A Folha Patuense

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sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Especial: Barbosa Lima Sobrinho e a Revolta de Princesa

Por: José Tavares de Araújo Neto.


Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho (1897–2000) foi um dos mais influentes jornalistas e intelectuais brasileiros do século XX. Pernambucano do Recife, advogado, escritor, historiador, professor e político, foi também uma das maiores vozes da imprensa nacional. Durante sua longa vida pública, presidiu a Associação Brasileira de Imprensa, foi deputado federal, governador de Pernambuco e membro da Academia Brasileira de Letras. Sua carreira na imprensa incluiu colaborações em periódicos como Diário de Pernambuco, Jornal do Comércio, Gazeta, Correio do Povo e Jornal do Brasil, onde escreveu por mais de setenta anos, até sua morte aos 103 anos. Mas, em 1930 — momento decisivo da história política nacional —, Barbosa não era apenas jornalista: era colunista de um dos jornais mais importantes de Pernambuco, o Jornal do Comércio, pertencente à família Pessoa de Queiroz, que figurava entre os principais incentivadores e financiadores do movimento armado de Princesa. Essa informação, longe de diminuir sua credibilidade, apenas revela o espaço político em que sua pena se movia: um lugar de combate, confronto e resistência. E é nesse contexto que surge sua crônica “Porque se sacrifica o sertão”, publicada no Jornal do Brasil, em 1º de abril de 1930. A crônica é uma peça de intervenção política. Barbosa Lima Sobrinho reage contra o que ele identifica como manipulação da opinião pública. Enquanto a imprensa urbana — especialmente a ligada a João Pessoa — pintava o presidente da Paraíba como herói civilizador, Barbosa expõe, com ironia cortante, o processo de demonização do coronel José Pereira Lima, líder da resistência sertaneja de Princesa. Ele abre o texto afirmando que ler as notícias sobre o conflito é “uma das coisas mais divertidas” daqueles dias. Não tarda em mostrar o motivo: de repente, João Pessoa vira um santo e José Pereira, um demônio. Antes da revolta, afirma Barbosa, ambos eram tratados como “anjos da mesma corte celestial”. A guerra os transformara — não a essência, mas a narrativa. “Somente naquele dia um se tornou o nefando e o outro, o herói.” Na crônica, o conflito não nasce de ideologias, mas de vaidades. José Pereira reivindica a inclusão do ex-governador João Suassuna como candidato a deputado federal. João Pessoa recusa e monta, sozinho, sua chapa política — um gesto que Barbosa qualifica de autoritário, sobretudo para alguém que se dizia liberal. Quando percebe que José Pereira mantém apoio popular e força eleitoral, João Pessoa aumenta a tensão: demite autoridades municipais de Princesa, ocupa militarmente Teixeira e ameaça fazer o mesmo em Princesa. Era o sertão encurralado. “Nesse momento, levantou-se o Sr. José Pereira, tomando a atitude que o presidente da Paraíba lhe impunha: a defesa armada.” Barbosa não suaviza os fatos. Ele assume posição. Na crônica, o sertão não inicia a guerra — ele resiste. A força de Barbosa Lima Sobrinho está no modo como ele transforma informação em denúncia. Ele acusa João Pessoa de tomar decisões sem consultar lideranças políticas locais; perseguir João Suassuna por rivalidades internas; sacrificar o sertão em nome de ambições pessoais e familiares.

“O Sr. João Pessoa [...] sacrificou o sertão.”

Essa frase não é argumento. É sentença. E Barbosa sabe o peso de cada palavra. É preciso destacar: Barbosa Lima escrevia em um jornal pertencente à família Pessoa de Queiroz, parte interessada no conflito e aliada de José Pereira. O cronista se torna assim uma voz do sertão dentro das páginas da grande imprensa urbana. Mas não é mero porta-voz de interesses: é um opositor consciente. Sua trajetória posterior — enfrentando Getúlio, a ditadura militar, Collor — prova que Barbosa não temeu contrariar poderes. Em 1930, sua trincheira era o sertão. “Porque se sacrifica o sertão” não é apenas uma crônica jornalística. É testemunho de época, visão de dentro, texto de combate. Barbosa Lima Sobrinho não se limita a narrar. Ele interpreta. Ele denuncia. Ele toma partido. E toma partido pelo sertão. Contra o discurso oficial, contra a ordem dominante, contra a narrativa cristalizada depois: Barbosa Lima Sobrinho ergueu a voz — e sua voz ecoou a voz de José Pereira. A crônica se torna, assim, documento fundamental para se compreender o movimento armado de Princesa não como aventura isolada, mas como reação política a um projeto de poder que excluía o sertão e negava sua representação. Barbosa enxergou antes de muitos: não se sacrificava apenas um homem — sacrificava-se o sertão. 

Especial: A 3ª edição do romance Agonia na Tumba, de Tarcísio Pereira

Por: José Tavares de Araújo Neto


O escritor e dramaturgo paraibano Tarcísio Pereira, membro da Academia Paraibana de Letras (APL) e da Academia de Letras de Pombal, lança nesta quinta-feira, 15 de novembro, às 18 horas, na sede da Academia Paraibana de Letras, a 3ª edição do romance Agonia na Tumba. O relançamento celebra três décadas de produção literária e intelectual do autor pombalense que se tornou referência na ficção e no teatro paraibanos. Nesse percurso, Tarcísio reúne 27 livros publicados, além de expressiva atuação na dramaturgia, assinando peças, roteiros e direções teatrais que consolidam seu nome no cenário cultural do estado. Agonia na Tumba é um romance singular e ousado, que conquista o leitor desde a primeira página pelo impacto de sua ideia central. Um homem acorda dentro de um caixão, já enterrado, e precisa enfrentar, no absoluto breu da morte, a própria consciência em farrapos. A obra, narrada em primeira pessoa, transforma-se num mergulho angustiante na mente de alguém que desperta no limite entre a vida e a decomposição — e é dessa fronteira que Tarcísio Pereira faz surgir um texto intenso, visceral, quase alucinógeno. O enredo permanece inteiramente dentro do túmulo. Não há cenários externos, personagens em movimento ou grandes ações. Tudo se resume à memória do protagonista, aos seus pensamentos desconexos, aos delírios e à lenta reconstrução dos fatos que o conduziram àquele destino. Essa escolha extrema — sem flashbacks convencionais ou pausas — intensifica a claustrofobia da narrativa. O leitor é aprisionado junto ao narrador e respira o mesmo ar rarefeito. A prosa de Tarcísio se apoia na oralidade, em frases que seguem o ritmo do pensamento atropelado e em imagens fortes, muitas vezes brutais. O texto é profundamente sensorial. O calor do espaço fechado, a falta de ar, o suor, o desespero físico, os grilos, os estalos do caixão e a batida surda das tentativas de fuga fazem da leitura uma experiência quase física. A narrativa oscila entre lucidez, delírio, memória e fantasia, como uma mente que luta para organizar o caos. Entre recordações de infância, culpas, violências, bebedeiras, traições, vaidades e fraquezas, revela-se o retrato de um homem comum — imperfeito, às vezes mesquinho, mas profundamente humano. Os momentos finais antes da suposta morte surgem fragmentados, ganhando forma pouco a pouco, como se o leitor participasse da montagem de um quebra-cabeça emocional. O suspense não gira apenas em torno da possibilidade de escapar do túmulo, mas também da busca por compreender como ele chegou ali. O romance dialoga com o thriller psicológico, com o fantástico e até com o horror, sem perder o vínculo com a tradição literária do Nordeste. Em 1992, ao apresentar a obra, W. J. Solha destacou o ritmo cinematográfico, a atmosfera que lembra Stephen King e o afastamento da rigidez regional, qualidades que o livro realmente apresenta sem deixar de carregar marcas afetivas e culturais paraibanas. Agonia na Tumba é curto, mas densíssimo. Prende, sufoca e inquieta. Funciona como uma reflexão sobre a morte, o medo ancestral de ser enterrado vivo, os remorsos que perseguem qualquer vida e a fragilidade da memória humana. Ao final, o leitor tem a impressão de ter atravessado um pesadelo daqueles que permanecem mesmo depois de acordar. É uma obra marcante, madura e surpreendente, que confirma Tarcísio Pereira como um dos grandes nomes da ficção paraibana contemporânea.


