A Folha Patuense

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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Especial: Isaías Medeiros: consciência e reflexão do fazer artístico

Por:  Márcio de Lima Dantas.

O pássaro é definitivo 

por isso não o procuremos 

 ele nos elegerá. 

Orides Fontela


 

1. 

Isaías Medeiros (Mossoró, RN, 1994). Acredito que seria injusto deixar de  falar de Pe. Sátiro e sua importância na formação do nosso artista. O  sacerdote edificou no bairro Dom Jaime Câmara, onde sempre residiu, uma  série de empreitadas que o tornou bastante querido pelo pessoal habitante  dessa área de Mossoró. Seu trabalho era com a FUNCERN (Fundação Socio Educativa do Rio Grande do Norte). Foi de grande importância esse trabalho social. Podemos arrolar, dentre  outros, a Gruta de Santa Clara, a Creche Erondina Cavalcanti, a Escola Padre  Sátiro (onde o artista estudou durante sua infância e adolescência), a  Biblioteca Dorian Jorge Freire, a FM 105 e o Mosteiro de Santa Clara. A trajetória como artista é bastante singular. No ano de 2015, cursava Letras  na UERN. Em 2017, realizou sua primeira individual exposição: Barroco  tropical: fiesta de colores. Fez um curso com o renomado artista Careca, na  Escola de Artes. Ainda em 2017, realizou outra exposição, celebrando os 50  anos do Tropicalismo, que ficou em cartaz até 2018. Explorou a figura de  Frida Kahlo em 2023. No mesmo ano, fruto de uma viagem a Salvador, realizou uma de suas mais  importantes exposições: “Ori”, em aquarela e caneta nanquim. Segundo o  artista: “Sua trajetória técnica acompanhou seu percurso de vida: começou  com lápis de cor, passou pela pintura em tecido, pela tinta acrílica, pela tinta  a óleo, aproximou-se da aquarela e hoje trabalha principalmente com  acrílica, técnica que lhe oferece a intensidade, a textura e a liberdade  expressiva que sua obra busca revelar”. Com efeito, sua relação com a arte foi bastante precoce, instalando-se desde  a infância, quando, aos oito anos, participou de atividades sociais do bairro  em uma ONG, onde teve as primeiras lições com o artista Altemir (“Fogo”).  Nesse contexto, aprendeu o básico sobre os materiais e técnicas, mas, após o encerramento, passou a desenvolver seu trabalho sozinho, explorando  possibilidades e encontrando sua via ao encontro do que latejava em seu  íntimo. Ainda jovem, iniciou o trabalho com camisas pintadas à mão, que  acabaram sendo suas primeiras experiências artísticas autorais. A última série encontra-se exposta no Museu Lauro da Escóssia: A paleta  mossoroense. Cada série é condizente com o contexto de sua vida e do que  está passando em seu íntimo. É uma espécie de sintoma de estruturas mentais  que não apenas se organizam, mas buscam emergir em categorias  expressionais no qual o artista formata por meio de um desenho e seleciona  a técnica mais condizente com essas imagens querendo vir à tona. Só pode ser um temperamento humilde com relação ao saber: sai em busca  de estabelecer relações e articular novos saberes. Cada viagem que faz  incorpora novos conhecimentos, aprimorando suas técnicas a partir do que  contemplou em artistas que fazem diferente. 

Sucede, desse modo, uma ampliação de horizontes, a partir de ícones vistos  e refletidos durante uma estadia em qualquer lugar. É uma mente aberta ao  novo e às suas eventuais possibilidades. Isso explica que, encontrando-se  sempre inquieto, esse desassossego benfazejo acaba por conduzi-lo a  aprimorar e palmilhar veredas novas, mexendo com uma coisa ou outra.  Basta ver que sempre realiza exposições. 

2. 

Isaías Medeiros domina um discurso sobre si mesmo e sobre sua elaboração  de produtos estéticos. É difícil encontrar essa consciência no meio artístico,  do emprego dos meios de que faz uso, estabelecendo uma relação com sua  trajetória de vida. Está presente a razão. Quando se pensa em arte, evoca-se  de imediato o sentimento, a emoção para se autoanalisar e se interpretar.  Mais ainda, remete o tempo inteiro à sua psiqué, de quem já nasceu  assinalado para ser artista visual. Creio que, mesmo na infância, já havia  esboços de uma consciência que o lançava para os domínios concernentes às  coisas do espírito. Discorre com grande propriedade acerca do que faz, do como faz,  impregnando as séries de um discurso translúcido e dotado de conhecimento  teórico, histórico e estético. Nada seu é gratuito, mas o resultado de uma  pesquisa. Creio que é assim o legítimo artista. É óbvio que tudo germina nos  recônditos do espírito: uma palavra, uma imagem, uma visita a uma exposição, ou seja, através do que já conhece acerca de como funcionam as  técnicas, a paleta, o tipo de pincel empregado. Surge como luz que aumenta sua intensidade, como um sol que nascendo quando a alba desfalece, atenua o limite entre a madrugada e a chegada dos  cavalos de fogo de Apolo, rompendo a leste a linha do horizonte, aportando  o dia com seu intenso sol brilhante, dizendo de mais uma jornada plena de  trabalhos, de labuta edificante. Isso mesmo, de uma rotina que detém a promessa do previsível, instalando se para confirmar que estamos vivos e com desenvoltura para exercer nosso  meio de vida e ainda acrescentar, através de determinada expressão, o que  requer feitura e nossa rubrica, perfazendo um arco vergado acompanhando  as horas por meio da posição do sol. Esse cotidiano, além da sua expectativa, chega cercado por uma aura com  nosso domínio e responsabilidades. Para o artista, é realizar seu expediente  no qual exerce seu ofício (professor de artes no SESC) e, em seguida,  dedicar-se, no tempo que resta, à sua arte, quer seja pintura ou outra forma  de arte visual. Pelo que relatou e escreveu a seu respeito, impele-nos a considerá-lo como  um temperamento apolíneo, vinculado ao regime diurno da imagem (Gilbert  Durand), o qual se compraz com o dia. Desperta nas primeiras horas para  deixar o dia mais comprido, estirando a pele de uma jornada que sempre  deixa coisas pendentes, devido às poucas horas para dar conta de tudo. Creio  que nisso se resguarda uma grande beleza com relação ao carpe diem. Conquanto, temos que aproveitar o dia, alimentando-nos de positividade,  criando ânimo para viver e para elaborar nossos trabalhos, engendrando  tratados consigo mesmo. Por fim, lançando energias de assertividade, de  cunho luminoso, para os labirintos internos que estão presentes em nosso  íntimo, pulsando como coisa viva, plenos de ícones, sinais e marcas de uma  memória, de nossa identidade, de geometrias de pertencimento. Não é isso que nos outorga alento ao viver? Aos sentimentos que geram uma  personalidade, capaz de deixar um lastro de algo edificante e que torna o  mundo um pouco melhor; no caso desse artista, seriam as e pinturas que  nomeiam e constroem uma outra realidade para adicionar à que já estamos  acostumados e nem sempre aceitamos. Sua disposição física no espaço é algo que transmite ânimo de viver, uma  energia vital bastante acesa e acentuada. Seu corpo hirsuto, longilíneo,  queda-se em uma desenvoltura provida de grande naturalidade, de quem se  garante no que faz. Passa a assertividade daquele tipo de pessoa que nada  deve a ninguém. Antípodas ao corpo retesado, as mãos realizam movimentos  com os dedos, como se estivessem buscando se fazer entender, como se  falassem de maneira didática, visando despertar uma empatia com o  interlocutor. Esse corpo estacado evoca o arquétipo presente em D. Quixote de La  Mancha, com todo o seu ímpeto de comportamento e pensar voltados para o  alto, para onde repousa a imaginação, para o que prefere deixar o real  concreto de lado, para um azul representante do que outorga e autoriza a seus  oráculos interiores a buscar respostas do que inquieta, do que se abriu como  fresta no espírito. Afinal, qual o motivo de tantos hiatos, de tantas lacunas?  O que sou eu? Quem sou eu? 

3. 

Vejamos sua série mais importante e mais madura do ponto de vista estético.  Quando viajava para Salvador, durante o percurso, imagens involuntárias  povoavam sua cabeça, evocando quase sempre a imagem recorrente de uma  sereia. Também não sabia o motivo, nem como chegara para chafurdar em  seu íntimo. Bem, se foi. Na capital da Bahia, empreendeu visitas a muitos  lugares relacionados à nossa cultura. Então, em uma visita ao Memorial Mãe Menininha do Gantois (antigo  Terreiro Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê), atento a tudo, não deixou passar nada  acerca da mitologia que serve de lastro e funciona como culto religioso,  regendo os rituais do Candomblé, sobretudo os do Gantois. Esteve à frente  por 66 anos a Maria Escolástica da Conceição Nazaré, a célebre Mãe  Menininha. A exposição intitulada Ori (“cabeça”, em iorubá) ocorreu em 2023. São 15  trabalhos em aquarela. Nela o artista respondendo a essa técnica de pintar,  não muito fácil, na medida em que deve haver agilidade, rapidez e esmero  nas pinceladas, escandindo uma cadência, um ritmo para a compreensão de  como o tempo funciona em uma tinta à base de água e em papel de maior  gramatura. A exposição, além da representação estética dos mitos, das chamadas  entidades do Candomblé e de seus orixás, resguarda uma pegada de  informação cultural acerca do que é essa manifestação religiosa. Inicialmente  houve um vernissage Mont petit, com café e livros. Houve também a mesma  exposição na Sala Joseph Boulier, no Memorial da Resistência. 

