Por: Márcio de Lima Dantas.
Todavia vocábulos, para sempre
insonoros, ou no futuro incriados
demonstram que os poetas todos
morrem sempre mais na língua.
Fiama Hasse Pais Brandão
1. Arquitetura
Do espólio que o artista visual José Gurgel (Mossoró, 1940 – 28.04.1987) legou à posteridade, deixou, — é o que tive acesso — somente sete croquis. Desses, apenas dois integram as ideias do Modernismo encarnados em Oscar Niemeyer, criando uma escola cujo elemento primevo é o arco ou a linha curva, evocando, sem esconder muito, a nossa tradição barroca, tanto na arte quanto no Imaginário. Há um croqui de grande elegância, com seus arcos ogivais; também um outro com arcos ditos tradicionais. Curioso que há um croqui que fundiu a linha curva com a linha reta. Em uma sugestão de edifício híbrido, em um elegante êxito de dois tipos de linhas que nem sempre é possível encontrar, fundir e engendrar uma terceira coisa, que só um espectador atento pode compreender que lógica reinou para que esse fenômeno acontecesse. Vejamos como continuar. Os outros quatro croquis parecem muito com uma vertente contemporânea da edificação de moradias. Por minha conta e risco, nominarei Minimalismo, visto terem como paradigmas primeiros o vidro, a madeira e o concreto armado. É o que vigora nas residências de classe média dos condomínios fechados. Talvez o apreço por essa forma quadrática, não havendo lugar para janelas nem portas (salvo a de entrada), organiza-se como metáfora do nosso tempo. Falo desse Ar do tempo, no qual passamos a viver para dentro e não mais para fora. Curioso é que lembra os pátios de Sevilha (Espanha), herança moura na qual as residências pouco se importavam em ornamentos na fachada; o que interessava era o dentro, quer dizer, existem sempre amplos pátios com vasos de flores pendurados de cima abaixo. Apenas o portão de ferro da entrada vaza o conhecimento do que tem lá dentro. Não é possível ver as pessoas em suas azáfamas domésticas. Com efeito, aqui, no nosso caso, também serve como subtexto a dizer que pessoas residentes ali não estão muito dispostas a interagir com vizinhos. Gente de fora é impossível. A guarita e seus seguros portões estão em contato pelos interfones e toda uma parafernália de coisas de segurança. Enfim, o que gostaria de reafirmar é da sintonia de José Gurgel com a cadência do seu tempo. Se foram construídas ou não, pouco importa. Vale o subjacente à Arquitetura, como ele compreendia, como edificava uma herdade.

Como disse, o que já avançava como estilo, que, por sua vez, eram as formas de cambiar e interagir uns com os outros. Falo da contemporaneidade. Sucede que os desdobramentos desses meios sopraram formas esdrúxulas de reconhecermos uns aos outros. Formas tantas restaram uma bacia de valores, nos quais a soberba parece ser o que detém mais valia. Com efeito, as edificações vêm a se tornar espelhos do que sucede no interior das casas, mas também nas formas de etiquetas, de sentir e de se comportar. Vale a residência, também, como um texto no qual está escrito um aviso para quem se aproxime. Uma gramática com sua sintaxe a proclamar o orgulho de pertencer a uma classe e seus costumes. Essa presunção nada mais é do que um valor que a tantos parece como uma verdade. Acontece que grande parte de defeitos, como a altivez, por exemplo, ou a presunção, não passa de um culto à dissimulação, pois tudo isso é vago e tem a fundura de um prato. Não passando de algo sem fundamento, pois a vida de verdade o tempo joga com outras cartas, escolhendo os naipes para cada um, sem uma lógica ou com outra lógica. Carece de humildade para se desvencilhar de tanta artificialidade. Por fim, voltemos às casas que José Gomes concebeu ou idealizou, pois não sabemos se foram edificadas. Porém, diz muito dele, da maneira como concebia a vida e os intercâmbios entre os indivíduos. Malgrado o que dissemos acerca das residências, do Minimalismo presente no rarefeito e suas consequências sociais ou representantes do Espírito do Tempo, também podemos encontrar janelas nas muitas paredes formadas por varandas. Afinal de contas, é do conhecimento de todos a temperatura média de Mossoró: extremamente quente e abafado, necessitando, mesmo que a casa tenha sua planta lacrada por quase todos os lados, ainda assim se faz necessário entradas de vento.
2. Desenhos

Acredito que, de todas as técnicas picturais manuseadas por José Gurgel, aquela na qual conseguiu atingir seu apogeu foi onde se encontra o desenho. Assim, podemos classificar em diversas proposições: trabalhos do cotidiano, brincadeiras infantis, festas populares, panorâmica de uma imagem de cidades do interior. O que dispõe o traço dos contornos dos desenhos é que quase todos têm a sombra presente, vindo a ser uma sorte de imagem na qual muito se assemelha à pintura, como, por exemplo, a aquarela. Seu traço é inconfundível, mormente quando busca retratar grupos em movimento. Conduzindo o trabalho, com sua já aludida sombra, para circunscrever coletivos de adultos ou crianças, em uma festa que consegue passar essa alegria da dança ou do batuque. Alguns desenhos lembram pinturas de escravos negros, em batuque de canto e dança. Podemos constatar procissões com andor, Cristo Crucificado, mulher em pose sensual, flor, brincadeiras de crianças, festas de adultos. Sendo assim, vale lembrar que o que podemos chamar livremente de temas é apenas um pretexto para que, no papel, surja determinada figura, não importa o que seja. Vale pelo que o artista plasmou, sua singularidade, sua diferença de outros, sua importância no contexto de artistas da cidade. Não tenho certeza das datas, mas há um desenho de 1992. Como disse, o desenho não se restringe à junção de preto (às vezes colorido) com a cor esmaecida do papel, criando um efeito de alta voltagem estética, superando a pintura ou a escultura. Vale como registro de um pretérito tempo no qual ainda havia o sossego de alma e os indivíduos valorizavam as coisas simples, levando uma vida sem maiores atropelos, sem excessos de signos para compor a cena da realidade.
3. Figurinos