Especial: Damião Costa: a pintura como morada do instante.

Por Márcio de Lima Dantas.

O artista Damião Costa (São Vicente, RN, 1987), desde a infância, quando  os olhos se detinham nos leilões televisivos de pintura, pressentia, ainda sem  nomear, o fulgor de uma vocação. Autodidata no desenho, guiado mais pela  intuição do que por método, haveria, contudo, de encontrar orientação nas  mãos de um mestre distante, João Rodrigo, de Santa Fé do Sul (SP), cuja  presença virtual lhe abriu as fendas do ofício e lhe revelou os artifícios secretos da cor e da forma. Por intermédio duas amigas generosas, Vera Lúcia Lobo e Sônia, que lhe  custearam o aprendizado, iniciou-se na pintura a óleo sobre tela, tendo como  instrumentos tintas Corfix e Acrilex e o pincel como extensão natural da  alma. Desde então, o gesto, antes hesitante, transformou-se em verbo visual,  e o simples ato de misturar pigmentos passou a equivaler a um modo de  compreender o mundo: corpo, mente e espírito alinhados no mesmo  compasso. Com efeito, é mister dizer que o universo pictórico de Damião Costa se  estrutura sobre a ausência da figura humana — uma ausência que não é  carência, mas plenitude. As suas telas são espaços onde o humano cede lugar  ao respiro da paisagem, à mudez eloquente das coisas simples: um copo e  um limão, uma casinha solitária, um barco à deriva, a luz de um amanhecer  rural. O que vibra nessas composições é a delicada liturgia do instante, o  reluzir de um reflexo na água, o brilho luzidio da fruta madura, a  transparência do copo que guarda o silêncio. Há ainda, em suas telas, um diálogo tácito com a própria ideia de tempo. O  tempo, em Damião, não corre. Suas telas parecem suspender Cronos, esse  deus apressado, e devolve-nos a lentidão de Kairós, o tempo da oportunidade  interior. Em cada Casinha à beira da estrada ou Vida no campo, sentimos  que o artista restitui à imagem o seu direito à duração. O instante, cristalizado na tela, converte-se em eternidade sensível. É o  mesmo gesto dos monges que, ao varrerem o chão de pedra, transformam o  ato banal em contemplação. Assim também o pintor: seu trabalho é uma  forma de meditação materializada em pigmento. E, cada cor aplicada, ora  densa, ora translúcida, é como um mantra visual, repetido até que a  tripartição corpo, mente e espírito se unam no mesmo compasso de luz. Ora, vivemos tempos em que a pressa é o novo dogma, um estilo de vida, a  nova liturgia. Tudo é instantâneo, volátil, substituível. Neste cenário, a  pintura de Damião Costa resiste como um gesto de lucidez. Ela nos ensina a  olhar novamente, a desacelerar o pensamento, a ouvir a respiração do mundo.  Com efeito, em um tempo que busca o espetáculo, ele escolhe o sossego. Em  uma sociedade que confunde valor com visibilidade, ele trabalha na  penumbra, no silêncio das horas no qual o espírito se faz mais nítido e queda se em necessário sossego. Por isso, suas obras não precisam de alarde,  bastam os murmúrios. Elas reluzem, mas com a luz suave das coisas que não  têm pressa de se mostrar. E, se há algo que atravessa a obra de Damião Costa, como um rio subterrâneo  a murmurar sob as cores, é a luz. Não aquela que cega, mas a que revela.  Não a luz do meio-dia, brutal e sem mistério, mas a da aurora e da tarde,  quando o mundo parece lembrar de si. É uma luz morna, que não incide,  envolve tudo ao seu redor. Ela se insinua nas dobras do horizonte, acaricia  os contornos das casas, toca o espelho das águas com o pudor de quem pede  licença. Portanto, a luz, em Damião, não é mero artifício técnico: é linguagem. E o  que ela diz é silêncio. Cada quadro parece sustentar uma respiração contida,  como se o mundo inteiro, por um breve instante, tivesse parado para ouvir o  próprio coração. A luz não ilumina o objeto, escuta-o. Ouve a dinâmica do campo: a palha, a pedra, a fruta, o azul rarefeito do céu. Perscruta até o que  já não soa. Há, nesse modo de pintar, algo que remete ao que Gaston Bachelard chamou  de “poética do repouso”. Esse instante no qual o olhar se recolhe para dentro  das coisas e descobre nelas uma morada. Em Amanhecer na roça, por  exemplo, o dia não começa: é anunciado pela deusa Eos (Aurora), como  quem abre lentamente uma janela sobre o passado. Em Casinha no sítio, a  luz parece vir de dentro das paredes, como se a casa tivesse alma. Entre as muitas paisagens do artista, há uma que se destaca não pela cor ou  pela técnica, mas pela densidade simbólica que nela habita. Estou falando de  Barco à deriva, a tela em que o artista parece condensar toda a sua metafísica  do silêncio, todo o rumor contido de sua poética. O barco, isolado sobre um  lençol de águas imóveis, sem vela, sem remos, sem tripulantes, é mais que  imagem: é emblema. Nesse sentido, nesse barco que flutua entre o céu e a água, podemos  reconhecer algo do destino humano: a consciência de estar lançado em um  espaço sem porto, conduzido por forças invisíveis. É o mesmo sentimento  que anima os versos de Fernando Pessoa quando escreve, em Mensagem:  “Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu”. Eis  o paradoxo que o pintor parece intuir com o pincel: o risco e a beleza  coexistem na mesma superfície. Em Barco à deriva, o horizonte é amplo, mas a travessia é íntima. Não há  vento, nem rota, nem promessa, apenas o flutuar. E é nesse flutuar que a tela  se torna espelho: o espectador vê-se ali não como passageiro, mas como o  próprio barco, entregue à correnteza do tempo. Assim, a pintura, mais do que  representar, experimenta o existir. É expressão do ser. Na verdade, não se trata de um naufrágio, mas de um estado. O barco não  está perdido, está em repouso. É uma imagem de suspensão, um instante  anterior ao verbo, quando o mundo ainda não precisara de nomes. Damião  pinta à deriva como quem compreende que o destino não é chegar, mas  permanecer em travessia, que o repouso é também um modo de seguir. A paleta é sóbria, quase ascética: azuis dissolvidos, ocres pálidos, brancos  que lembram o brilho do sal. Tudo ali parece conter uma luz que não vem do  sol, mas do próprio interior da água. A serenidade do quadro é quase  litúrgica. Por isso, Barco à deriva não é apenas paisagem, é quase uma  confissão. Há algo de litúrgico nessa imobilidade. Como se o pintor houvesse  percebido, à maneira dos antigos místicos, que a salvação talvez resida na  aceitação do fluxo. O barco, sem timoneiro, torna-se figura do abandono  fecundo no instante em que o homem, cansado de querer governar o mar,  entrega-se à deriva e encontra, enfim, o centro do círculo. Dessarte, o que há nesse quadro é uma ética da contemplação. O artista não  pretende narrar a aventura do homem sobre o mar, mas o instante em que o  mar o contempla de volta. E nesse olhar recíproco, nesse encontro mudo  entre água e consciência, a pintura realiza o que a filosofia apenas ensaia: a  reconciliação entre o visível e o invisível, o finito e o eterno. Portanto, a opus magnum de Damião Costa é também sua metáfora  definitiva: a arte como deriva, o pincel como leme entregue ao vento, o olhar  como vela aberta ao acaso da luz. O artista não conduz, é conduzido. E talvez  seja por isso que suas telas nos devolvem ao essencial: o sossego de quem, habitando o tempo de Kairós, compreendeu que não há porto mais seguro  que o instante presente. Vale a pena ressaltar também que o universo pictórico do pintor nos conduz a um espaço onde a presença se faz sentir justamente pela ausência. Suas  telas não precisam de figuras humanas para transmitir emoção, pelo  contrário, é no silêncio que se revela a densidade de sua arte. Cada plano de  luz e sombra atua como uma respiração pausada, um instante suspenso em  que o tempo parece desacelerar, como se Cronos tivesse interrompido suas  largas passadas para nos permitir habitar, ainda que por momentos, o ritmo  próprio do olhar do artista. A ausência de figuras humanas não é vazio estéril: é convite à reflexão,  espaço para que o espectador projete memórias, sentimentos e reflexões. As  cores, densas ou translúcidas, funcionam como ponte entre o visível e o  invisível, entre o real e o imaginário. Há nas suas paisagens e composições  uma espécie de arquitetura silenciosa, em que cada elemento dialoga com o  outro e com o espaço que os rodeia, estabelecendo uma comunicação íntima,  empática e quase secreta para quem observa. O silêncio de Damião é também presença: ele nos força a ouvir o que não é  dito, a perceber a matéria em sua própria essência, a perceber a luz não  apenas como instrumento de visibilidade, mas como matéria sensível capaz  de tocar e transformar o olhar. Nessa dimensão, a pintura se aproxima da  poesia e da filosofia, transformando cada tela em reflexão sobre o tempo, a  memória e a percepção do mundo. Em última instância, a obra de Damião Costa nos lembra que a arte é também  experiência, tanto quanto representação. A ausência é presença, mais do que  vazio. E, no diálogo entre luz, sombra e silêncio, encontramos um convite a  assuntar não apenas o mundo que vemos, mas também o mundo que  sentimos e imaginamos. É nesse limiar, entre o visível e o invisível, que sua  pintura nos revela a plenitude de uma sensibilidade profunda, capaz de  transformar o simples ato de olhar em experiência de imersão e descoberta. Eis o sentido maior de sua obra: ser um abrigo contra a azáfama  contemporânea, cujo Ar do Tempo não nos deixa enganar, haja vista  presenciarmos uma realidade com toda espécie de invenção, ilusões,  simulacros, felicidade artificial. Uma lembrança de que o humano só  reencontra a si mesmo quando silencia. Suas telas não apenas representam o  mundo, elas o regeneram. São convites à quietude, exercícios de presença,  lampejos de eternidade. Em tempos de pressa e desatenção, Damião Costa  nos devolve o dom de ver. E ver, em sua pintura, é um ato de fé, a crença silenciosa de que a luz ainda é capaz de revelar o sentido oculto das coisas.  Suas telas parecem confirmar a lição de Heráclito: “tudo flui”, mas há fluxos  que só a quietude é capaz de perceber.