4. 

Há que apresentar o Candomblé. Diferente das religiões cristãs, cujo culto é  marcado pela melancolia, pelo sentimento do pecado, pela autopunição, em  que a dor e o sofrimento funcionam como se fossem um bilhete para a  entrada nas regiões celestiais. O Candomblé de matriz afro-brasileira exalta  uma alegria com hieratismo: durante o culto, dançam e cantam no ritmo do  atabaque e de outros instrumentos, com respeito e graça. Com efeito, os orixás não habitam uma cabeça desequilibrada, uma mente  desassossegada em demasia. Faz-se necessário deixar-se guiar por bons  pensamentos e boas vibrações nas atitudes e nos atos requeridos no  cotidiano. “Ori”, a cabeça, sintomaticamente a parte mais alta do corpo, se  conecta com o sagrado, lançando seus vetores vibracionais para se articular  com as forças físicas do bem. Eis alguns exemplos de orixás: Oxum, Ogum,  Iemanjá, Oxalá, Iansã-Oyá, Xangô, Oxumarê, Obaluaê-Omolu, Exu. A  curadoria da exposição foi de Jamira Lopes, com 15 obras aquareladas sobre  papel Canson. Acontece que, com Isaías Medeiros, ocorreu uma ressignificação da forma  como representou os orixás. Não da maneira ataviada e um tanto barroca  como fomos acostumados a ver. O artista optou por uma economia de meios,  um minimalismo que teve seu aliado no desenho, bem diferente de outros  trabalhos seus, nos quais a cor suplanta o desenho, fazendo-se senhora do  lugar. O desenho desponta como o que confere um delineamento do todo e das  partes dos orixás. Acompanha todos os detalhes presentes na configuração  do corpo, feito a partir de lápis e caneta nanquim, fazendo aparecer os  atributos que dizem respeito aos representantes máximos dessa religião. A cor encontra-se presente, caudatária do desenho. Essa maneira de  organizar um trabalho estético com aquarela e desenho aparente não é muito  comum. Quase sempre a aquarela aparece em uma intacta transparência de  cores e sombras, conformando a paisagem ou uma pintura de caráter mais íntimo. Não esquecer que essa técnica, basicamente, é de caráter solar, com  aproveitamento da luz e de suas possibilidades. Entretanto, também é  possível fazer uso dela não como secundária, mas com manuseio  parcimonioso. É o caso das explanações de Isaías Medeiros: fez uso de  maneira comedida, precisa e de grande beleza plástica, usando poucos  elementos para configurar as vestimentas e o movimento de todos os 15  trabalhos. Todos os orixás detêm um olho fechado: no lugar de um olho encontra-se  um espaço negro. Isso é bastante significativo no contexto de uma  representação diferente da que fomos acostumados a ver. O olho aberto  contempla a realidade e o seu derredor, em uma atitude de observar a  gramática da vida social, determinando o comportamento de seguir as regras  do bem viver e de uma volta para lidar somente com o bem. Assim como  toda religião, existe o resguardo de preceitos visando ao ser e ao estar em  permanente sintonia com as forças da natureza, encarnadas nos orixás. O olho fechado volta-se para o interior, buscando mapear seus sentimentos  e o que de inconveniente ou de mal possa ser extraído, outorgando à pessoa  uma possibilidade de ser melhor como gente face a seu semelhante; em um  estar no mundo, procurando sempre palmilhar as veredas nas quais o sensato,  o exercício diário de bons pensamentos se reveste da maior importância, na  medida em que prende os maus pensamentos e ordena-os, em uma atitude de  insubmissão perante o que existe de sombrio nos lugares abscônditos do  nosso interior. 

5. 

Por fim, é preciso trazer as quatro telas representando a amada e reverenciada  Santa Luzia, padroeira da cidade, sede de bispado (saudosos e queridos  bispos: D. Gentil Dinis Barreto e D. Freire), junto com Caicó e Natal. Santa Luzia (“luz”) foi uma mártir do século III. Representa a visão, a  luminosidade e tudo o que se relaciona ou necessita da clareza. Encontra-se  vinculada aos ofícios que exigem uma visão mais aprimorada, como as  costureiras, ou profissões que lidam com coisas miúdas, precisando ter uma  visão mais esmerada. Seus atributos são a folha de palmeira dos mártires e  uma bandeja com os olhos. Nasceu em Siracusa, Itália. Isaías Medeiros ungiu-se de grande liberdade estilística para compor seus  quatro ícones de Santa Luzia. O primeiro apresenta a imagem com apenas um olho, elaborada com lápis nanquim e aquarela. O desenho é inquieto no  branco do papel, com predominância de linhas curvas. Dispõe das cores  atributos desse ícone: vermelho e verde. O traço é ágil, minimalista, apenas  sugere a imagem para quem está familiarizado (os mossoroenses) com essa  representação. A segunda tela centra a imagem rodeada por um círculo amarelo ao fundo,  salientando a figura principal, com um resplendor. Para um lado e para outro,  palmeiras adornam a presença da mártir e três chananas separam o verde das  palmeiras. A tela perfaz uma simetria bilateral. No primeiro plano, bem  próximo do espectador, dois triângulos representam as belas salinas de Areia  Branca e Macau. Na metade esquerda, um galo-de-campina, uma coroa-de frade e uma bromélia florida, plantas das regiões xerófilas do semiárido  nordestino. A terceira é uma homenagem à festa de Santa Luzia, com grande  ajuntamento de pessoas vindas de regiões circunvizinhas. A imagem que o  artista apresenta não é a tradicional, mas a escultura de madeira da santa,  com seu resplendor de ouro, depositada na sacristia, antiga e original.  Encontra-se ataviada de azul, vermelho e amarelo. 

A catedral, ao fundo, referenda a festa animada, com forte pegada pagã nas  ruas que a circundam: mesas para bebidas e comidas. O que foge a esse  espírito de animação nada religioso é a procissão. Com efeito, um enorme cortejo, uma multidão acompanha o andor de Santa  Luzia. Grande parte está pagando promessas relativas a problemas com os  olhos ou a visão; alguns seguem de pés descalços. Não há como deixar de  admirar essa beleza, do que segue tranquilo por algumas ruas em torno da  Praça Vigário Antônio Joaquim. A imagem encontra-se circundada por uma  coroa de rosas vermelhas e brancas, alternadas. No lado esquerdo, sobressai  uma mão com um terço e duas fitas, vermelha e azul, amarradas no punho;  do lado direito, outra mão com uma vela, representando a luz que emana  dessa santa. A quarta tela é de grande beleza cromática. Um olho que se encontra na mão  da imagem, como um redemoinho azul, parte da imagem da sacristia,  rodeando-a de um azul com riscos brancos, como se quisesse apresentar a  figura. A tela quase se aproxima de uma simetria radial. Junto ao azul, temos  o verde. Justaposto a este, o vermelho. Nesse mundo turvado e de tanta coisa feia, mormente na moda, em que as pessoas estão cada vez mais  amarmotadas, vamos rogar ao mito de Santa Luzia que nos dê uma visão  seletiva, bem como um aprimoramento da visão periférica, para nos  defender.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Especial: César Revorêdo: história íntima da solitude

 Por Márcio de Lima Dantas 

O fim 

limite íntimo 

 nada é além de si mesmo 

ponto último. 

Orides Fontela 

1. Prelúdio 

Essa nova série do artista visual Cesar Revorêdo apresentou-se em duas  exposições individuais: Alma Mater (2024, no seu ateliê, que também abriga  sua própria galeria: Cesar Revorêdo: Gabinete de Arte) e Todas as mulheres  do mundo (São Miguel do Gostoso), que entregam sua proposta de tratar de  uma condição concernente ao ser humano: a solidão e os diversos modos de  abordá-la, a partir do momento em que somos direta ou indiretamente  arredados para esse estado que integra a condição de todo ser. 

Destacando a mulher como ícone, esse espaço nos conduz a refletir sobre um  dos dois recursos presentes na linguagem: a metonímia, integrante dos dois  eixos que estruturam a linguagem (Ferdinand de Saussure). Esse eixo é o da  combinação (horizontal), distinto do eixo paradigmático, que diz respeito à  seleção (vertical). 

Consabido é que a metonímia requer uma relação objetiva entre as duas  partes que se aproximam para comparar, para colocar uma coisa no lugar da  outra. Dessarte, a metáfora é calcada no livre-arbítrio de quem elabora. Ou  seja, não há necessidade de interpor entre as duas partes comparativas uma  relação de pertença, é pura analogia, haja vista o que o Surrealismo de  Salvador Dalí conseguiu engendrar com total liberdade o fato de colocar em  uma tela o que quer que fosse: triunfo e bom uso da metáfora. 