De um temperamento desassossegado, no bom sentido, é possível transitar por vários sistemas semióticos na obra deixada por José Gurgel. Foi por isso que procedi a uma classificação para que se individuasse os elementos que a integram. Após ensaiar uma análise e interpretação, tentarei compreender as partes e organizar a totalidade, com o objetivo de fazer valer o que foi separado para formar uma totalidade do homem artista, com seus inúmeros paradigmas, chegando aos sintagmas de diversas formas de arte. Por fim, definir uma grande metáfora, já que essa obra se qualifica por uma uniformidade, podendo insculpir seu nome como “a dicção de José Gurgel”. O que não sucede com outros artistas visuais, pois são múltiplos e demonstram seus talentos por meio de uma só maneira de fazer arte. Das tantas maneiras com que manuseou, visando engendrar determinada forma de expressão artística, adentrou pela arte de desenhar figurinos de roupas para mulheres. A verdade é que apenas conseguiu demonstrar seu bom gosto e sua arte de desenhar com requinte indumentárias femininas. Até parece, pelo visto, que detinha um certo pudor transmitido para as roupas que concebeu. Não sugerem figurinos para encenação, mas é como se fossem direcionados ao cotidiano da mulher. Há uma legítima preocupação em cobrir o corpo, dos ombros até as pernas, como se desejasse resguardar discretamente o que uma mulher tem de íntimo. Muito provavelmente, se produziu, na maior parte dos figurinos, para uma costura eventual. Quero dizer que foram concebidas para mulheres da classe média, haja vista, como disse, o discreto primando pela elegância, bem como roupas de gala, com ornamentos tais como babados, laços e plissados. Quem sabe imaginara um tipo de mulher portando bien la toilette; de toda maneira a disposição do simples predomina nos corpos, fazendo crer que a forma mais elegante ainda é um viés de simplicidade. Isso ninguém pode desmentir, pois a roupa reflete a personalidade. Difícil alguém desmentir essa assertiva. Quero dizer que esse manancial de despojamento circunda toda e qualquer espécie de arte que José Gurgel pôs as mãos.
4. Pinturas

A pintura de José Gurgel pode ser organizada, no geral, em dois conjuntos: as paisagens ou personagens representando aspectos da cultura popular e a pintura de natureza religiosa. As que concernem a ritos ou trabalhos do cotidiano são plenas de grande simplicidade, tanto no risco do desenho como nas cores mais puras. Falo de roupas, caminhão pau de arara, lavadeiras, criança brincando com um . enfim, o que capta a dinâmica de um viver pertencente às classes populares. O lugar dos simples aparece aqui novamente, para não fugir à regra. Não é exatamente um naïf, basta comparar com a maestria do desenho limpo sobre o papel. Aqui sobrepuja a pintura sem grande esforço. Também difere dos ingênuos pelo fato de não usar as cores muito fortes; acontece de pintar com tintas transparentes, esmaecidas, quase não enfatizando o personagem ou a paisagem em foco. Com efeito, essa brancura chega na arte de pintar de JG como uma espécie de luz que nada impede reter, deixando tudo em uma luminosa transparência, restam imagens vagas na tela, no sentido de que parece que o artista teve a intenção de tornar evanescente os elementos em evidência, os que estão exatamente no lugar de visibilidade maior. Na verdade, é o que vai caracterizar a pintura do artista. Se quiséssemos circunscrever um segundo conjunto, teríamos a retratação do sagrado, no qual se incluem os santos da Igreja Católica e os anjos. Tudo o que dissemos está mais relacionado a essa plêiade de santos e anjos, dispostos de muitas maneiras. O que os torna como integrantes de um conjunto é essa luz que sempre está associada às passagens bíblicas, simbolizando a purificação e a presença de elementos do sagrado.

Com efeito, mesmo sendo integrantes de, teoricamente, um plano superior (para os que têm fé), quedam-se em posições translúcidas, ou seja, a luz ilumina o corpo e o seu redor, mas não deixa passar toda essa luminosidade, restando baça, como se fossem seres imprimindo seu silêncio para quem se apresenta. Esse parece ser o elemento predominante, um silêncio que ampara, conduzindo os espectadores a uma reflexão, a uma empatia, ao que está repleto de potência criadora. Por fim, a pintura de JG é bastante curiosa no sentido de dar a ver personagens com um corpo que só um contorno pode conduzir a observar as imagens de santos e anjos. Resplendentes em posições como se fossem pregando palavras retiradas dos chamados Livros Sagrados (os Evangelhos). A transparência, a presença do branco e os contornos de pequenos ornamentos nos conduzem a admirar essas obras de uma luz que nos chama à reflexão. Sobre o quê? Ora, não faltam pretextos condutores a nos colocar face às dobras do silêncio, levando-nos a um mergulho de maior meditação que as orações do dia a dia.