terça-feira, 11 de novembro de 2025

Especial: Santana: variações em torno do mesmo dramático Cristo Crucificado

Por: Márcio de Lima Dantas.

O que contamina o homem não é o que entra na  

boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina  

o homem. 

Mateus 15:11 

1. 

Antônio Santana de Lima (1964) nasceu em Pedro Velho, RN. Com seis  meses, foi residir no Ceará. Hoje mora na cidade de Ceará-Mirim. Menino  precoce, aos dez anos iniciou os trabalhos de esculpir a madeira. Suas  esculturas quase sempre são de natureza religiosa, tendo Jesus Cristo  crucificado como o referente que mais se repete. 

Essas variações em torno do mesmo tema acabam por imprimir uma vontade,  por parte do espectador, de inquirir com atenção e de observar o que  distingue uma escultura da outra. Dito isto, não há como não buscar as razões  dessa ideia fixa do escultor, como se cada peça expressasse uma tentativa de  plasmar algo que se encontra no seu íntimo. Talvez uma forma que se recusa  a emergir, seus traços e sua forma, de uma maneira que satisfaça o artista. 

Na verdade, essa constante demanda um esforço de uma espécie de  obrigação de elaborar um Cristo (o messias) cuja forma encontra-se  resguardada em íntimos recônditos. Embora não logre êxito, ele teima em  entalhar na imburana ou no cedro esse que o mito diz que foi crucificado. 

Um personagem cuja retórica acerca da sua provável existência já dura mais  de dois mil anos. 

Com efeito, não temos onde ordenar nossa procura, mesmo que seja uma  pequena fração, a não ser na experiência de vida de Santana. A fração nos  possibilitaria especular esse jeito dramático e essa singularidade das  esculturas. Podemos lançar luz, por tabela, em prováveis respostas de uma  vida na qual esteve banhado em uma busca etérea, para quem vê de fora,  mas, para ele, bastante diferente, com valia e já com um termo de quase todo  trabalho de arte: a titulatura. 

Resta intentar. Não com o prazer completo, mas, de todo modo, insculpe a  possibilidade de uma sensação de alívio, um brilho no olhar, ao dar por  encerrada a madeira escavada, tendo gerado um personagem que mais o atrai  e diz de si mesmo.

2. 

As esculturas de Santana nos conduzem e nos incitam a classificá-lo em  características inerentes a um determinado estilo histórico da trajetória da  arte. Inicialmente, evocamos o Expressionismo e seus objetivos de, ao invés  de buscar harmonia estética ou empatia, lançar-se para os lados nos quais  habitam os sentimentos. Por isso, o caráter dramático presente em todas as  peças. Essa fisionomia recorrente de um Cristo crucificado de maneira  cênica não está limitada às inúmeras esculturas, mas também se estendeu a  um belo São Sebastião, flechado com mais de três setas, como costuma ser  representado. 

Na verdade, a busca por expressar o que se passa (ou que habita) no seu  interior conduz por caminhos em que a ênfase se revela nas feições do rosto:  a cabeça exageradamente reclinada, o corpo esticado, os braços e o tronco  em queda. 

Como se não bastasse o que permaneceu como emblema principal da Igreja  Católica, também carrega no modo de esculpir um jeito como se a peça  estivesse inacabada. Apresenta-se nua e crua na madeira, sem a preocupação  de polir ou de dar acabamento. Essa aparência não refinada é, na verdade,  uma proposital distorção para ampliar todas as linhas com um aspecto  sombrio de dor e o sofrimento. 