Voltando às mulheres. Sim, é bom dizer que o corpus por nós manuseado,  para efeito de extrair possíveis significados, foi somente treze telas  apresentadas por Cesar Revorêdo. A mulher nessa série, protagonizando uma 

imagética na qual se encontra só e sem rosto, nos permite evocar que ela é  uma metonímia do ser humano. Sua aura e os poucos elementos  circundantes, em um excelso minimalismo difícil de alcançar em arte,  constroem um discurso de uma representação da parte pelo todo. 

Com efeito, essa aludida solidão não diz respeito somente ao feminino, pois podemos pensar em um grande círculo capaz de agregar toda uma sorte de  singularidades de gêneros. Há que pensar em um “nós”, para que o círculo  retesse seu perímetro, e considerar que, um dia ou outro, a depender da  Fortuna ou de Cronos, cada um haverá de provar do travo amargo dessa raiz.  Ela que lança muitos a negociar todas as boas cartas dos naipes de ouros ou  de paus, em função de nunca estar só, nunca estar sozinho, nunca quitar as  dívidas consigo mesmo. 

E, daí por diante, incorporar uma outra pele, marcada por estar diante de si  sem as interpelações do entorno, do discurso alheio, dos chavões tediosos  das falas familiares. 

2. Interlúdio 

As telas registram a mulher com uma parcimônia de formas e um  minimalismo cromático, margeando uma só personagem retratada: um  personagem feminino sem o traço de olhos e bocas, configurando um  semblante com uma expressividade que se bandeia para as fronteiras dos  domínios de, até certo ponto, um hieratismo e uma subjetividade voltada à  introspecção. 

O talhe longilíneo parece querer falar de um corpo, resultado de múltiplas  experiências vivenciais. Há um silêncio presente, tal qual uma necessidade,  no resguardo da verticalidade corporal (evoco aqui o arquétipo presente nos  personagens de Dom Quixote de La Mancha), embora não se possa  considerar como regra geral. A obra é prosa? É ficção: o biótipo esguio do  Quixote, lançando-se mais para o alto, congrega as pessoas mais afeitas à  imaginação, à inventividade, distanciando-se do real empírico. Sancho  Pança, no seu jumento, olhando para o chão, resguarda um biótipo mais  atarracado, parrudo e preso às leis da razão, do sensato, questionando o  excesso de imaginação. 

Ainda as mulheres. Elas estão vestidas com indumentárias de cores vivas,  como o verde-escuro, o azul-real, o laranja e o preto. A luz emana, parece,  da própria personagem, em uma atmosfera circundada sempre por um 

retângulo na vertical. Aquela encontra-se no centro da cena. Defronte de si,  uma cadeira bastante simples, sem o conforto de um sofá, sugere o hábito de  estar acostumada a se amoldar em tudo o que lhe chega à frente, bem como  o merecido descanso momentâneo para refratar a fadiga, inerente aos seres  humanos com maior autonomia subjetiva. 

Toda a aura que arrodeia a cena é como se o aludido “nós” passasse a viver  e ocupar seu tempo através de sua própria luz. Uma espécie de sol íntimo a  iluminar apenas o essencial, o parco, o suficiente de um espaço conseguido  não sem luta: consigo e com as regras sociais. 

Há duas outras coisas que esqueci de enumerar dos elementos da composição  de algumas telas: uma bicicleta e os gatos. A bicicleta, sem a garupa, terá  sido acidental, com o selim e uma cesta na frente do guidão? Ou quer insinuar  que só cabe uma pessoa, um “nós” sem criança ou adulto para conduzir ou  ser conduzido. 

Com relação aos gatos, em uma tela aparecem dois, em outras apenas um.  Insisto ainda na incerta adoção de algum animal... pode ser um sintoma. Os  gatos são silenciosos, quietos, independentes... diferentes dos cães, com sua  insistente busca de atenção, guarida, ordens, cumplicidade. Há quem deteste  cachorros. 

Consabida é a grande quantidade de casas de pets na paisagem das ruas.  Basta prestar atenção: a mesma coisa acontece com lojas de aparelhos para  audição. O que está acontecendo para que haja tal demanda? Aspiremos com  profundidade o Ar do Tempo (Espírito da Época). Só assim a paisagem se  desnuda com seus símbolos, plenos de veias que latejam um discurso a ser  decodificado por quem gosta de mirar com ironia o desmantelo de uma  sociedade completamente irrecuperável, caminhando por veredas equívocas. 

Todo animal em casa conduz o tutor ao domínio sobre o bicho. Com sua voz  ativa, a criatura reconhece como seu proprietário obedece à assertividade,  acostuma-se com a voz. Por outro lado, é mais fácil conviver com animais  do que com gente. Conheço gente que é insuportável como amigo, com suas  indiretas e insinuações infantis, mas é este mesmo que adotou doze gatos,  que ficam por todo canto da casa e dormem na cama com ele. 

Seguindo essa linha de raciocínio, somos conduzidos a refletir acerca de uma  solidão lancinante. Não uma solidão por causa de uma perda, menos ainda a  intensidade de uma solidão cruel, mas uma dificuldade de estabelecer um  relacionamento interpessoal com o mínimo de etiqueta, educação e o sempre  bem-vindo pudor.

Contudo, quero exaltar e exultar um estado de solitude alcançado por meio  de exercícios mentais nos quais se apela para a razão, no embate com a  experimentação do chamado real concreto. A desdita de uma solidão opaca  foi superada. Signo do infortúnio para todos que estão encenando no grande  palco do mundo, com seu cotidiano pleno de rotinas. No mau sentido, pois a  rotina libera um estar presente no dia a dia, com seus relacionamentos  fraternos ou íntimos eivados de palavras por dizer, de ações mal feitas, de  pouco ânimo para a vida e para o que chamam de felicidade. 

Ora, quando se fala de rotina, há que evocar outra espécie de pessoa: os  artistas, os cientistas ou aqueles que amam seu trabalho. É claro que o  cotidiano, com sua previsibilidade, se faz necessário, dado o fato de ser um  assinalado para aquele ofício ou ocupação principal personalizada. Nada  melhor do que despertar sabendo o que vai fazer das horas em sua escansão  pré-determinada. Se Cronos caminha com largas passadas, devorando tudo  o que for vivo e lateja, então é preciso atalhar até certo ponto, já que não podemos apostrofar ou evitar esse ritmo de pressa. 

Porém, existe essa possibilidade, essa alternativa, face aos infortúnios  cravados pelas deusas do destino, as implacáveis Parcas. Até os deuses da  antiga Grécia estavam subordinados às três: Cloto, Láquesis e Átropos.  Sempre fiando e tecendo o fio da vida, uma labuta sem fim, até chegar a hora  de cada um, encerrando a encenação no palco da vida. Essas três pouco se  importam com quem conduz bom ânimo ou com quem vive sem apego à  vida. Apenas algo que é inerente a todos: cansa-me ser (Orides Fontela). 

3. Toccata and fugue  

Por fim, através de expedientes das áreas subjetivas, habitadas nos distritos  onde jaz tudo o que é sombra, de tudo o que é surdamente agressivo, de tudo  que risca no caderno tendo seus vocabulários próprios de defesa. Nessas  planícies nas quais encontram-se as fortificações da cidadela do próprio  corpo, como também os fármacos presentes em qualquer constituição física  (o corpo detém mecanismos intrínsecos de operar ou superar qualquer  enfermidade: mental ou física). 

Se a gramática é essa, o sujeito/a escolhe esgueirar-se, saindo ou se  afastando, fortalecendo seu amor próprio, sem que o outro perceba o que se  organiza contra quem está do lado. Desse modo, implementa-se um processo 

de lenta autossabotagem: o que interessa é fomentar a desdita e,  silenciosamente, anular o que fora paixão ou amizade (Eros: amor com  contato íntimo; Philia: amor do companheirismo, amizade, fraternal). 

A bem da verdade, não há quem suporte um relacionamento mórbido, pleno  de limites e de “não pode” nas atitudes ou nas palavras, quando o encontro  entre um e outro é permeado por uma linguagem que ninguém mais acredita: murmúrios secos. Uma obediência simulando a edificação do que o outro  demanda. Ou pior: ninguém tem mais nada a dizer (solidão a dois). 

Rasga-se o tecido, como sucedeu ao véu do Templo de Sião. E torna-se  impossível cerzir as duas partes fendidas. Um fenômeno assoma, sem  possibilidade de retorno, sem salvar o amor, a amizade ou os laços  familiares. 

Esgueira-se, sai ou afasta-se cautelosamente, sem dar na vista. Resta o ato  de contemplar e remodelar, por meio de uma qualquer sabedoria. O que é a  sabedoria, após uma vivência com vários tipos de relacionamentos  interpessoais? Uma decantação de experiências do espírito, configurando um  substrato quase sempre aparente, conduzindo-nos a contemplar com lucidez  e desconfiança o que nos chega com interesses sem muita especificação. 

Mas também, mesmo estando o amor próprio fortalecido pelo ruminar de  que tudo poderia ser diferente, ou seja, uma relação como um locus amoenus,  no qual se cuida e é cuidado, cessando o excesso de movimento no jeito de  caminhar ou na forma como se olha. 

Em resumo, seria um descanso, um alívio, para as lidas domésticas,  mormente para os/as que edificam algo para acrescentar aqueles que tratam  das coisas referentes ao espírito. Creio que, para esse tipo de pessoa, faz-se  necessário o sossego, visando plantar suas obras em vasta seara. Aqueles que  amam de verdade serão os segadores, livres de qualquer impureza. 

