).Vejamos as tapeçarias. A tapeçaria foi criada para exercer um papel utilitário, com o objetivo de revestir paredes, tecidos ou poltronas, contudo, com o tempo, acabou vindo a ser uma obra de arte, adquirindo um papel sofisticado nas paredes dos palácios. Com sua beleza e variedade, ao possibilitar a expressão de fatos históricos ou retratos de reis, desponta como arte decorativa. Ora, a prática da tecelagem é milenar, havendo tradições na China e mesmo no Novo Mundo, como o Peru. Porém, é na França que atinge o seu auge como objeto de luxo, devido ao incentivo da realeza; no reinado de Luís XIV, atinge o seu fastígio, inclusive recebendo apoio do estado, como, por exemplo, na Manufatura de Gobelins. Podemos especular o motivo dessa passagem de ser algo puramente funcional, encontrada no cotidiano desde a Idade Média, passando ao seu apogeu, já como obra de arte decorativa relacionada ao luxo das residências de reis e da aristocracia. O fato de ser uma confecção artesanal de grande beleza imaginativa, provavelmente tecida como unidade e não fabricada em série, imprime uma singularidade distinta, outorgando à família real ou à aristocracia o orgulho de ter ou ser retratado em uma obra de arte.
Acima, uma pequena digressão, apenas para situar no contexto as tapeçarias de Dione Caldas. É bem provável que as tapeçarias sejam onde mais se sente a presença do eminente Dorian Gray. Não é tarefa árdua contemplar os vistosos recortes de uma maior paisagem implícita nos limites do que se encontra à vista. Ainda assim, permanece o dúbio a proclamar o duvidoso, porém a retratação exala-se como detendo o relevo da paisagem separando terra, mar e céu ou terra, água, colinas verdejantes e céu. Tanto no manuseio das cores quanto na geometria definidora de barcos e um casario modesto, porém pleno de uma beleza na qual o espectador talvez compreenda há outras formas de viver. Não existem apenas condomínios verticais em prédios, nos quais se habita de maneira isolada, e a solidão é um exercício a ser domado, em uma íntima atribulação, haja vista o modus vivendi de uma sociedade cuja forma de vida se restringe às redes sociais e suas rumas de fotografias com caras e bocas, configurando uma felicidade artificial que só um tolo acredita que é de verdade. A imagem padrão é um largo sorriso concebido tão-somente para a foto e uma taça de bebida ou drink, intentando passar a imagem de que a linha da vida é constituída de altos e baixos. Por fim, gostaríamos de apontar a maneira como a pintora faz uso da cor e do ritmo provocado pelas colunas verticais, esquadrinhando superfícies, do azul das águas, das folhagens verdes, simulando um bosque onde pouco a luz chega, do casario revisitado, com pequenos retângulos, sugerindo janelas, dos viadutos sobrepondo autoestradas, com seus carros diminutos, das passarelas entrecortando, enfim, de tudo o que pode se mover ou ser inerte. Todos esses elementos concorrem para organizar um inesperado efeito de beleza e um tanto de originalidade. Quem sabe, esse efeito estético mana do riscado com contornos de figuras geométricas, tais como quadrados justapostos, retângulos encostados em outros, trapézios, semicírculos (luna) recobrindo casarios, triângulos. Essa presença do rigor da figura geométrica aliada ao uso da tinta com maestria e exímio cuidado, proporciona uma representação que se caracteriza por uma singularidade, no sentido de que difere de muito da dicção de outros artistas visuais. Carimbando sua assinatura estética por meio de inúmeras figuras geométricas e das cores, como se tivesse planejado com uma urdidura consciente do que está sendo representado (“apresentar de novo”). É bom lembrar que essa fusão requer estudo com capricho e compreensão da lógica subjacente às tintas, com suas possibilidades e esmerado uso de contrastes, originando um ritmo que não apenas lança seus vetores para o efeito estético, mas também lança questões ao espectador, fazendo-o inquirir em qual chão se encontra: figurativo? abstrato? Por aqui, podemos deixar de lado, nosso interesse diz respeito à gramática e à sintaxe presente nas telas, como se organiza um conjunto de linhas curvas ou retas, a demonstrar a complexidade do real, seja o da introspecção, seja o das banalidades a que estamos acostumados a conviver e dar umas suas soluções: íntimas ou coletivas. Parece que a arte de qualidade nos ajuda a decodificar certas amplitudes do humano. Se não em sua totalidade, mas encontrando respostas para alguns flancos. Creio já ser suficiente. à alma que consente / no maior silêncio (Henriqueta Lisboa). Se não há contentamento ou harmonia interna, ou aceitação, ou se sempre se autossabota, ou ainda como quer o poeta português do século XVI, Sá de Miranda: pois que trago a mim comigo. / tamanho imigo de mim? (Obras completas, 1960). Esse fenômeno da não amizade consigo mesmo é bem mais frequente do que se pensa, e em se considerando uma sociedade na qual os indivíduos se relacionam de maneira on-line, por textos digitais e inúmeras fotografias, tudo vem a ser um faz de conta, um grande narcisismo e uma infantilização que causa espanto. Com efeito, em todos a poética de Dione Caldas, em suas nas telas, parece chamar atenção acerca desse fenômeno da condição humana diante do sopro do nosso Espírito do Tempo. Bem claro que só não compreende quem não quer viver os dias e suas horas perante o ar do tempo, sem a mínima reflexão. A dualidade presente nas curvas ou nos ângulos retos, na ambiguidade de formas antípodas, ou no ritmo impregnado de ambivalência. Contudo, o que se encontra nas telas conclama a decidirmos o que queremos. Pode ser figurativo ou abstrato, quer dizer, a subjetividade transfere para as formas e seus ritmos de cores o que vigora no ser. A coragem impulsiona a tomarmos partidos, quem há de?
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