3. 

Essa pegada de esculturas que não parecem finalizadas, somente escavadas,  com um aspecto de incompletude, resguarda uma atmosfera sombria e eivada  de luto e melancolia. Apesar desse traço, como se estivesse disposto a não  finalizar a escultura, em uma espécie de capricho satisfazendo traços de uma  personalidade introspectiva. Ora, é exatamente aí onde repousa uma alta  voltagem emocional, produzindo em quem contempla um desconcerto na  alma. 

De fato, basta ter acesso ou contemplar com atenção a maneira como  representou a crucifixão de dois discípulos de Jesus Cristo: Pedro, com a  cruz invertida, de cabeça para baixo, e André, com a cruz em formato de X,  também conhecida como cruz decussata ou santor. 

Ambos foram martirizados de maneira diferente do rabi. Essa atitude expôs  a humildade face à tradicional estaca ou poste vertical. A tradição diz que  Jesus foi obrigado a carregar a trave horizontal, chamada patíbulo, uma barra 

onde seria crucificado. Também os discursos em torno da Via Dolorosa  fazem referência a duas das mais dramáticas passagens: a ajuda de Simão  Cireneu, que pegou a cruz e a carregou nos ombros, e o encontro com as  mulheres de Jerusalém. Chorais todos comigo (Carmina Burana, “Fortuna”). 4. 

Faço saber que a presença de traços muito fortes do Expressionismo,  confirmados primeiro pelo artifício de desgastar a madeira de maneira rude  e pela escultura com aspecto de inacabado, reforça, provavelmente concerne  ao o desejo daquele que é considerado o primeiro passo em direção às  entranhas, aos esconderijos residentes na nossa psiqué. 

Quer dizer, a figura adentra regiões internas referentes à dimensão  emocional. Mesmo refletindo com a razão, distancia-se um tanto — um movimento mais complexo de alcançar, caso considere uma obra de arte e decline sua adesão. 

Onde queremos chegar? Apontar um outro estilo artístico presente nas  esculturas de Santana: o Barroco, com seus apelos à emoção, cultuando um  exagero de formas, evocando, em esculturas, pinturas e afrescos, um intenso  convite à contemplação de um eventual outro mundo, no qual havia muito  de dramático, de teatro. 

A bem da verdade, precisava ser muito ingênuo para se deixar levar por essas  motivações sem nenhum decoro, apelando para o adorno, para o exagero, buscando chafurdar na subjetividade e na emoção dos que contemplavam,  mormente as igrejas. 

As esculturas de um Jesus Cristo crucificado lembram muito as que se  encontram presentes nas igrejas barrocas espanholas, sobretudo quando se  trata das peças do Senhor Morto. O caráter dramático geralmente tem sua  origem na fisionomia de um homem lacerado, visivelmente submetido a  excessos no decorrer da Via Dolorosa. 

Com efeito, é um homem magro, com pouca musculatura, sangue por todos  os lados, como se estivesse buscando piedade e identificação. Nunca tinha  visto uma representação tão dramática do mártir de São Sebastião:  panejamento bege, com riscos dourados paralelos, e muito sangue  derramando, causado pelo excesso de setas no jovem corpo, submetido a  uma etapa de sua futura morte.

5. 

Santana capricha nas tintas fortes, manuseando uma mínima paleta, na qual  predominam o dourado, o vermelho e um bege fosco para o corpo. É mister  dizer que sua obra não se limita aos santos e mártires da Igreja Católica, há  também muitas peças que podemos indigitar como profanas, considerando a  tradicional dicotomia sagrado-profano. 

De fato, eis o que podemos citar: Rezadeira, Homem acendendo cigarro,  Lampião, Maria Bonita, Anjo com seios, Homem no barco, Homem bebendo  em um pequeno copo, além de entidades pertencentes ao Candomblé. 

Por fim, a obra do escultor Santana é uma das mais originais produzidas  atualmente na comarca das artes visuais do Rio Grande do Norte. Isso se  prova por um domínio pleno em desgastar a madeira, fazendo emergir  personagens conhecidos, plasmados por um viés diferente, cuja dicção tem  traços que conduzem para o que for mais dramático possível, em se tratando  das coisas religiosas. “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e  tome cada dia a sua cruz, e siga-me”. (Lucas 9:23)

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Especial: Naya: a fenda trincada na vida social ou o equívoco da vereda sem rumo

 

Por Márcio de Lima Dantas.

O que se perdeu foi pouco. Mas era o que eu mais amava. 

