Márcio de Lima Dantas
Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem herdade a
herdade, até que não haja mais lugar, e fiquem
como únicos moradores no meio da terra.
Isaías, 5:8
O cuidado e a responsabilidade do Sr. Henrique para com o seu ofício (Carimbos Mossoró), o de administrar uma tipografia na cidade de Mossoró, nos legou um pequeno e precioso álbum pleno de imagens advindas de xilógrafos anônimos e uma quantidade razoável de rótulos e outros materiais oriundos do trabalho do tipógrafo Meneleu. A gente bem que podia situar o artista por meio de dados que o tornam mais fascinante do que um tipógrafo nascido em Areia Branca. Nasceu em 1917, vindo a falecer em 17.01.2008, com 90 anos. Filho de Antônio Caetano dos Santos e Aureliana Leonísia dos Santos. Com efeito, Meneleu participou indiretamente da Insurreição Comunista de 1935 (23 a 27 de novembro). Tinha apenas 18 anos. Foi arrolado como um dos participantes ativos por denúncia de seus amigos de trabalho, que, para se livrarem, puseram-no como um dos principais atores do movimento. Na verdade, trabalhava no jornal A Ordem, tendo sido, junto com os ditos colegas, conduzido para o jornal A Liberdade, que era o órgão oficial dos que se organizavam para integrar o grupo responsável pela Revolta Comunista. Fora levado não porque era militante comunista, mas porque era um dos melhores tipógrafos da cidade (SANTOS, Francisco Meneleu dos.
Coisa julgada e cartas de amigos. Mossoró: Queima-Bucha, 2006). Dessarte, editando o jornal A Liberdade, no qual eram difundidas as ideias do Levante Comunista, não havia, por seu turno, uma convicção política militante. Era mais um operário de grande qualidade no domínio da tipografia. Amando de verdade o seu trabalho, é suficiente contemplar alguns rótulos de produtos a serem comercializados para se ter uma ideia do seu esmero e capacidade com as formas e cores desses trabalhos. Por essa participação, foi conduzido aos cárceres de Mossoró e Natal, durante seis anos e meio. Foi condenado à revelia, denunciado pelos seus colegas de trabalho, extremamente covardes e canalhas, que, para tirar o corpo de fora, preferiram trilhar o caminho do mau-caratismo pondo um colega em uma situação extremamente injusta. Com 21 anos já estava preso, colocado junto com condenados por roubo, assassinatos e outros crimes. Como era um homem gentil e honesto, não teve problemas de relacionamento com os chamados presos comuns, tanto na Cadeia Velha de Mossoró quanto nas prisões de Natal. O certo foi dito no seu livro: “Só os mais fortes resistiam e eu vejo hoje que eu era forte por ter enfrentado tudo aquilo”. Ao que tudo indica, sua fortaleza de espírito advinha de um caráter altivo, provavelmente cultivado por seus pais, em uma casa no qual havia a honestidade e a compreensão do trabalho como valores a serem considerados em todas as dimensões de uma presença no mundo. Não à toa grande parte do seu livro é composto por cartas de amigos. Meneleu sabia o quanto vale uma relação de amizade. Homem despido de qualquer forma de preconceito, onde ia se dava bem com as pessoas, o melhor exemplo foram os seis anos e meio nos cárceres, misturado com toda espécie de pessoa. Distraindo se com o xadrez, para matar o tempo. Antes de tudo, mesmo com pouca idade, já se definira como homem de atitude, detendo uma personalidade empreendedora, vivedor e com criatividade, mesmo sendo um prisioneiro do estado, fora capaz de organizar uma sapataria na prisão, favorecendo ganhar algum dinheiro, bem como ocupando e gerando pequenas rendas para outros prisioneiros. A injustiça de pagar o que não devia, como prisioneiro, maltratou, mas não o derrubou, talvez por traços de personalidade que em todo homem faz com que de linhas seja capaz de dispor de forma ordenada configurando um tecido, não apenas para se aquecer, mas para reforçar seu penetrante comportamento em sociedade. Sair e entrar de lugar qualquer, de cabeça erguida.Sim, também confeccionava artesanatos. Caixas de sapatos, broches personalizados (sob encomenda), maletas para viagens, pinturas aplicadas com decalque para azulejos etc. Espírito penetrante, era capaz de desenvolver ideias jacentes no seu íntimo. Tinha que se virar, pois o dinheiro que recebia como presidiário não cobria nem sua