4. Terminus  

Como saber o que resguarda um interessado? Pode-se consultar a pitonisa  dos oráculos interiores. Aqui será encontrada a compostura. Não exata, mas  símbolos capazes de encontrar a compostura de como se deve seguir e rasgar  interiormente tudo o que se refere ao chamado novo. Da mesma maneira que  se pôs um pé na frente, pode-se, presto, recuar.

Ora, o que se ganha com essa forma de ser? Creio que a superação de tudo  que é fenda, hiato ou lacuna. Acostumar-se com o que não é mais sortilégio,  o que fora encantamento durante os primeiros tempos de apostar em alguém.  Mas, após o escorrer do tempo na ampulheta da vida, faz-se necessário  aprender a direcionar o fascínio. 

Ao contemplar as mãos em concha, atesta-se que estão vazias. Nada restou,  perda de tempo. Nesse sentido, conclui que viera a perder seu precioso tempo  nesse entrelaçamento de outrora. O tempo de germinar o afeto tem, em todos,  uma determinada duração. Teimar com Cronos já vai se sabendo perdedor.  O tempo faz e desfaz (Fiama Hasse Pais Brandão). 

Não obstante, pode-se escolher fechar a porta, passar a chave e reclinar-se  na janela, sentir a brisa que assoma fresca da rua. Quer dizer, dar mais uma  chance às Parcas, enquanto a mais cruel das três corta o fio da vida,  encerrando nossa passagem por aqui. Seria esta uma eventual alternativa,  dada a fadiga do que nunca deu certo. 

Ou seja, aderir de uma vez à doce solitude, com seu remanso, com a calma  dos nervos, dos músculos, dos pensamentos que não mais incomodam. O que  fazer, então? Uma das minhas grandes amigas vive viajando pelo país e pela  Europa, com amigas, sempre. E sempre muito alinhada nas fotografias que  me envia. 

Depoimentos de pessoas inteligentes e fisicamente puro charme, como  Marília Gabriela, Zizi Possi, Maria Bethânia e Ney Matogrosso, falam com  naturalidade de viverem sós, cultivando a solitude. Pouco querem saber de  travar novos relacionamentos quando já provaram de muitos sabores, de  muitas experiências, de muitos amores. 

Até o encontro íntimo, casual, que não determina compromisso, assim  mesmo refratam. A bem da verdade, certas coisas da vida engendram um  enorme cansaço. Preguiça para sair de casa, ouvir o que já se sabe, sentir o  que já se ouviu. Melhor mesmo é arear o alumínio de uma rotina previsível. 

E para não saírem falando que sou démodé, posso discorrer um pouco acerca  das combinações binárias que regem a base da computação. Ou seja, só  existem duas possibilidades: 0 ou 1. A partir desses dois algarismos  procedem-se outras combinações, a saber: 10, 00, 01, 11. Como podemos  ver, aquele que elegeu a solitude como opção de vida restringe-se às três primeiras combinações. Quer dizer, o estado de 11 já não lhe diz: ou é 10 ou  é 01.


sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Especial: Barbosa Lima Sobrinho e a Revolta de Princesa

Por: José Tavares de Araújo Neto.


Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho (1897–2000) foi um dos mais influentes jornalistas e intelectuais brasileiros do século XX. Pernambucano do Recife, advogado, escritor, historiador, professor e político, foi também uma das maiores vozes da imprensa nacional. Durante sua longa vida pública, presidiu a Associação Brasileira de Imprensa, foi deputado federal, governador de Pernambuco e membro da Academia Brasileira de Letras. Sua carreira na imprensa incluiu colaborações em periódicos como Diário de Pernambuco, Jornal do Comércio, Gazeta, Correio do Povo e Jornal do Brasil, onde escreveu por mais de setenta anos, até sua morte aos 103 anos. Mas, em 1930 — momento decisivo da história política nacional —, Barbosa não era apenas jornalista: era colunista de um dos jornais mais importantes de Pernambuco, o Jornal do Comércio, pertencente à família Pessoa de Queiroz, que figurava entre os principais incentivadores e financiadores do movimento armado de Princesa. Essa informação, longe de diminuir sua credibilidade, apenas revela o espaço político em que sua pena se movia: um lugar de combate, confronto e resistência. E é nesse contexto que surge sua crônica “Porque se sacrifica o sertão”, publicada no Jornal do Brasil, em 1º de abril de 1930. A crônica é uma peça de intervenção política. Barbosa Lima Sobrinho reage contra o que ele identifica como manipulação da opinião pública. Enquanto a imprensa urbana — especialmente a ligada a João Pessoa — pintava o presidente da Paraíba como herói civilizador, Barbosa expõe, com ironia cortante, o processo de demonização do coronel José Pereira Lima, líder da resistência sertaneja de Princesa. Ele abre o texto afirmando que ler as notícias sobre o conflito é “uma das coisas mais divertidas” daqueles dias. Não tarda em mostrar o motivo: de repente, João Pessoa vira um santo e José Pereira, um demônio. Antes da revolta, afirma Barbosa, ambos eram tratados como “anjos da mesma corte celestial”. A guerra os transformara — não a essência, mas a narrativa. “Somente naquele dia um se tornou o nefando e o outro, o herói.” Na crônica, o conflito não nasce de ideologias, mas de vaidades. José Pereira reivindica a inclusão do ex-governador João Suassuna como candidato a deputado federal. João Pessoa recusa e monta, sozinho, sua chapa política — um gesto que Barbosa qualifica de autoritário, sobretudo para alguém que se dizia liberal. Quando percebe que José Pereira mantém apoio popular e força eleitoral, João Pessoa aumenta a tensão: demite autoridades municipais de Princesa, ocupa militarmente Teixeira e ameaça fazer o mesmo em Princesa. Era o sertão encurralado. “Nesse momento, levantou-se o Sr. José Pereira, tomando a atitude que o presidente da Paraíba lhe impunha: a defesa armada.” Barbosa não suaviza os fatos. Ele assume posição. Na crônica, o sertão não inicia a guerra — ele resiste. A força de Barbosa Lima Sobrinho está no modo como ele transforma informação em denúncia. Ele acusa João Pessoa de tomar decisões sem consultar lideranças políticas locais; perseguir João Suassuna por rivalidades internas; sacrificar o sertão em nome de ambições pessoais e familiares.

“O Sr. João Pessoa [...] sacrificou o sertão.”

Essa frase não é argumento. É sentença. E Barbosa sabe o peso de cada palavra. É preciso destacar: Barbosa Lima escrevia em um jornal pertencente à família Pessoa de Queiroz, parte interessada no conflito e aliada de José Pereira. O cronista se torna assim uma voz do sertão dentro das páginas da grande imprensa urbana. Mas não é mero porta-voz de interesses: é um opositor consciente. Sua trajetória posterior — enfrentando Getúlio, a ditadura militar, Collor — prova que Barbosa não temeu contrariar poderes. Em 1930, sua trincheira era o sertão. “Porque se sacrifica o sertão” não é apenas uma crônica jornalística. É testemunho de época, visão de dentro, texto de combate. Barbosa Lima Sobrinho não se limita a narrar. Ele interpreta. Ele denuncia. Ele toma partido. E toma partido pelo sertão. Contra o discurso oficial, contra a ordem dominante, contra a narrativa cristalizada depois: Barbosa Lima Sobrinho ergueu a voz — e sua voz ecoou a voz de José Pereira. A crônica se torna, assim, documento fundamental para se compreender o movimento armado de Princesa não como aventura isolada, mas como reação política a um projeto de poder que excluía o sertão e negava sua representação. Barbosa enxergou antes de muitos: não se sacrificava apenas um homem — sacrificava-se o sertão. 

