Por Márcio de Lima Dantas.
Outrora, se bem me lembro, minha experiência na escola foi uma grande descoberta, não apenas para ler e escrever, para contar, mas, sobretudo, descobrindo quem eu era, quais as identificações, em que lugar me sentia protegido, também algo que me acompanhou durante toda a vida: não permitir que o convívio em sociedade ultrapassasse minhas expectativas e domínio acerca do meu entorno. Ora, não posso deixar de reconhecer esse traço da minha personalidade como um defeito, na medida em que logo me entendi por gente já foram dizendo o quão eu era autoritário e mandão. Mas, leitor amigo e indulgente, podemos tentar compreender esse ethos advindo de regiões pelágicas da minha personalidade?
Vou logo avisando, não me carimbem com apelidos delineadores de uma caricatura da minha pessoa, na medida em que certas virtudes presentes em algumas personalidades, se observadas na prática como gestos de entrega e compaixão, proclamam um ser compreendendo as relações humanas como espaço de produção e edificação de tudo o que faz fronteira com o Bem. Não faço um autoelogio, pois nunca aconselhei ninguém a me comprar por santo. Não é? Vai perder o dinheiro. Apenas quis falar de como se organiza um comportamento. Creio que todos sabem disso.
Isso posto, vamos falar da minha jornada na escola. Traçarei uma linha cronológica, envergadura de significado e sentido com os nomes dos que foram meus mestres.
Élia era muito bonita, com seus longos cabelos, morava em frente da minha casa, filha de João Camilo e Da. Fransquinha. Ela é meu mito fundacional quando necessito tratar da escola. Aprendi as primeiras letras naquela antiga Carta de ABC, bem como tirar as contas por meio das quatro operações, na Carta da Tabuada. Meus amigos de brincadeiras de rua também eram seus alunos. Havia que ter essa etapa, para desasnar a criança.
Lourdes deu continuidade, em uma atitude pedagógica mais avançada, pois já se conhecia, toscamente, reconhecer as letras, formar as sílabas e soletrar. Parece que soletrar não integra mais o currículo dos iniciantes. Lamentável,
visto que o aluno capaz de soletrar, também dava um grande impulso a se compreender o funcionamento da linguagem, por conseguinte, para os mais sagazes, acessavam um conhecimento da gramática do mundo e da sintaxe dos indivíduos. Lourdes lecionava em grande mesa de fornida madeira. Havia um objeto que jamais tinha visto: um ábaco. Lembro de ter ficado extremamente curioso. Era preso em um dos quatro extemos da mesa. Cheguei a aprender a manusear, realizando com sucesso as quatro operações matemáticas. Residia na casa de Seu André e Da. Luzia, e fora por um tempo secretária do Ginásio Comercial de Patu, quando Petronilo Hemetério Filho foi diretor,
Nice de Rael, filha de Rael e Minervina, famosa por ser benzedeira, curava crianças e enfermos. Será que havia maior prazer do que ser aluno de Da. Nice? A sala de aula ficava encostada na casa de seus pais. Não havia uma pessoa mais refinada em sua educação e amabilidade para com todos. Todo mundo sabia que passar pelas mãos dessa mulher sempre contente com a vida, dando sonoras gargalhadas, era imprescindível no processo de ler e escrever. Chamava a atenção, vistas pela primeira vez, das carteiras escolares de madeira, justapostas umas às outras. Era desnecessário reclamar ou falar sério com os alunos, todos a respeitavam. Quem sabe, pela primeira vez, estava consolidada em minha cabeça o quanto era importante o respeito em um lugar dedicado ao conhecimento, ao livro como valor, aos que partilhavam esse gosto, enfim, a uma espécie de espaço sagrado.,
Teresinha de Noemi, mãe de Silvanete, Gislaine e Sílvio Filho. Também era separada do que fora esposo. Aqui também se encontrava a fileira de carteiras, postas na sala de estar, pois ela residia junto com os filhos nessa casa. Conhecida pelo rigor com relação à disciplina, desde o início, até o fim da aula. Ao que parece, seus ensinamentos concerniam à primeira série primária. Assim como se fosse uma antecipação, antes de chegar nos Grupos Escolares.
Quando fui matriculado para estudar no Grupo Escolar João Godeiro, não entrei no primeiro ano. Estava adiantado, já conhecendo os conteúdos dessa série. Fui considerado apto a ir direto para o segundo ano. Foi a minha primeira escola formal, pois as demais inscreviam-se no que chamavam de “particulares”. Findara um ciclo no qual havia uma interrelação maior com a mestra. Agora era uma sala de aula completa de gentes de todas as formas e jeitos. Como se um certo anonimato presentificava-se, lançando cada um, menino ou menina, em uma possibilidade de selecionar aqueles com os quais se identificava. Não havia a necessidade de conviver com todos. Creio que
esse caráter de um tanto de anonimato na verdade fez com que uma liberdade chegasse com seu prumo, deixando o indivíduo mais ancho de si, permitindo uma saudável insolência, organizando através de uma determinação e livre arbítrio uma identidade e graus de parentesco que não são os impostos pela família, sopros de vento adentravam pelas janelas do estabelecimento, separando as pertenças e apartando com discreto silêncio o que se quer, o que interessa, o que se identifica.