Henriqueta Lisboa 

Naya Silva (Currais Novos, 22.10.2002) recebeu forte influência do seu pai,  um dos melhores pintores naïfs do nosso estado: Nilson dos Santos. Embora  tenha recebido essa influência, como não poderia deixar de ser, visto que  tinha um grande artista dentro de casa, acabou por marcar sua obra com um  outro vocabulário, engendrando toda uma espécie de retratos de mulheres no  qual se evidencia o semblante, como a querer mostrar diversas maneiras de  contemplar o mundo, na medida em que, como sabemos, as feições refletem  o íntimo de um estar no mundo, seja em embates ou em contemplações  líricas. Há artistas que não se deixam domesticar por apenas um estilo. A cada gesto,  a cada composição, parecem inaugurar um campo novo, onde a tradição e a  invenção do novo andam lado a lado. Uma não se sobrepõe a outra. Naya,  com sua obra de rara sensibilidade, inscreve-se nesse terreno: ora  recuperando a gramática do popular, com suas feiras, vilarejos e figuras  camponesas, ora lançando-se às vertigens do digital, onde o eu se cinde em  fragmentos, ainda, ressignificando mitos, costurando fios de diferentes  culturas, como quem tece um bordado invisível no tecido da imaginação. 
A produção de Naya é uma travessia. Travessia de mundos: o rural e o  urbano, o ingênuo e o conceitual, o local e o estrangeiro. Vejamos como isso  sucede. Comecemos pelas obras de vocação naïf: Pequeno Vilarejo, Feira  Livre e Mulher Camponesa. À primeira vista, parecem simples cenas da vida  popular, carregadas de ingenuidade. Contudo, sob a superfície vibrante de  cores, há uma gramática simbólica que exige interpretação, um querer dizer  algo por meio de signos subliminares, de imagens advindas da sua  subjetividade. 
No Pequeno Vilarejo, as casas parecem feitas de uma memória infantil. Os  telhados desproporcionais, as fachadas coloridas, o traço sem perspectiva  acadêmica... Tudo aponta para uma lógica outra, a lógica do afeto. A  arquitetura aqui não precisa de cálculo, apenas precisa ser lembrança. O vilarejo de Naya nos leva à infância coletiva de uma comunidade, o abrigo  onde ainda é possível se reconhecer pelo nome e pelo rosto. É o locus  amoenus da cultura popular, onde o espaço tanto é real quanto mítico.  A Feira Livre, por sua vez, explode em excesso cromático. Se pensarmos  com Bakhtin, a feira é espaço do carnaval popular, onde a ordem hierárquica  se dissolve, e todos, ricos e pobres, se tornam iguais no barulho das vozes. Já  a Mulher Camponesa concentra em si o arquétipo da Grande Matriarca. A  figura feminina, ligada à terra, aparece como guardiã da fertilidade e da  continuidade da vida.  Com efeito, aqui, o feminino não é apenas representação do princípio  arquetípico, ela aparece como resistência e afirmação social. Seu corpo, sua  cor, seus traços, se tornam instrumentos de empoderamento, mostrando que  a arte também pode ser espaço de insurgência e reconhecimento. Na leitura de Naya, a força dessa presença representa resistência feminina: a  capacidade de criar, sustentar e transformar, mesmo diante das adversidades. 
 Se no naïf a artista ancora-se na memória coletiva, nas obras digitais ela se  lança à sua subjetividade. Podemos dizer que é uma tessitura tecnológica: a  memória coletiva cede o lugar à interioridade fragmentada. Ao ocorrer a  cisão, o eu se rompe em pedaços. O quadro não oferece espaço para ser um,  são estilhaços. Cores que se recusam a se fundir, linhas que não se  reconciliam. O que está em jogo aqui é o drama do sujeito moderno: a  impossibilidade de se manter inteiro. Freud diria que se trata do retorno do  mal-estar na civilização, Lacan veria aí a fenda do sujeito, a rachadura que  nos constitui.  O espectador, ao se deter face a essa cisão, sente-se intimado a habitar essa  mesma ferida: somos todos fragmentos tentando costurar uma narrativa de  si que nunca se completa. Em contraste, o céu passa um ar de expansão. Se  ocorre a cisão dessa ideia de fratura, de fragmentação, o céu é o horizonte.  Contudo, não se trata de um céu bucólico, de paz, mas de um espaço  ambíguo: lugar da liberdade e ao mesmo tempo do vazio. Contemplá-lo é se  sentir livre, mas igualmente perdido.  Já Liberdade nos traz o paradoxo da condição humana. Não falo da liberdade  idealizada dos românticos, mas uma liberdade precária, sempre ameaçada pela queda. Há uma forte presença do existencialismo, pois somos seres  lançados, condenados a escolher, a inventar caminhos que nunca serão  definitivos.
O sentido da obra é, portanto, duplo: celebra o fato de ser livre,  mas não esconde o peso da angústia que acompanha toda escolha. Esse vazio, essa solidão paradoxal e a fragilidade dos laços humanos não são  apenas dramas individuais: fazem parte do que chamamos de espírito da  época, o Zeitgeist. Cada era produz sua forma própria de angústia. A nossa,  marcada pela hiperconectividade, pelo excesso de imagens e pela promessa  de uma liberdade ilimitada, nos oferece, em contrapartida, uma ampla  solidão, causada pela soberba, narcisismo, infantilidade e toda uma série de  sentimentos que nos lança, como já disse, ao distrito da solidão, implicando  grande sofrimento, pranto sem conserto, melancolia oscilante.
 O Ar do Tempo, que quase nos obriga, feito tirania, a se comportar de  determinadas maneiras: de ser, parecer, comparecer ao que possa ser mais  ambivalente e sempre presente, como um desprezo pelo que não foi  estipulado como o que é beleza (corpos bem feitos, exagerados, bombados,  cheios de botox etc.). Essa forma de se vestir ou a insolência da negação de  um bom dia está nos conduzindo para formas sociais lançando seus vetores  para destruir tudo o que era gentileza ou etiqueta social, no melhor sentido. Vivemos cercados de contatos e, ao mesmo tempo, desprovidos de vínculos  profundos.
É o retrato de um tempo em que o sujeito, multiplicado em perfis  e telas, se encontra cindido, fragmentado. Naya, ao apresentar obras como  Cisão e Liberdade, parece traduzir esse Zeitgeist: a existência de um ser que  habita um mundo saturado de presenças visíveis, mas pobre em presenças  reais. O terceiro eixo da obra de Naya nos coloca diante de um curioso paradoxo:  ao mesmo tempo em que se lança para o campo da arte digital, a artista  recupera mitos, ora locais, ora estrangeiros. No Folclore de Câmara  Cascudo, ela resgata narrativas do imaginário potiguar. O que poderia ser  apenas ilustração folclórica ganha significado simbólico e universal, pois os  personagens não são caricaturas, mas a representação de um inconsciente  coletivo ainda vivo. O mito, nos lembra Mircea Eliade (O Sagrado e o  Profano), não é o que restou do passado, mas uma força atuante no presente.  Ao abordar o tema em sua obra, Naya nos recorda que a força da cultura popular permanece presente, quase como uma necessidade, mesmo em  situações onde não o reconhecemos. Em Akai Ito, o fio vermelho do destino, mito japonês que une pessoas  predestinadas, a artista se desloca para outra tradição cultural, mas reinscreve  em sua poética um mesmo rito de um mito presente em muitas culturas. O  fio vermelho é metáfora da ligação invisível entre corpos, tempos e culturas.  No gesto de Naya, o mito oriental se funde ao repertório nordestino,  revelando que o destino humano é, no fundo, o mesmo: o desejo de ligação,  a busca por um outro que nos complete.




Especial: Família Rosado realiza viagem em busca de suas raízes no Sertão Paraibano.

No sábado passado, 13/09/2025, parte da tradicional Família Rosado de Mossoró viajou ao Sertão Paraibano, especificamente para Pombal e Catolé do Rocha, terras de Maria Amélia e Jerônimo Rosado, e Isaura Maia, os precursores da descendência da mesma. A viagem partiu de Natal e Mossoró, com uma pausa em Caicó. Nas referidas cidades, uma verdadeira imersão ancestral, cultural e emocional, que percorreram ruas, igrejas, praças e as Fazendas Valparaíso, Jatobá, Curralinho e Vila Isauro Rosado, onde nasceram e viveram os primeiros e icônicos descendentes. A viagem e as visitas guiadas foram conduzidas pelo historiador Rodolfo Maia, resgatando fatos do passado que marcam as raízes da família mais poderosa e emblemática do Oeste Potiguar, os Rosados. Segundo os familiares, um momento de união que ficará marcado no coração de todos.



Fonte: Território Livre.

https://blog.tribunadonorte.com.br/territoriolivre/

Especial: Nilson dos Santos: registro da etnografia de um tempo extinto.

 Por: Márcio de Lima Dantas.

Há pouco se apagou de vez  no reduto dos dicionários  certa palavra-chave. Henriqueta Lisboa  

Nilson dos Santos (17.06.1970) nasceu em Currais Novos. Iniciou seus  trabalhos com os pincéis, fazendo letreiros e desenhos publicitários nos  estabelecimentos comerciais, ou seja, era sob encomenda. Portanto, o que  predominava era a funcionalidade, o concreto, que existe desde muito como  apelo para a venda dos produtos da casa onde estava assentado o escrito. O  interessante foi que logo os comerciantes reconheceram a verve e vivacidade  do rapaz. Desse modo, não se contentavam com apenas os letreiros, os  números, mas também pediam algum personagem ou objeto relacionado ao  letreiro e ao que era passível de venda no comércio onde estava escrito o  demandado. Mas há que dizer uma coisa acerca do surgimento da característica da  personalidade do pintor de fachadas ou paredes outras. É que, sutilmente, ele  estava atento ao seu irmão, que também fazia o mesmo serviço. E assim  surgiu o entusiasmo pelo desenho e pela pintura, pois eram detentores de  uma inspiração que parecia estar adormecida desde sempre nas profundezas  da sua subjetividade. Infelizmente, seu irmão não continuou. Talvez o fôlego estético fosse curto.  Acontece isso no universo da arte. Muitos começam e avançam, porém, não  parece ser um assinalado dentre os que estão no grande círculo, que, na  verdade, vai selecionando a partir de algo que não sabemos direito como  ocorre. Tão somente nos limitamos a indigitar: inspiração. 