Especial: A 3ª edição do romance Agonia na Tumba, de Tarcísio Pereira

Por: José Tavares de Araújo Neto


O escritor e dramaturgo paraibano Tarcísio Pereira, membro da Academia Paraibana de Letras (APL) e da Academia de Letras de Pombal, lança nesta quinta-feira, 15 de novembro, às 18 horas, na sede da Academia Paraibana de Letras, a 3ª edição do romance Agonia na Tumba. O relançamento celebra três décadas de produção literária e intelectual do autor pombalense que se tornou referência na ficção e no teatro paraibanos. Nesse percurso, Tarcísio reúne 27 livros publicados, além de expressiva atuação na dramaturgia, assinando peças, roteiros e direções teatrais que consolidam seu nome no cenário cultural do estado. Agonia na Tumba é um romance singular e ousado, que conquista o leitor desde a primeira página pelo impacto de sua ideia central. Um homem acorda dentro de um caixão, já enterrado, e precisa enfrentar, no absoluto breu da morte, a própria consciência em farrapos. A obra, narrada em primeira pessoa, transforma-se num mergulho angustiante na mente de alguém que desperta no limite entre a vida e a decomposição — e é dessa fronteira que Tarcísio Pereira faz surgir um texto intenso, visceral, quase alucinógeno. O enredo permanece inteiramente dentro do túmulo. Não há cenários externos, personagens em movimento ou grandes ações. Tudo se resume à memória do protagonista, aos seus pensamentos desconexos, aos delírios e à lenta reconstrução dos fatos que o conduziram àquele destino. Essa escolha extrema — sem flashbacks convencionais ou pausas — intensifica a claustrofobia da narrativa. O leitor é aprisionado junto ao narrador e respira o mesmo ar rarefeito. A prosa de Tarcísio se apoia na oralidade, em frases que seguem o ritmo do pensamento atropelado e em imagens fortes, muitas vezes brutais. O texto é profundamente sensorial. O calor do espaço fechado, a falta de ar, o suor, o desespero físico, os grilos, os estalos do caixão e a batida surda das tentativas de fuga fazem da leitura uma experiência quase física. A narrativa oscila entre lucidez, delírio, memória e fantasia, como uma mente que luta para organizar o caos. Entre recordações de infância, culpas, violências, bebedeiras, traições, vaidades e fraquezas, revela-se o retrato de um homem comum — imperfeito, às vezes mesquinho, mas profundamente humano. Os momentos finais antes da suposta morte surgem fragmentados, ganhando forma pouco a pouco, como se o leitor participasse da montagem de um quebra-cabeça emocional. O suspense não gira apenas em torno da possibilidade de escapar do túmulo, mas também da busca por compreender como ele chegou ali. O romance dialoga com o thriller psicológico, com o fantástico e até com o horror, sem perder o vínculo com a tradição literária do Nordeste. Em 1992, ao apresentar a obra, W. J. Solha destacou o ritmo cinematográfico, a atmosfera que lembra Stephen King e o afastamento da rigidez regional, qualidades que o livro realmente apresenta sem deixar de carregar marcas afetivas e culturais paraibanas. Agonia na Tumba é curto, mas densíssimo. Prende, sufoca e inquieta. Funciona como uma reflexão sobre a morte, o medo ancestral de ser enterrado vivo, os remorsos que perseguem qualquer vida e a fragilidade da memória humana. Ao final, o leitor tem a impressão de ter atravessado um pesadelo daqueles que permanecem mesmo depois de acordar. É uma obra marcante, madura e surpreendente, que confirma Tarcísio Pereira como um dos grandes nomes da ficção paraibana contemporânea.


Especial: Damião Costa: a pintura como morada do instante.

Por Márcio de Lima Dantas.

O artista Damião Costa (São Vicente, RN, 1987), desde a infância, quando  os olhos se detinham nos leilões televisivos de pintura, pressentia, ainda sem  nomear, o fulgor de uma vocação. Autodidata no desenho, guiado mais pela  intuição do que por método, haveria, contudo, de encontrar orientação nas  mãos de um mestre distante, João Rodrigo, de Santa Fé do Sul (SP), cuja  presença virtual lhe abriu as fendas do ofício e lhe revelou os artifícios secretos da cor e da forma. Por intermédio duas amigas generosas, Vera Lúcia Lobo e Sônia, que lhe  custearam o aprendizado, iniciou-se na pintura a óleo sobre tela, tendo como  instrumentos tintas Corfix e Acrilex e o pincel como extensão natural da  alma. Desde então, o gesto, antes hesitante, transformou-se em verbo visual,  e o simples ato de misturar pigmentos passou a equivaler a um modo de  compreender o mundo: corpo, mente e espírito alinhados no mesmo  compasso. Com efeito, é mister dizer que o universo pictórico de Damião Costa se  estrutura sobre a ausência da figura humana — uma ausência que não é  carência, mas plenitude. As suas telas são espaços onde o humano cede lugar  ao respiro da paisagem, à mudez eloquente das coisas simples: um copo e  um limão, uma casinha solitária, um barco à deriva, a luz de um amanhecer  rural. O que vibra nessas composições é a delicada liturgia do instante, o  reluzir de um reflexo na água, o brilho luzidio da fruta madura, a  transparência do copo que guarda o silêncio. Há ainda, em suas telas, um diálogo tácito com a própria ideia de tempo. O  tempo, em Damião, não corre. Suas telas parecem suspender Cronos, esse  deus apressado, e devolve-nos a lentidão de Kairós, o tempo da oportunidade  interior. Em cada Casinha à beira da estrada ou Vida no campo, sentimos  que o artista restitui à imagem o seu direito à duração. O instante, cristalizado na tela, converte-se em eternidade sensível. É o  mesmo gesto dos monges que, ao varrerem o chão de pedra, transformam o  ato banal em contemplação. Assim também o pintor: seu trabalho é uma  forma de meditação materializada em pigmento. E, cada cor aplicada, ora  densa, ora translúcida, é como um mantra visual, repetido até que a  tripartição corpo, mente e espírito se unam no mesmo compasso de luz. Ora, vivemos tempos em que a pressa é o novo dogma, um estilo de vida, a  nova liturgia. Tudo é instantâneo, volátil, substituível. Neste cenário, a  pintura de Damião Costa resiste como um gesto de lucidez. Ela nos ensina a  olhar novamente, a desacelerar o pensamento, a ouvir a respiração do mundo.  Com efeito, em um tempo que busca o espetáculo, ele escolhe o sossego. Em  uma sociedade que confunde valor com visibilidade, ele trabalha na  penumbra, no silêncio das horas no qual o espírito se faz mais nítido e queda se em necessário sossego. Por isso, suas obras não precisam de alarde,  bastam os murmúrios. Elas reluzem, mas com a luz suave das coisas que não  têm pressa de se mostrar. E, se há algo que atravessa a obra de Damião Costa, como um rio subterrâneo  a murmurar sob as cores, é a luz. Não aquela que cega, mas a que revela.  Não a luz do meio-dia, brutal e sem mistério, mas a da aurora e da tarde,  quando o mundo parece lembrar de si. É uma luz morna, que não incide,  envolve tudo ao seu redor. Ela se insinua nas dobras do horizonte, acaricia  os contornos das casas, toca o espelho das águas com o pudor de quem pede  licença. Portanto, a luz, em Damião, não é mero artifício técnico: é linguagem. E o  que ela diz é silêncio. Cada quadro parece sustentar uma respiração contida,  como se o mundo inteiro, por um breve instante, tivesse parado para ouvir o  próprio coração. A luz não ilumina o objeto, escuta-o. Ouve a dinâmica do campo: a palha, a pedra, a fruta, o azul rarefeito do céu. Perscruta até o que  já não soa. Há, nesse modo de pintar, algo que remete ao que Gaston Bachelard chamou  de “poética do repouso”. Esse instante no qual o olhar se recolhe para dentro  das coisas e descobre nelas uma morada. Em Amanhecer na roça, por  exemplo, o dia não começa: é anunciado pela deusa Eos (Aurora), como  quem abre lentamente uma janela sobre o passado. Em Casinha no sítio, a  luz parece vir de dentro das paredes, como se a casa tivesse alma. Entre as muitas paisagens do artista, há uma que se destaca não pela cor ou  pela técnica, mas pela densidade simbólica que nela habita. Estou falando de  Barco à deriva, a tela em que o artista parece condensar toda a sua metafísica  do silêncio, todo o rumor contido de sua poética. O barco, isolado sobre um  lençol de águas imóveis, sem vela, sem remos, sem tripulantes, é mais que  imagem: é emblema. Nesse sentido, nesse barco que flutua entre o céu e a água, podemos  reconhecer algo do destino humano: a consciência de estar lançado em um  espaço sem porto, conduzido por forças invisíveis. É o mesmo sentimento  que anima os versos de Fernando Pessoa quando escreve, em Mensagem:  “Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu”. Eis  o paradoxo que o pintor parece intuir com o pincel: o risco e a beleza  coexistem na mesma superfície. Em Barco à deriva, o horizonte é amplo, mas a travessia é íntima. Não há  vento, nem rota, nem promessa, apenas o flutuar. E é nesse flutuar que a tela  se torna espelho: o espectador vê-se ali não como passageiro, mas como o  próprio barco, entregue à correnteza do tempo. Assim, a pintura, mais do que  representar, experimenta o existir. É expressão do ser. Na verdade, não se trata de um naufrágio, mas de um estado. O barco não  está perdido, está em repouso. É uma imagem de suspensão, um instante  anterior ao verbo, quando o mundo ainda não precisara de nomes. Damião  pinta à deriva como quem compreende que o destino não é chegar, mas  permanecer em travessia, que o repouso é também um modo de seguir. A paleta é sóbria, quase ascética: azuis dissolvidos, ocres pálidos, brancos  que lembram o brilho do sal. Tudo ali parece conter uma luz que não vem do  sol, mas do próprio interior da água. A serenidade do quadro é quase  litúrgica. Por isso, Barco à deriva não é apenas paisagem, é quase uma  confissão. Há algo de litúrgico nessa imobilidade. Como se o pintor houvesse  percebido, à maneira dos antigos místicos, que a salvação talvez resida na  aceitação do fluxo. O barco, sem timoneiro, torna-se figura do abandono  fecundo no instante em que o homem, cansado de querer governar o mar,  entrega-se à deriva e encontra, enfim, o centro do círculo. Dessarte, o que há nesse quadro é uma ética da contemplação. O artista não  pretende narrar a aventura do homem sobre o mar, mas o instante em que o  mar o contempla de volta. E nesse olhar recíproco, nesse encontro mudo  entre água e consciência, a pintura realiza o que a filosofia apenas ensaia: a  reconciliação entre o visível e o invisível, o finito e o eterno. Portanto, a opus magnum de Damião Costa é também sua metáfora  definitiva: a arte como deriva, o pincel como leme entregue ao vento, o olhar  como vela aberta ao acaso da luz. O artista não conduz, é conduzido. E talvez  seja por isso que suas telas nos devolvem ao essencial: o sossego de quem, habitando o tempo de Kairós, compreendeu que não há porto mais seguro  que o instante presente. Vale a pena ressaltar também que o universo pictórico do pintor nos conduz a um espaço onde a presença se faz sentir justamente pela ausência. Suas  telas não precisam de figuras humanas para transmitir emoção, pelo  contrário, é no silêncio que se revela a densidade de sua arte. Cada plano de  luz e sombra atua como uma respiração pausada, um instante suspenso em  que o tempo parece desacelerar, como se Cronos tivesse interrompido suas  largas passadas para nos permitir habitar, ainda que por momentos, o ritmo  próprio do olhar do artista. A ausência de figuras humanas não é vazio estéril: é convite à reflexão,  espaço para que o espectador projete memórias, sentimentos e reflexões. As  cores, densas ou translúcidas, funcionam como ponte entre o visível e o  invisível, entre o real e o imaginário. Há nas suas paisagens e composições  uma espécie de arquitetura silenciosa, em que cada elemento dialoga com o  outro e com o espaço que os rodeia, estabelecendo uma comunicação íntima,  empática e quase secreta para quem observa. O silêncio de Damião é também presença: ele nos força a ouvir o que não é  dito, a perceber a matéria em sua própria essência, a perceber a luz não  apenas como instrumento de visibilidade, mas como matéria sensível capaz  de tocar e transformar o olhar. Nessa dimensão, a pintura se aproxima da  poesia e da filosofia, transformando cada tela em reflexão sobre o tempo, a  memória e a percepção do mundo. Em última instância, a obra de Damião Costa nos lembra que a arte é também  experiência, tanto quanto representação. A ausência é presença, mais do que  vazio. E, no diálogo entre luz, sombra e silêncio, encontramos um convite a  assuntar não apenas o mundo que vemos, mas também o mundo que  sentimos e imaginamos. É nesse limiar, entre o visível e o invisível, que sua  pintura nos revela a plenitude de uma sensibilidade profunda, capaz de  transformar o simples ato de olhar em experiência de imersão e descoberta. Eis o sentido maior de sua obra: ser um abrigo contra a azáfama  contemporânea, cujo Ar do Tempo não nos deixa enganar, haja vista  presenciarmos uma realidade com toda espécie de invenção, ilusões,  simulacros, felicidade artificial. Uma lembrança de que o humano só  reencontra a si mesmo quando silencia. Suas telas não apenas representam o  mundo, elas o regeneram. São convites à quietude, exercícios de presença,  lampejos de eternidade. Em tempos de pressa e desatenção, Damião Costa  nos devolve o dom de ver. E ver, em sua pintura, é um ato de fé, a crença silenciosa de que a luz ainda é capaz de revelar o sentido oculto das coisas.  Suas telas parecem confirmar a lição de Heráclito: “tudo flui”, mas há fluxos  que só a quietude é capaz de perceber.