O Grupo Escolar João Godeiro era a única escola pública da cidade, servindo a todas as classes sociais. Detinha a particularidade, em sua arquitetura, de todas as escolas edificadas naquele tempo. Do lado direito havia um longo corredor, com três salas de aula. Seguindo o rumo dos dois banheiros encontrava-se um grande pátio coberto. Aqui ficávamos sentados no chão, alguns recreavam de outras maneiras. Logo na entrada, um balcão de alvenaria, era o local de distribuição da merenda escolar. Consegui alcançar um tempo da “Aliança para o progresso”. Conduzia conosco latas de alumínio vazias, com tampa. As merendeiras enchiam com leite em pó. Para as pessoas muito pobres, com bebês em casa, era um bom adjutório. Oposto ao corredor, havia um pequeno apartamento no qual habitava a pessoa responsável pela limpeza das instalações. Era um ambiente simpático: sala, quarto, banheiro e cozinha.
Como disse, fui matriculado na segunda série primária, cuja professora, Adalzira Brilhante (separada de Raimundo Solano, irmão de Alvanir e Mário Solano). Tinha uma filha adotada, Izonária. Residia em uma casa simples, do lado direito de quem segue para o Alto. Estava sempre bem vestida, indumentárias simples. Seu cabelo amarrado nas costas, e um par de óculos de lentes grossas. Detentora de uma incomensurável paciência com seus alunos, ficando na cabeceira da mesa, mas sem perder o rigor e a exigência para com os deveres de casa. Sempre era possível encontrá-la nas missas.
A minha professora da terceira série foi Neide de Quincola (apelido de Joaquim Belarmino de Andrade, filho de Biia, irmão de Teteca). Por seu turno, Neide era filha de Lídia Munguzá, renomada parteira, irmã da bordadeira Anita de Chiquinho, esposa de João Munguzá.
Além de deter um amplo conhecimento das matérias lecionadas, apelando para a disciplina e cobrança dos conteúdos ministrados, era extremamente espirituosa, sempre fazendo brincadeiras com o comportamento e o jeito de ser de cada aluno.
Finalmente, um professor para encerrar o chamado Ensino Primário, Sr. Benício, oriundo do Crato, fora sacristão durante muito tempo do Santuário
de Na. Sra. Das Dores, sabe-se que tivera vizinho à casa dos padres, uma escolinha para os habitantes permanentes ou trabalhadores das obras da igreja. Casado com Zulmira, pai de Betânia e Maria do Socorro.
Detinha um temperamento de homem cordato e pronto a servir sua família ou os amigos. Sua rotina se restringia a uma simplicidade franciscana: de casa para o grupo, e vice-versa. Sempre estava na calçada, balançando-se em uma cadeira de fitilho. Quando da sua presença na sala de aula, os alunos compreendiam a obrigação de respeito para com o senhor de cabelos brancos.
Tudo transcorria naturalmente, através de uma fluência presentificada por meio de algo tacitamente acordado entre as duas partes. Eu trago conteúdos para vocês, ministro com todo afeto, estou cumprindo meu papel de professor, sou pago para isso. Todos nós, em uníssono, amamos o senhor, estamos aqui para aprender, exercemos o ofício de aprendizes, decantando as ciências, a matemática e a gramática em um assoalho sólido, para conduzir ao longo da vida, sua lembrança será rememorada como um dos pilares que sustentam nossa presença no mundo.
Para encerrar, penso que ficou bem claro o motivo pelo qual nunca saí da escola. Adianto dizendo que me aposentei como professor da UFRN (Professor de Literatura Portuguesa), carreira iniciada em 1993. Foi algo que eu escolhi, pois tive que me reprofissionalizar, tendo antes feito um outro curso, que nada tinha a ver comigo. Está tudo encerrado, pago, não devo nada a coisa alguma, tampouco busquei o troco.
Logo com dezoito anos, fui contratado pela Prefeitura de Mossoró, professor de Ciências e Matemática, na Escola Municipal Joaquim Felício de Moura, poucas vezes tinha sentido tanto prazer em estar em um lugar, cujos alunos eram operários, pedreiros, padeiros, mulheres que trabalhavam na fábrica de roupas. Eu só sei de uma coisa, fiz a minha parte e fui cúmplice dessas pessoas lançadas para as linhas de pobreza e para o anonimato de uma sociedade extremamente cruel para os menos favorecidos.
Também fui professor de uma escola em uma pequena cidade nos arredores de João Pessoa, chamava-se Cidade do Conde. Sim, eu ia esquecendo de uma coisa. Antes dos dezoito anos, fui professor particular de reforço dos dois filhos da minha prima Zenaide, sobrinha de papai. Como professor particular, também ministrei aulas em Campina Grande, para os filhos de uma senhora chamada Adma Timane, creio que era de ascendência libanesa. Não me lembro dos dois rapazinhos.
Que forças do meu íntimo teriam me lançado ao encontro desse lugar onde encontrei realização e prazer de viver? O que eu era enquanto menino que a escola me outorgou segurança e equilíbrio para tornar os dias detendo um componente que transcendia as atribulações ou o que não saia de acordo com o planejado, quer fosse amizade, que dissesse respeito ao amor? Acho difícil responder, eu só sei que lecionar, pesquisar, ler e publicar passaram a ser o sal da minha vida. Exultate! Jubilate! E nada nem ninguém foi capaz de extrair isso de mim, pois era uma espécie de tesouro que não somente me continha, mas eu o continha. Qual a minha Magnum opus? E eu lá sei! Nada em específico, muito mais o conjunto, a trajetória, o caminho, de cabeça erguida. Pacem in terris.