alimentação (SANTOS, 2006, p. 33). Havia de suportar, pois mesmo alguns parentes detendo algum dinheiro, foram incapazes de ajudá-lo. Dizem que temos mais reservas de sofrimento do que pensamos. Muito cedo Meneleu provou da raiz amarga que é a crueldade e a perversidade vindas muitas vezes de quem mais nos são próximos. Aqueles que nos nossos momentos mais difíceis são incapazes de ajudar, com uma palavra de apoio ou algo mais vinculado a uma atitude, esses são os piores, pois sabem ou têm a ajuda, mas se negam, por pura covardia ou fazer a escolha de costumes e pessoas que não se coadunam com os que destoam de determinados costumes sociais. É uma raça de víboras! Mesmo tendo passado todas essas vicissitudes, o tipógrafo ergueu-se, tal fênix que renasce das cinzas. Faleceu com 90 anos. O humano surpreende. Do humano, espera-se tudo e mais alguma coisa. Tem gente para tudo, ainda sobram 14. Meneleu escolheu o caminho mais limpo, ou melhor, já estavam no seu interior os brotos e sementes de um caráter bom e respeitador do que não lhe era semelhante. No seu livro há um vetor que singra todos os seus escritos: é o valor da amizade. Cultivava seus amigos como companheiros e irmãos. A amizade (philia) entre homens é um dos sustentáculos da existência, outorgando uma parecença do que somos como gente ou como profissional. Esses laços de legítimo afeto nos tornam mais anchos de si mesmos, permitindo o reconhecimento de uma presença no mundo, por consequência, vemos e somos vistos, nessa herdade que é o Amor. “Em resumo: fui preso no dia 27 de novembro de 1935, posto em liberdade no dia 31 de julho de 1937.
Preso novamente em 24 de novembro de 1938 e solto no dia 02 de outubro de 1943” (p. 35). Até onde se sabe, resignou-se à condição de prisioneiro, aceitando as consequências de uma traição e uma condenação à revelia. Estava no lugar errado, na hora errada. O oportunismo e a canalhice do humano vigoraram com força e fúria sobre o rapaz de vinte e poucos anos. Quando faleceu, com 90 anos, a imprensa divulgou que era “o último remanescente do Levante Comunista do país”. Foi elevado à categoria de mito, sem compreender direito as razões pelas quais havera de representar um papel que, talvez, não se reconhecesse, pois no seu único livro fala que não passava de um tipógrafo que fazia tudo com esmero, como sói acontecer com todos aqueles que amam o seu trabalho. Longe de compreender como um fardo pesado para conduzir a cada dia que desperta o jovem homem sentia prazer em ocupar os dias da semana com algo edificante e aplacador das forças latejantes no seu interior. Estranhamente o social, muitas vezes, não segue a gramática que o estrutura, detentora de uma lógica um tanto previsível para os mais atentos e argutos. Eis Meneleu transformado em um perigoso militante comunista. Assim foi encarcerado por colegas que o deduraram, sem ter nada a ver com o Levante Comunista de 1935. Ungido como mito, talvez como um lugar necessitado de ser preenchido, repete o que poetas e antropólogos disseram acerca do mito adentrar pela História (Gilbert Durand). Sendo assim, o que aprendemos e fomos acostumados a colocar em prática, ou contemplar, é exatamente o contrário. A História lança seus fatos e retóricas em direção ao mito. Assim a lenda se escorre /A entrar na realidade (Fernando Pessoa). Pensar dessa maneira nos conduz a ressignificar os chamados fatos históricos, compreendendo a autonomia do discurso mítico com valia e passível de explicar determinados eventos sucedidos na vida social. O melhor exemplo é que sucedeu com Meneleu, encarcerado durante seis anos e meio, por algo que não praticou. Ocupou um lugar na Insurreição Comunista. As classes dominantes precisavam de um indivíduo para punir e fazer valer seu julgo e mando. Vejamos Meneleu como tipógrafo. O Sr. Henrique Mendes deixou um pequeno álbum ofertado ao poeta e ensaísta do Poema Processo, Anchieta Fernandes. Ao nos depararmos com os rótulos de firmas comerciais ou produtos a serem expostos à venda, nosso olhar naturalmente se detém sobre uma profusão de formas organizadas com as cores vermelha, laranja ou verde. O fundo prima por uma precisa geometria de triângulos, quadrados e retângulos, vincados por uma simetria bilateral. Essa economia de meios é apanágio