Enfim, eis um pintor naïf que surge para agregar-se aos tantos ingênuos já  existentes. Só que ele não sabia que viria a ser um dos melhores do estado  do Rio Grande do Norte. Mas quero dizer que não ficou só por aqui.  Participou de exposições mundo afora e ganhou prêmios e reconhecimento.  Apesar de tantas alvíssaras, permaneceu um homem gentil e simples, fácil 

de lidar e sem vaidades. Sua pintura reflete essa sua maneira de lidar com a  vida e com sua imensa clientela.  Para efeito didático e de melhor compreensão do conjunto da obra, preferi  arrumar essa profusão de telas em dois estilos. Mesmo amadores são capazes  de discernir essa bipartição. Entretanto, é preciso reparar que há um legítimo  traço do risco e da cor que vai preencher as vestes das personagens ou as  cores das casas dos sertões. Na verdade, o que tem de melhor são as telas de  ingenuidade com temas da vida sertaneja.  É aqui que eu prefiro fazer saber de uma etnografia, À la recherche du temps perdu (Marcel Proust). Há como uma necessidade de registrar as maneiras  de viver de outrora, tanto no que diz respeito ao utilitário ou funcional, quanto ao lúdico de inúmeras brincadeiras infantis. Acredito que homens  hoje com mais de 60 anos conseguem se reconhecer nesse lazer feito de  improvisos, de elementos retirados dos arredores, das cercas, do que restou  de uma fruta. Quer dizer, não havia nada de industrializado, tudo era feito  com materiais oferecidos pela natureza. 

Basta dizer que essa etnografia de outrora deixava o mundo bem mais  simples, sem modas ou modos que a Ideologia (pensamento das classes  dominantes) imperava com seu mando, fazendo parecer as coisas como  naturais e não como historicamente construídas. Observar e pintar os  costumes de um grupo social, atentando-se às suas crenças, à sua  religiosidade e a como as crianças representavam o mundo e o vivenciavam. O que me interessa saber e dizer acerca do artista visual Nilson Santos é que  sua pintura, na verdade, não passa de uma bela narrativa de um mundo que  sofreu a ausência de indulto do mito de Cronos (o tempo), assolando cercas  de pedras, carrascos, riachos, casas de taipa, lavouras a serem segadas com  a alegria de colher o que se plantou e não recebendo esmolas do Estado. A  rotina era escandida pelas horas de ocupação nos trabalhos do campo ou  domésticos. Bem diferente dos dias de hoje, em que se mede os expedientes  da rotina pelo culto ao corpo, pelo narcisismo das redes sociais e por quase que uma obrigação de demonstrar que se é feliz, que está aproveitando a vida  com um copo na mão e sorrisos visivelmente artificiais. 

Nilson tem uma série muito bonita e que se assemelha ao pintor de Fortaleza,  Chico da Silva, o maior pintor cearense de todos os tempos. As demais séries  são sua dicção pictórica, ingênua e extremamente lúdica, principalmente no  desenho simples que refoge totalmente ao desenho acadêmico. Acontece  que, nessa série, acaba por se afastar de si próprio. Não que imite o pintor  cearense, mas, ao pintar galos, borboletas, cavalos-marinhos, pavões, ou  seja, só animais, o seu traço diz de uma múltipla diferença do que sempre  foi. Assim sendo, só podemos entender que se trata de uma inquietude  estética, quer dizer, não se conforma, nem parece ter se acostumado com sua  gramática pictórica do que sempre foi, aquela que virou vício ou costume e  foi reconhecida publicamente também nas vendas das telas. Com efeito, essa série caracteriza-se por não haver o personagem humano,  apenas animais em retratos hieráticos e plenos de elementos ornamentais, com uma mescla extremamente diferente ao misturar toda uma sorte de  cores. Visivelmente, houve um desejo de plasmar outra espécie de pintura  com referentes (temas, assuntos) distintos do que sempre fora.

 A tecnologia, com sua fúria e ânsia de mostrar, e se mostrar a que veio,  buscando, por vezes, à força, o seu lugar no seio das relações  contemporâneas de viver, nada poupou ou foi gentil com os jeitos de  comportamento do que era antes, calcado no simples, na ausência de  malícias, nas tiranias de convencionar o que é belo, para que todos aplaudam  isso que se chama o novo. Mas, na verdade, se, por exemplo, observarmos  com atenção a moda, chegamos à conclusão de que é extremamente de mau  gosto, com seus vestidos estampados e suas calças que parecem feitas de um  lençol. O sol já se pôs. Não adianta prantear ou lamentar o que não tem volta, o que  a humanidade escolheu como rodagem para seguir e andar a esmo, em busca  de um rumo. Inútil uma vereda saudável. Resta nos contentarmos com as  narrativas contidas nas telas ou na obra de um artista visual. Nilson dos  Santos, detentor de uma enorme disciplina, pinta convulsivamente, sem  nunca tropeçar em si mesmo, sem nunca se imitar, sem nunca deixar de  buscar temas dentro do seu vocabulário. Eis que o pintor, no caso de ser sua pintura considerada (tomei essa  liberdade) por nós “como” uma etnografia de outrora, e mesmo ainda do que  resta nas capoeiras e sertões adentro, acabou ocupando o papel do antropólogo. E o que está retratado na tela é o que representa o objeto  (Antropologia Clássica = antropólogo e as comunidades que vai estudar, ou  seja, o seu objeto), sendo que essa etnografia não é a que se encontra nos  livros de Antropologia (como os de Claude Lévi-Strauss). 

De todo modo, existe uma relação estreita entre o pintor e seu assunto  (referente), na medida em que o objeto pintado no quadro assoma de suas  entranhas, de seu inconsciente, do seu coração com lembranças, enfim, de  tudo o que está adormecido, e qualquer olhar ou barulho evoca o que tem  para emergir, com uma pulsão, com algo riscado que pode ser uma epifania,  com tudo vindo a ser uma necessidade de ser uma coisa no lugar da outra  (metáfora). Enfim, temos de admitir que a linguagem simbólica é a que prevalece, com  seus signos e sinais, outorgando ao desenho e às suas cores um pendor do  artista para plasmar determinadas coisas e não outras. Essa seleção são os  paradigmas que habitam o íntimo, desejando ser sintagmas. Ou seja, as  unidades justapondo-se para criar a vivacidade que impera e preenche de  entusiasmo a ingenuidade de meninos, donas de casa, homens na lavoura. E  tudo vem a ser vivacidade, alegria e saudades do que fora até certo tempo.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