terça-feira, 11 de novembro de 2025

Especial: Santana: variações em torno do mesmo dramático Cristo Crucificado

Por: Márcio de Lima Dantas.

O que contamina o homem não é o que entra na  

boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina  

o homem. 

Mateus 15:11 

1. 

Antônio Santana de Lima (1964) nasceu em Pedro Velho, RN. Com seis  meses, foi residir no Ceará. Hoje mora na cidade de Ceará-Mirim. Menino  precoce, aos dez anos iniciou os trabalhos de esculpir a madeira. Suas  esculturas quase sempre são de natureza religiosa, tendo Jesus Cristo  crucificado como o referente que mais se repete. 

Essas variações em torno do mesmo tema acabam por imprimir uma vontade,  por parte do espectador, de inquirir com atenção e de observar o que  distingue uma escultura da outra. Dito isto, não há como não buscar as razões  dessa ideia fixa do escultor, como se cada peça expressasse uma tentativa de  plasmar algo que se encontra no seu íntimo. Talvez uma forma que se recusa  a emergir, seus traços e sua forma, de uma maneira que satisfaça o artista. 

Na verdade, essa constante demanda um esforço de uma espécie de  obrigação de elaborar um Cristo (o messias) cuja forma encontra-se  resguardada em íntimos recônditos. Embora não logre êxito, ele teima em  entalhar na imburana ou no cedro esse que o mito diz que foi crucificado. 

Um personagem cuja retórica acerca da sua provável existência já dura mais  de dois mil anos. 

Com efeito, não temos onde ordenar nossa procura, mesmo que seja uma  pequena fração, a não ser na experiência de vida de Santana. A fração nos  possibilitaria especular esse jeito dramático e essa singularidade das  esculturas. Podemos lançar luz, por tabela, em prováveis respostas de uma  vida na qual esteve banhado em uma busca etérea, para quem vê de fora,  mas, para ele, bastante diferente, com valia e já com um termo de quase todo  trabalho de arte: a titulatura. 

Resta intentar. Não com o prazer completo, mas, de todo modo, insculpe a  possibilidade de uma sensação de alívio, um brilho no olhar, ao dar por  encerrada a madeira escavada, tendo gerado um personagem que mais o atrai  e diz de si mesmo.

2. 

As esculturas de Santana nos conduzem e nos incitam a classificá-lo em  características inerentes a um determinado estilo histórico da trajetória da  arte. Inicialmente, evocamos o Expressionismo e seus objetivos de, ao invés  de buscar harmonia estética ou empatia, lançar-se para os lados nos quais  habitam os sentimentos. Por isso, o caráter dramático presente em todas as  peças. Essa fisionomia recorrente de um Cristo crucificado de maneira  cênica não está limitada às inúmeras esculturas, mas também se estendeu a  um belo São Sebastião, flechado com mais de três setas, como costuma ser  representado. 

Na verdade, a busca por expressar o que se passa (ou que habita) no seu  interior conduz por caminhos em que a ênfase se revela nas feições do rosto:  a cabeça exageradamente reclinada, o corpo esticado, os braços e o tronco  em queda. 

Como se não bastasse o que permaneceu como emblema principal da Igreja  Católica, também carrega no modo de esculpir um jeito como se a peça  estivesse inacabada. Apresenta-se nua e crua na madeira, sem a preocupação  de polir ou de dar acabamento. Essa aparência não refinada é, na verdade,  uma proposital distorção para ampliar todas as linhas com um aspecto  sombrio de dor e o sofrimento. 

3. 

Essa pegada de esculturas que não parecem finalizadas, somente escavadas,  com um aspecto de incompletude, resguarda uma atmosfera sombria e eivada  de luto e melancolia. Apesar desse traço, como se estivesse disposto a não  finalizar a escultura, em uma espécie de capricho satisfazendo traços de uma  personalidade introspectiva. Ora, é exatamente aí onde repousa uma alta  voltagem emocional, produzindo em quem contempla um desconcerto na  alma. 

De fato, basta ter acesso ou contemplar com atenção a maneira como  representou a crucifixão de dois discípulos de Jesus Cristo: Pedro, com a  cruz invertida, de cabeça para baixo, e André, com a cruz em formato de X,  também conhecida como cruz decussata ou santor. 

Ambos foram martirizados de maneira diferente do rabi. Essa atitude expôs  a humildade face à tradicional estaca ou poste vertical. A tradição diz que  Jesus foi obrigado a carregar a trave horizontal, chamada patíbulo, uma barra 

onde seria crucificado. Também os discursos em torno da Via Dolorosa  fazem referência a duas das mais dramáticas passagens: a ajuda de Simão  Cireneu, que pegou a cruz e a carregou nos ombros, e o encontro com as  mulheres de Jerusalém. Chorais todos comigo (Carmina Burana, “Fortuna”). 4. 

Faço saber que a presença de traços muito fortes do Expressionismo,  confirmados primeiro pelo artifício de desgastar a madeira de maneira rude  e pela escultura com aspecto de inacabado, reforça, provavelmente concerne  ao o desejo daquele que é considerado o primeiro passo em direção às  entranhas, aos esconderijos residentes na nossa psiqué. 

Quer dizer, a figura adentra regiões internas referentes à dimensão  emocional. Mesmo refletindo com a razão, distancia-se um tanto — um movimento mais complexo de alcançar, caso considere uma obra de arte e decline sua adesão. 

Onde queremos chegar? Apontar um outro estilo artístico presente nas  esculturas de Santana: o Barroco, com seus apelos à emoção, cultuando um  exagero de formas, evocando, em esculturas, pinturas e afrescos, um intenso  convite à contemplação de um eventual outro mundo, no qual havia muito  de dramático, de teatro. 

A bem da verdade, precisava ser muito ingênuo para se deixar levar por essas  motivações sem nenhum decoro, apelando para o adorno, para o exagero, buscando chafurdar na subjetividade e na emoção dos que contemplavam,  mormente as igrejas. 

As esculturas de um Jesus Cristo crucificado lembram muito as que se  encontram presentes nas igrejas barrocas espanholas, sobretudo quando se  trata das peças do Senhor Morto. O caráter dramático geralmente tem sua  origem na fisionomia de um homem lacerado, visivelmente submetido a  excessos no decorrer da Via Dolorosa. 