de alguns artistas (aqui também está relacionada às maneiras de compor oferecidas pelas máquinas da tipografia, numa tentava de amealhar apenas determinadas cores, diminuindo os gastos). Assim, podemos analisar com mais cuidado essa espécie de trabalho, não tão simples, como pode parecer à primeira vista. Sucede um minimalismo em todos os planos dos trabalhos, provavelmente por questões vinculadas ao manuseio das tintas e necessária repetição das figuras geométricas. É como se fosse uma economia de meios para fazer render mais o que dispunha o trabalho a ser submetido às máquinas de impressão da tipografia. Só para se ter uma ideia, não encontramos uma rica paleta de cores nos trabalhos de Meneleu. Basicamente o vermelho, o laranja e o verde. O branco, para separar espaços ou salientar algum chamamento expressional e o preto para contornos ou contrastes. Mas quem foi que disse que esse artista tipógrafo não fora capaz de uma grande versatilidade, mesmo dispondo de um reduzido naipe de cores? O que determina a faculdade de criação de um artista refrata geografias ou o tempo histórico. O material disponível diante dele conflui para áreas internas onde se encontra uma subjetividade latejando de significantes, erguendo-se em formas no qual a maneira de se expressar outorga o ímpar, em feitio de originalidade. Por falar no uso de poucas cores, Meneleu talvez tenha sido, no Rio Grande do Norte, um vanguardista do design gráfico contemporâneo, haja vista que este se rege por uma exígua gramática de cores e formas, em uma justaposição nominada minimalismo, uma corrente bem presente na arquitetura contemporânea. Assim sendo, o arquiteto minimalista opera uma série de modulações a partir do cimento armado, do vidro e dos jardins, passando a imagem de uma construção límpida e com forte apelo à razão. Confirmando um antibarroquismo, haja vista suas linhas e ângulos retos, erguendo-se como construção que refrata o decorativo e o excesso de meios e linhas curvas do Barroco. Dessarte, alguns teóricos e críticos defendem a tese de que o Barroco enquanto estilo não pode ser restrito ao final do século XVI e meados do século XVIII, tendo atingido o seu fastígio na Península Ibérica, na qual Portugal e Espanha foram os dois países, incluindo suas colônias na América, no qual essa forma de arte mais vigorou com intensidade. Basta ver nossas igrejas antigas em Pernambuco ou na Bahia. Tangenciando essa concepção do Barroco como estilo histórico vinculado a um tempo, outros teóricos compreendem essa estética como invariante inerente ao homem em sociedade, ele emerge e desperta sua vitalidade consoante o Espírito de época, quer dizer, de acordo com os modos de pensar e agir de determinado tempo, haverá sempre um modo de se fazer presente e realizar as justaposições com substratos do que existe, e é entendido como “natural”. Há de compreender essa necessária síntese, pois não pode negar o que é ou fora um estilo que vivificava esteticamente agrupamentos sociais, submetidos ao ar do tempo. Sua magnum opus, considerando apenas o álbum deixado por seu Henrique, creio que seja o rótulo da Aguardente Caxambu, totalmente estruturada na cor verde. O ponto de partida é o convencionado retângulo, onde se encontram de ambos os lados robustos colmos de cana-de-açúcar, elevando-se para o alto, como se fossem uma moldura, e ao mesmo tempo evocando a planta da qual se extrai a aguardente. O tipógrafo revela um acurado senso de ocupação do espaço, em uma rigorosa simetria bilateral. Parece que o rótulo da aguardente do Sítio Baependi, de Luiz Gomes (RN), pertencente ao Sr. Antônio Gurjão, adquiriu uma maior intensidade face ao conjunto organizado por meio de um monocromatismo na cor verde. Ora, há de lembrar o objetivo do design gráfico: imprimir uma forma comunicativa. Assim também o que rege um rótulo feito em uma tipografia considera-se como delinear uma forma que promova o máximo de comunicação. No nosso caso, tal objetivo foi alcançado através de poucos paradigmas, gerando um sintagma bastante simples, capaz de despertar e interagir com aquele que se dispõe diante do objeto posto à venda. Com efeito, o espectador ou o freguês, buscando uma garrafa de aguardente, deixa-se conduzir por aquilo que se mostra em primeiro lugar: o rótulo