70 Anos de “Os Mártires de Piancó”, o Livro que Abalou a Paraíba e Reacendeu a Polêmica sobre a Coluna Prestes.

 Por: José Tavares de Araújo Neto


Em março de 1955, a capital paraibana foi palco de um dos debates históricos mais acalorados de sua memória recente. O lançamento do livro “Os Mártires de Piancó”, do Padre Manuel Otaviano, pela Editora Teone, foi muito mais que um evento literário; foi um ato de resgate de uma memória dolorosa e o estopim de uma polêmica que dividiu a intelligentsia, a política e os militares paraibanos, reacendendo, trinta anos depois, as chamas de um dos episódios mais traumáticos do sertão: a passagem da Coluna Prestes por Piancó em 1926. O autor, Padre Manuel Otaviano (1880-1960), não era um historiador qualquer. Sacerdote, ex-professor, ex-deputado estadual, palestrante, jornalista e membro da Academia Paraibana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, ele era uma figura intelectual respeitada. Seu livro buscava “fixar para a posteridade o episódio trágico” da morte do Padre Aristides Ferreira da Cruz, sacrificado durante a irrupção da Coluna Prestes no sertão. O lançamento, realizado em 12 de março daquele ano, foi prestigiado por um “elevado número de pessoas, principalmente das classes intelectuais”, contou com discursos do deputado e intelectual Ivan Bichara, que destacou a dupla importância da obra: como “documentário de uma época” e como “estudo de caráter sociológico” pela fixação do ambiente sertanejo. A obra surgia em um contexto nacional onde se construía a “lenda do Cavaleiro da Esperança”, impulsionada pela biografia homônima de Jorge Amado (1942) que idealizava a trajetória de Luís Carlos Prestes. O Norte salientou que, enquanto a grande imprensa nacional celebrava essa narrativa, o Padre Otaviano agiu como um “repórter” que foi à fonte, recolhendo “farto material a respeito das violências sofridas pelas populações”. O jornal afirmou que, nos grandes centros urbanos, a doutrinação fortalecia o prestígio da Coluna, mas “nas áreas rurais, que lhe sofreram o impacto, causava dolorosas impressões”, gerando uma repulsa à ideia de renovação por meio da violência. O cerne do livro é a reconstituição dos eventos de 9 de fevereiro de 1926, quando a Coluna Prestes (ou um de seus destacamentos) se aproximou da cidade de Piancó e encontrou uma resistência organizada pelo polêmico Padre Aristides. Apesar de atuar politicamente em Piancó, onde fora vigário e construíra sua base de influência, ele era natural de Pombal, assim como o sargento Manuel Arruda, que fora designado para atuar em Piancó justamente a convite do próprio padre, que depositava extrema confiança em seu conterrâneo.Aristides era uma figura à parte da igreja, suspenso das ordens desde 1912 por viver maritalmente, mas um líder local influente e temido, em pleno exercício de cargo de deputado estadual. Com base no relato do próprio Manuel Arruda, é possível reconstruir com maior nuance o cenário político e pessoal em Piancó às vésperas do ataque da Coluna Prestes. O depoimento revela tensões profundas e complexas que antecederam o conflito: “O Padre era muito autoritário. Queria que todo oficial estivesse sob as ordens dele. O Antônio Benício rompeu logo com ele. Discutiram e romperam. Ficaram inimigos… O Padre, quando se metia em alguma dificuldade, mandava me chamar: ‘Sargento!’. E eu o tratava bem… Suassuna o desprestigiou em toda linha. O Padre, ele não tinha prestígio para mudar um soldado do destacamento. No domingo, 07, ninguém sabia notícia da Coluna Prestes. O João Galdino, Coletor Federal, inimigo acérrimo do Padre Aristides, passou um telegrama ao Suassuna oferecendo cinquenta homens armados e municiados. O governo aceitou incontinente. Quando o padre soube, enciumado, manda me chamar… ‘Sargento, eu mandei-lhe chamar para senhor me fazer o favor de me acompanhar até o telégrafo, que eu quero me entender com o Comandante Rangel'”. O telegrama de Galdino foi uma manobra astuta para minar a autoridade residual de Aristides, oferecendo diretamente a Suassuna o que deveria ser uma competência do líder local. A reação imediata do padre – buscar contato com o comando militar em Patos (o Capitão Irineu Rangel) através de seu amigo leal sargento Arruda – foi uma tentativa desesperada de reafirmar seu controle e não ser passado por seu rival em um momento de crise iminente. O que se seguiu foi uma tragédia. Após horas de combate, a casa do padre Aristides foi tomada. Ele e entre 16 e 17 de seus seguidores foram capturados, levados a um barreiro e brutalmente executados. A descrição gráfica dos corpos, com a maioria apresentando ferimentos cortantes na carótida (degolados), e o padre Aristides com o rosto retalhado e punhaladas, chocou os leitores da época e permanece como uma imagem visceral da crueldade do conflito. O livro não foi recebido pacificamente. Imediatamente, tornou-se o centro de uma tempestade política e histórica, iniciada pelo então deputado estadual o tenente Manuel Arruda de Assis. O tenente Arruda não era um crítico externo; era o ex-sargento da Polícia Militar que comandou um dos piquetes de defesa de Piancó em 1926. Em um longo e detalhado discurso na Assembleia Legislativa, ele contestou ponto por ponto a narrativa de Otaviano: 1. O Início do Confronto: Arruda negou veementemente que a Coluna tenha entrado em “atitude pacífica”. Segundo ele, a vanguarda era composta por dois oficiais a cavalo, seguidos por soldados em linha de atiradores em marcha acelerada. O tenente Manuel Marinho teria gritado “alto” três vezes e, em resposta, recebido uma descarga de carabina que iniciou o tiroteio, resultando na morte imediata de dois cavaleiros. 2. O Número de Defensores: Afirmou que os defensores eram 43 (16 militares e 27 civis), contestando números maiores citados por outras fontes. 3. O Caso da Bandeira Branca: Arruda contestou a história de que a bandeira branca teria sido hasteada como símbolo de paz. Explicou que um detento apelidado “Preá” usou uma camisa branca amarrada num rifle não para se render, mas para tentar cruzar a rua sob fogo e levar uma mensagem entre piquetes, sendo recebido a bala pelos revoltosos. 4. A Chacina: Seu relato no plenário foi chocante. Ao visitar o poço no dia seguinte, encontrou 16 corpos. “Quinze deles apresentavam ferimentos de arma cortante na carótida, tendo sido, portanto, sangrados… o padre Aristides… apresentava as duas veias carótidas partidas, as faces completamente retalhadas de navalha ou arma semelhante e uma punhalada no ‘vão’”. Classificou os atos como “verdadeira selvageria”. A réplica do Padre Otaviano foi rápida e contundente. Por telegrama, acusou Arruda de ter “alterado as cores” de uma entrevista anterior e desafiou-o para uma “mesa redonda” em Piancó com todos os sobreviventes, afirmando contar com o testemunho de outros participantes como Pedro Lima e Isidoro Vieira. Sua defesa foi categórica: “Nunca, porém, emudecer a minha pena para elucidar os fatos e restabelecer a verdade histórica”. Arruda, por sua vez, não recuou. Aceitou o desafio publicamente e propôs a mesa redonda, insistindo na presença de todos os sobreviventes e de uma comissão de deputados. Foi tão longe a ponto de prometer renunciar ao mandato de deputado se o padre provasse que ele estava errado em qualquer de suas afirmações. A polêmica rapidamente deixou de ser uma disputa bilateral e dividiu a sociedade paraibana, revelando que a memória do evento ainda era profundamente conflituosa. A Favor de Arruda: O Capitão Irineu Rangel (que em 1926 superintendia os comandos das forças policiais) deu aval total a Arruda, declarando que o livro do padre Otaviano “foge quase inteiramente à realidade dos fatos” e que a descrição do deputado era a correta. O Tenente-Coronel Ascendino Feitosa também apoiou Arruda, corroborando seu relato. A Favor de Otaviano: Em oposição direta a seu colega, o Tenente-Coronel Elias Fernandes defendeu o trabalho do padre, afirmando que ele descreveu os fatos com “rigorosa e exemplar fidelidade” e que o discurso de Arruda “foge inteiramente à verdadeira história”. O apoio mais significativo veio do Coronel Manuel Viégas, que comandava a força policial que perseguiu a Coluna Prestes. Ele foi categórico: “O padre Otaviano descreveu os fatos com precisão e é inconteste a sua história. A verdade está inteiramente com o padre Otaviano.” A discussão extrapolou o evento central de Piancó. Severino Procópio, ex-delegado geral de Polícia, contestou uma passagem do livro sobre um levante no Recife em 1928, negando que o presidente João Suassuna tivesse comandado pessoalmente a repressão. Porfírio Góis, telegrafista de Piancó em 1926, negou ter presenciado a chacina (pois fugiu) e insinuou uma teoria surpreendente: que o padre Aristides pode ter sido morto por inimigos políticos locais que se infiltraram na Coluna, e não pelos revoltosos. A polêmica em torno de “Os Mártires de Piancó” é um exemplo fascinante de como a narrativa da história é construída, contestada e disputada na esfera pública. Mais de seis décadas depois, o episódio permanece um capítulo indelével e controverso. O livro do Padre Otaviano cumpriu seu propósito de salvar do esquecimento os nomes dos “mártires”, mas a reação que provocou mostrou que a memória daquele evento ainda era uma ferida aberta, capaz de dividir militares, intelectuais e políticos. A história da passagem da Coluna Prestes por Piancó transcendeu o âmbito local, ecoando na literatura nacional através de autores como Érico Veríssimo (O Arquipélago) e Domingos Pellegrini (No Coração das Perobas). No entanto, a polêmica de 1955, vividamente registrada nas páginas de O Norte, permanece como o testemunho mais eloquente da complexidade de se narrar o passado, onde a busca por uma verdade única é invariavelmente substituída pelo confronto de múltiplas memórias, todas igualmente apaixonadas e, em seus próprios termos, legítimas. A verdade sobre a tragédia Piancó parece residir não em um relato, mas na soma tensa e contraditória de todos eles. 