Com efeito, é um homem magro, com pouca musculatura, sangue por todos  os lados, como se estivesse buscando piedade e identificação. Nunca tinha  visto uma representação tão dramática do mártir de São Sebastião:  panejamento bege, com riscos dourados paralelos, e muito sangue  derramando, causado pelo excesso de setas no jovem corpo, submetido a  uma etapa de sua futura morte.

5. 

Santana capricha nas tintas fortes, manuseando uma mínima paleta, na qual  predominam o dourado, o vermelho e um bege fosco para o corpo. É mister  dizer que sua obra não se limita aos santos e mártires da Igreja Católica, há  também muitas peças que podemos indigitar como profanas, considerando a  tradicional dicotomia sagrado-profano. 

De fato, eis o que podemos citar: Rezadeira, Homem acendendo cigarro,  Lampião, Maria Bonita, Anjo com seios, Homem no barco, Homem bebendo  em um pequeno copo, além de entidades pertencentes ao Candomblé. 

Por fim, a obra do escultor Santana é uma das mais originais produzidas  atualmente na comarca das artes visuais do Rio Grande do Norte. Isso se  prova por um domínio pleno em desgastar a madeira, fazendo emergir  personagens conhecidos, plasmados por um viés diferente, cuja dicção tem  traços que conduzem para o que for mais dramático possível, em se tratando  das coisas religiosas. “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e  tome cada dia a sua cruz, e siga-me”. (Lucas 9:23)

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Especial: Naya: a fenda trincada na vida social ou o equívoco da vereda sem rumo

 

Por Márcio de Lima Dantas.

O que se perdeu foi pouco. Mas era o que eu mais amava. 

Henriqueta Lisboa 

Naya Silva (Currais Novos, 22.10.2002) recebeu forte influência do seu pai,  um dos melhores pintores naïfs do nosso estado: Nilson dos Santos. Embora  tenha recebido essa influência, como não poderia deixar de ser, visto que  tinha um grande artista dentro de casa, acabou por marcar sua obra com um  outro vocabulário, engendrando toda uma espécie de retratos de mulheres no  qual se evidencia o semblante, como a querer mostrar diversas maneiras de  contemplar o mundo, na medida em que, como sabemos, as feições refletem  o íntimo de um estar no mundo, seja em embates ou em contemplações  líricas. Há artistas que não se deixam domesticar por apenas um estilo. A cada gesto,  a cada composição, parecem inaugurar um campo novo, onde a tradição e a  invenção do novo andam lado a lado. Uma não se sobrepõe a outra. Naya,  com sua obra de rara sensibilidade, inscreve-se nesse terreno: ora  recuperando a gramática do popular, com suas feiras, vilarejos e figuras  camponesas, ora lançando-se às vertigens do digital, onde o eu se cinde em  fragmentos, ainda, ressignificando mitos, costurando fios de diferentes  culturas, como quem tece um bordado invisível no tecido da imaginação. 
A produção de Naya é uma travessia. Travessia de mundos: o rural e o  urbano, o ingênuo e o conceitual, o local e o estrangeiro. Vejamos como isso  sucede. Comecemos pelas obras de vocação naïf: Pequeno Vilarejo, Feira  Livre e Mulher Camponesa. À primeira vista, parecem simples cenas da vida  popular, carregadas de ingenuidade. Contudo, sob a superfície vibrante de  cores, há uma gramática simbólica que exige interpretação, um querer dizer  algo por meio de signos subliminares, de imagens advindas da sua  subjetividade. 
No Pequeno Vilarejo, as casas parecem feitas de uma memória infantil. Os  telhados desproporcionais, as fachadas coloridas, o traço sem perspectiva  acadêmica... Tudo aponta para uma lógica outra, a lógica do afeto. A  arquitetura aqui não precisa de cálculo, apenas precisa ser lembrança. O vilarejo de Naya nos leva à infância coletiva de uma comunidade, o abrigo  onde ainda é possível se reconhecer pelo nome e pelo rosto. É o locus  amoenus da cultura popular, onde o espaço tanto é real quanto mítico.  A Feira Livre, por sua vez, explode em excesso cromático. Se pensarmos  com Bakhtin, a feira é espaço do carnaval popular, onde a ordem hierárquica  se dissolve, e todos, ricos e pobres, se tornam iguais no barulho das vozes. Já  a Mulher Camponesa concentra em si o arquétipo da Grande Matriarca. A  figura feminina, ligada à terra, aparece como guardiã da fertilidade e da  continuidade da vida.  Com efeito, aqui, o feminino não é apenas representação do princípio  arquetípico, ela aparece como resistência e afirmação social. Seu corpo, sua  cor, seus traços, se tornam instrumentos de empoderamento, mostrando que  a arte também pode ser espaço de insurgência e reconhecimento. Na leitura de Naya, a força dessa presença representa resistência feminina: a  capacidade de criar, sustentar e transformar, mesmo diante das adversidades. 
 Se no naïf a artista ancora-se na memória coletiva, nas obras digitais ela se  lança à sua subjetividade. Podemos dizer que é uma tessitura tecnológica: a  memória coletiva cede o lugar à interioridade fragmentada. Ao ocorrer a  cisão, o eu se rompe em pedaços. O quadro não oferece espaço para ser um,  são estilhaços. Cores que se recusam a se fundir, linhas que não se  reconciliam. O que está em jogo aqui é o drama do sujeito moderno: a  impossibilidade de se manter inteiro. Freud diria que se trata do retorno do  mal-estar na civilização, Lacan veria aí a fenda do sujeito, a rachadura que  nos constitui.  O espectador, ao se deter face a essa cisão, sente-se intimado a habitar essa  mesma ferida: somos todos fragmentos tentando costurar uma narrativa de  si que nunca se completa. Em contraste, o céu passa um ar de expansão. Se  ocorre a cisão dessa ideia de fratura, de fragmentação, o céu é o horizonte.  Contudo, não se trata de um céu bucólico, de paz, mas de um espaço  ambíguo: lugar da liberdade e ao mesmo tempo do vazio. Contemplá-lo é se  sentir livre, mas igualmente perdido.  Já Liberdade nos traz o paradoxo da condição humana. Não falo da liberdade  idealizada dos românticos, mas uma liberdade precária, sempre ameaçada pela queda. Há uma forte presença do existencialismo, pois somos seres  lançados, condenados a escolher, a inventar caminhos que nunca serão  definitivos.
O sentido da obra é, portanto, duplo: celebra o fato de ser livre,  mas não esconde o peso da angústia que acompanha toda escolha. Esse vazio, essa solidão paradoxal e a fragilidade dos laços humanos não são  apenas dramas individuais: fazem parte do que chamamos de espírito da  época, o Zeitgeist. Cada era produz sua forma própria de angústia. A nossa,  marcada pela hiperconectividade, pelo excesso de imagens e pela promessa  de uma liberdade ilimitada, nos oferece, em contrapartida, uma ampla  solidão, causada pela soberba, narcisismo, infantilidade e toda uma série de  sentimentos que nos lança, como já disse, ao distrito da solidão, implicando  grande sofrimento, pranto sem conserto, melancolia oscilante.
 O Ar do Tempo, que quase nos obriga, feito tirania, a se comportar de  determinadas maneiras: de ser, parecer, comparecer ao que possa ser mais  ambivalente e sempre presente, como um desprezo pelo que não foi  estipulado como o que é beleza (corpos bem feitos, exagerados, bombados,  cheios de botox etc.). Essa forma de se vestir ou a insolência da negação de  um bom dia está nos conduzindo para formas sociais lançando seus vetores  para destruir tudo o que era gentileza ou etiqueta social, no melhor sentido. Vivemos cercados de contatos e, ao mesmo tempo, desprovidos de vínculos  profundos.
É o retrato de um tempo em que o sujeito, multiplicado em perfis  e telas, se encontra cindido, fragmentado. Naya, ao apresentar obras como  Cisão e Liberdade, parece traduzir esse Zeitgeist: a existência de um ser que  habita um mundo saturado de presenças visíveis, mas pobre em presenças  reais. O terceiro eixo da obra de Naya nos coloca diante de um curioso paradoxo:  ao mesmo tempo em que se lança para o campo da arte digital, a artista  recupera mitos, ora locais, ora estrangeiros. No Folclore de Câmara  Cascudo, ela resgata narrativas do imaginário potiguar. O que poderia ser  apenas ilustração folclórica ganha significado simbólico e universal, pois os  personagens não são caricaturas, mas a representação de um inconsciente  coletivo ainda vivo. O mito, nos lembra Mircea Eliade (O Sagrado e o  Profano), não é o que restou do passado, mas uma força atuante no presente.  Ao abordar o tema em sua obra, Naya nos recorda que a força da cultura popular permanece presente, quase como uma necessidade, mesmo em  situações onde não o reconhecemos. Em Akai Ito, o fio vermelho do destino, mito japonês que une pessoas  predestinadas, a artista se desloca para outra tradição cultural, mas reinscreve  em sua poética um mesmo rito de um mito presente em muitas culturas. O  fio vermelho é metáfora da ligação invisível entre corpos, tempos e culturas.  No gesto de Naya, o mito oriental se funde ao repertório nordestino,  revelando que o destino humano é, no fundo, o mesmo: o desejo de ligação,  a busca por um outro que nos complete.