de uma garrafa de aguardente. Esse fenômeno mergulha em regiões as mais profundas de uma subjetividade já propensa a consumir determinados produtos expostos nas prateleiras dos estabelecimentos comerciais. Enfim, a empatia daquele que contempla conduz a adquirir ou beber. Esperem, mas não é só isso.O tipógrafo Meneleu, consciente ou inconscientemente, elegeu a cor verde sem nenhuma nuance; o verde pincela todos os elementos no apresentar uma ideia através de recursos analógicos (desenhos) ou digitais (as letras e as fontes empregadas). Essa justaposição logrou êxito no seu propósito: uma identificação de eventuais compradores da Aguardente Caxambu, feita de pura cana-de açúcar. Singrando no preciso meio do arranjo, adentra um grande navio, com o nome de Baependi. Sua presença evoca o poder do fabricante. Ao que parece, também é elaborada para exportação.Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
Federico Garcia Lorca
Todavia, há de citar alguns trabalhos do álbum. Tem um rótulo do Calçados Arruda muito bem construído com apenas as cores preto e vermelho A alternância das duas cores imprime ao conjunto um efeito de grande beleza, fazendo esquecer que é uma simples propaganda de uma loja e se deixando levar pelo que aparenta. O nome Calçados Arruda está escrito em um espaço no centro, para onde convergem figuras geométricas, espécie de falsos triângulos retângulos, cujo menor ângulo encontra-se como se fosse debaixo das figuras geométricas, sendo alternadas em preto e vermelho. Há também um outro rótulo, o de Calçados de Ana. Este parece ser o que detém o predomínio da linha curva. Organizado nas cores amarelo e vermelho, as letras têm um apreço pelo rebuscamento de um desenho vermelho, em fundo branco, com grande evocação do adorno. Não há como não parar e observar o gestual das letras D e A, plenas de curvas e uma linha que entra e sai, como se houvesse uma inquietude ou tônus nervosos nesses desenhos. Coincidentemente, a proprietária é uma mulher, indo ao encontro de curvas que no imaginário remetem ao feminino. Calçados Amaral, com fundo totalmente verde e a cor amarela no interior. Calçados Luzete, com amarelo como pano de fundo. No centro, uma espécie de sol amarelo irradiando a cor branca para todo o retângulo. O nome da casa comercial encontra-se em vermelho, em um tipo maior, outras informações estão organizadas em vermelho.
Aguardente Alcatrão, estrutura-se a partir de figuras geométricas em amarelo e verde. Enfim, faço saber de propaganda de quatro casas comerciais em um mesmo retângulo, fazendo valer uma economia quando da impressão, não perdendo nada do espaço, provavelmente recortava manualmente depois de impresso. Falta só uma coisa. Quero dizer da importância do uso da cor verde. No simbolismo das cores, podemos atestar o quanto essa cor verde puro, integrando os elementos básicos dessa composição visual, pode contribuir para a riqueza imagética do design gráfico. Por seu turno, contribui para uma empatia, gestada no contemplar os elementos intrínsecos a todo e qualquer desenho apresentado como propaganda, no nosso caso um rótulo de uma bebida bastante comum. Eis que temos forma, cor, tipo, espaço e imagem, dispostos de uma maneira que a função estética das linguagens visuais, consegue alcançar um nível de rara beleza, concedendo ao tipógrafo Meneleu uma capacidade de, ao criar algo funcional, também arrastar consigo a dimensão estética, fazendo conviver em um mesmo ícone o que é do prático com o estético. No livro Coisa julgada e cartas de amigos, é possível riscar contornos acerca da personalidade de Meneleu. Ao que parece, levava tudo a sério e trabalhava onde quer que fosse com enorme responsabilidade, fazendo valer o seu imenso talento para as artes gráficas. Tanto é que de imediato podemos apreciar seus trabalhos e adivinhar de onde emanou determinado trabalho, haja vista o manuseio dos elementos que são uma constante numa tipografia, quer seja um número reduzido de cores ou as formas desenhadas no retângulo levado à impressão. Se para alguns isso funciona como “falta”, para o nosso tipógrafo incitava a se virar, configurando um minimalismo. O pouco nada dizia, pois fora capaz de se “virar” em um grande número de variações, pondo sua assinatura ímpar na sua produção.