Especial: Família Rosado realiza viagem em busca de suas raízes no Sertão Paraibano.

No sábado passado, 13/09/2025, parte da tradicional Família Rosado de Mossoró viajou ao Sertão Paraibano, especificamente para Pombal e Catolé do Rocha, terras de Maria Amélia e Jerônimo Rosado, e Isaura Maia, os precursores da descendência da mesma. A viagem partiu de Natal e Mossoró, com uma pausa em Caicó. Nas referidas cidades, uma verdadeira imersão ancestral, cultural e emocional, que percorreram ruas, igrejas, praças e as Fazendas Valparaíso, Jatobá, Curralinho e Vila Isauro Rosado, onde nasceram e viveram os primeiros e icônicos descendentes. A viagem e as visitas guiadas foram conduzidas pelo historiador Rodolfo Maia, resgatando fatos do passado que marcam as raízes da família mais poderosa e emblemática do Oeste Potiguar, os Rosados. Segundo os familiares, um momento de união que ficará marcado no coração de todos.



Fonte: Território Livre.

https://blog.tribunadonorte.com.br/territoriolivre/

Especial: Nilson dos Santos: registro da etnografia de um tempo extinto.

 Por: Márcio de Lima Dantas.

Há pouco se apagou de vez  no reduto dos dicionários  certa palavra-chave. Henriqueta Lisboa  

Nilson dos Santos (17.06.1970) nasceu em Currais Novos. Iniciou seus  trabalhos com os pincéis, fazendo letreiros e desenhos publicitários nos  estabelecimentos comerciais, ou seja, era sob encomenda. Portanto, o que  predominava era a funcionalidade, o concreto, que existe desde muito como  apelo para a venda dos produtos da casa onde estava assentado o escrito. O  interessante foi que logo os comerciantes reconheceram a verve e vivacidade  do rapaz. Desse modo, não se contentavam com apenas os letreiros, os  números, mas também pediam algum personagem ou objeto relacionado ao  letreiro e ao que era passível de venda no comércio onde estava escrito o  demandado. Mas há que dizer uma coisa acerca do surgimento da característica da  personalidade do pintor de fachadas ou paredes outras. É que, sutilmente, ele  estava atento ao seu irmão, que também fazia o mesmo serviço. E assim  surgiu o entusiasmo pelo desenho e pela pintura, pois eram detentores de  uma inspiração que parecia estar adormecida desde sempre nas profundezas  da sua subjetividade. Infelizmente, seu irmão não continuou. Talvez o fôlego estético fosse curto.  Acontece isso no universo da arte. Muitos começam e avançam, porém, não  parece ser um assinalado dentre os que estão no grande círculo, que, na  verdade, vai selecionando a partir de algo que não sabemos direito como  ocorre. Tão somente nos limitamos a indigitar: inspiração. 

Enfim, eis um pintor naïf que surge para agregar-se aos tantos ingênuos já  existentes. Só que ele não sabia que viria a ser um dos melhores do estado  do Rio Grande do Norte. Mas quero dizer que não ficou só por aqui.  Participou de exposições mundo afora e ganhou prêmios e reconhecimento.  Apesar de tantas alvíssaras, permaneceu um homem gentil e simples, fácil 

de lidar e sem vaidades. Sua pintura reflete essa sua maneira de lidar com a  vida e com sua imensa clientela.  Para efeito didático e de melhor compreensão do conjunto da obra, preferi  arrumar essa profusão de telas em dois estilos. Mesmo amadores são capazes  de discernir essa bipartição. Entretanto, é preciso reparar que há um legítimo  traço do risco e da cor que vai preencher as vestes das personagens ou as  cores das casas dos sertões. Na verdade, o que tem de melhor são as telas de  ingenuidade com temas da vida sertaneja.  É aqui que eu prefiro fazer saber de uma etnografia, À la recherche du temps perdu (Marcel Proust). Há como uma necessidade de registrar as maneiras  de viver de outrora, tanto no que diz respeito ao utilitário ou funcional, quanto ao lúdico de inúmeras brincadeiras infantis. Acredito que homens  hoje com mais de 60 anos conseguem se reconhecer nesse lazer feito de  improvisos, de elementos retirados dos arredores, das cercas, do que restou  de uma fruta. Quer dizer, não havia nada de industrializado, tudo era feito  com materiais oferecidos pela natureza. 

Basta dizer que essa etnografia de outrora deixava o mundo bem mais  simples, sem modas ou modos que a Ideologia (pensamento das classes  dominantes) imperava com seu mando, fazendo parecer as coisas como  naturais e não como historicamente construídas. Observar e pintar os  costumes de um grupo social, atentando-se às suas crenças, à sua  religiosidade e a como as crianças representavam o mundo e o vivenciavam. O que me interessa saber e dizer acerca do artista visual Nilson Santos é que  sua pintura, na verdade, não passa de uma bela narrativa de um mundo que  sofreu a ausência de indulto do mito de Cronos (o tempo), assolando cercas  de pedras, carrascos, riachos, casas de taipa, lavouras a serem segadas com  a alegria de colher o que se plantou e não recebendo esmolas do Estado. A  rotina era escandida pelas horas de ocupação nos trabalhos do campo ou  domésticos. Bem diferente dos dias de hoje, em que se mede os expedientes  da rotina pelo culto ao corpo, pelo narcisismo das redes sociais e por quase que uma obrigação de demonstrar que se é feliz, que está aproveitando a vida  com um copo na mão e sorrisos visivelmente artificiais. 

Nilson tem uma série muito bonita e que se assemelha ao pintor de Fortaleza,  Chico da Silva, o maior pintor cearense de todos os tempos. As demais séries  são sua dicção pictórica, ingênua e extremamente lúdica, principalmente no  desenho simples que refoge totalmente ao desenho acadêmico. Acontece  que, nessa série, acaba por se afastar de si próprio. Não que imite o pintor  cearense, mas, ao pintar galos, borboletas, cavalos-marinhos, pavões, ou  seja, só animais, o seu traço diz de uma múltipla diferença do que sempre  foi. Assim sendo, só podemos entender que se trata de uma inquietude  estética, quer dizer, não se conforma, nem parece ter se acostumado com sua  gramática pictórica do que sempre foi, aquela que virou vício ou costume e  foi reconhecida publicamente também nas vendas das telas. Com efeito, essa série caracteriza-se por não haver o personagem humano,  apenas animais em retratos hieráticos e plenos de elementos ornamentais, com uma mescla extremamente diferente ao misturar toda uma sorte de  cores. Visivelmente, houve um desejo de plasmar outra espécie de pintura  com referentes (temas, assuntos) distintos do que sempre fora.

 A tecnologia, com sua fúria e ânsia de mostrar, e se mostrar a que veio,  buscando, por vezes, à força, o seu lugar no seio das relações  contemporâneas de viver, nada poupou ou foi gentil com os jeitos de  comportamento do que era antes, calcado no simples, na ausência de  malícias, nas tiranias de convencionar o que é belo, para que todos aplaudam  isso que se chama o novo. Mas, na verdade, se, por exemplo, observarmos  com atenção a moda, chegamos à conclusão de que é extremamente de mau  gosto, com seus vestidos estampados e suas calças que parecem feitas de um  lençol. O sol já se pôs. Não adianta prantear ou lamentar o que não tem volta, o que  a humanidade escolheu como rodagem para seguir e andar a esmo, em busca  de um rumo. Inútil uma vereda saudável. Resta nos contentarmos com as  narrativas contidas nas telas ou na obra de um artista visual. Nilson dos  Santos, detentor de uma enorme disciplina, pinta convulsivamente, sem  nunca tropeçar em si mesmo, sem nunca se imitar, sem nunca deixar de  buscar temas dentro do seu vocabulário. Eis que o pintor, no caso de ser sua pintura considerada (tomei essa  liberdade) por nós “como” uma etnografia de outrora, e mesmo ainda do que  resta nas capoeiras e sertões adentro, acabou ocupando o papel do antropólogo. E o que está retratado na tela é o que representa o objeto  (Antropologia Clássica = antropólogo e as comunidades que vai estudar, ou  seja, o seu objeto), sendo que essa etnografia não é a que se encontra nos  livros de Antropologia (como os de Claude Lévi-Strauss). 

De todo modo, existe uma relação estreita entre o pintor e seu assunto  (referente), na medida em que o objeto pintado no quadro assoma de suas  entranhas, de seu inconsciente, do seu coração com lembranças, enfim, de  tudo o que está adormecido, e qualquer olhar ou barulho evoca o que tem  para emergir, com uma pulsão, com algo riscado que pode ser uma epifania,  com tudo vindo a ser uma necessidade de ser uma coisa no lugar da outra  (metáfora). Enfim, temos de admitir que a linguagem simbólica é a que prevalece, com  seus signos e sinais, outorgando ao desenho e às suas cores um pendor do  artista para plasmar determinadas coisas e não outras. Essa seleção são os  paradigmas que habitam o íntimo, desejando ser sintagmas. Ou seja, as  unidades justapondo-se para criar a vivacidade que impera e preenche de  entusiasmo a ingenuidade de meninos, donas de casa, homens na lavoura. E  tudo vem a ser vivacidade, alegria e saudades do que fora até certo tempo.