Fonte: www.oxentenoticias.com.br

Especial: Leide Câmara: por uma paixão pela música.

A maior pesquisadora da música de natureza popular é Leide Câmara, cujo livro vamos esperar uns 100 anos para que venha à luz outro que se assemelhe ou também que possa superar (tarefa quase inútil). A pesquisa é insuperável, com datas, nomes de lugares e, quase sempre, a íntegra do vinil ou CD lançado pelo artista. É extremamente prazeroso ler esse livro com tantas informações que gestarão um substrato matriz para prósperas pesquisas acerca da história da MPB e, sobretudo, para o Rio Grande do Norte. Leide Câmara chantou seu nome no caderno de grossa lombada da História. A História é a prova dos nove. Sua seara já rebenta flores e frutos. Há que buscar segadores de grande interesse e amor pela música. A rainha do Chorinho, um estilo de música caminhando para a extinção,  a grande Ademilde Fonseca.  Nasceu  em uma localidade chamada Pirituba (Fazenda Califórnia). E que vem a ser hoje São Gonçalo do Amarante. Aos 19 anos casou em Natal com o violonista Naldimar Gedeão.  Em 1940 a família mudou-se para o Rio de Janeiro. Faleceu em 27.03. 2012 (Rio de Janeiro). Sua forma apressada no pronunciar às sílabas,  característica principal desse estilo de música, elevou-a a registrar seu nome como a mais completa desse modo de cantar, que obriga o cantor a alternar as consoantes e vogais em uma ligeireza que nunca houve quem conseguisse essa cadência.  É mister dizer que, assim como o balé clássico,  ela dominava o palco em amplitude muito complexa.  Ou seja, domínio e ginga no palco, além de ter completo   domínio no pronunciar exato das palavras concluindo para o referente (tema) da música que cantava. Palco e voz em um só amálgama,  além da elegância, gentileza com todos que conviveram com ela Para quem acha pouco,  Ademilde Fonseca tem uma música de João Bosco e Aldir Blanc fazendo valer a importância do chorinho cantado. 
Não há maior homenagem à uma diva dessa espécie de canto/singularidade nos instrumentos que, no fundo,  buscam o lépido obrigatório de uma voz que nem toda cantora consegue. Podemos comparar didaticamente com o modus operandi da ópera.  Desde muito precisava que o cantor ficasse parado,  sem mexer o diafragma, para não desafinar. O chorinho de Ademilde Fonseca no palco permitia que a voz tivesse grande agilidade,  e como Maria Callas, movimentava-se com naturalidade.  Foi assim que interpretou a música Tico-Tico no fubá, na sua primeira versão com letra, e não apenas melodia dos instrumentos apropriados para tocar esse ritmo de uma beleza que sempre foi popular,  pena que a tendência é, talvez, desaparecer. Wanderlea recentemente lançou um disco só com os clássicos do chorinho. Coisa para lá de bela. Sua presença na cena da MPB coincide com os tempos do apogeu do rádio.  Trabalhou em muitas delas,  sempre mostrando o apuro do seu trabalho.  Era uma diferença no conjunto de cantoras da época. Elegante e digna, impunha respeito na plateia. Não havia como não gostar dessa mulher que se fez cantora de um gênero musical nem sempre fácil de realizar uma performance de qualidade. Sejamos justos, honra eterna à uma das personagens mais marcantes da MPB.
Seu semblante, antes de fazer o canto garrido, era de uma refinada discrição,  fazendo saber que ali se encontrava uma pedra preciosa da MPB, admirada, por sua jovialidade,  pela melhor crítica da MPB. Quero dizer com isso que fundou uma escola no modo diferente de cantar ligeiro,  como se fosse lesto, obrigando o expectador a se concentrar em ouvir essa mulher que veio do litoral das terras do Nordeste.  Hoje Macaíba faz parte da grande Natal. Por fim, Leide Câmara nasceu no Alto Oeste,  na cidade de Patu, onde o sertão alcança seu apogeu,   tanto no bioma, mas também em possuir uma etnografia de riqueza de costumes, inclusive de músicas com seus acordes diferenciados. Enfim, essa escola cujo fundante é Ademilde Fonseca, se estendeu para todo o país. Um estilo que poucos cantores são capazes de se filiar nessa jovialidade e amor ao canto.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Especial: Os Cangaceiros Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Lampião no Romance d’A Pedra do Reino

Por José Tavares de Araújo Neto.

Em Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, Ariano Suassuna constrói uma epopeia sertaneja que mistura história, mito, genealogia e poesia popular. Nesse vasto mosaico, três cangaceiros ocupam lugar de destaque como símbolos da tradição guerreira e da memória popular nordestina: Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Lampião. Cada um deles é evocado não apenas como personagem histórico, mas como figura mítica, integrante da “cavalaria sertaneja” que o autor ergue em paralelo com os cavaleiros medievais. Suas aparições, embora breves, servem para estabelecer uma hierarquia de valores e uma mitologia regional que dialoga com a tradição oral, a literatura de cordel e a reconstrução de uma identidade nordestina nobilitada. A presença de Jesuíno Brilhante entre os homenageados por Ariano Suassuna na dedicatória de O Romance d’A Pedra do Reino — ao lado de nomes como João Suassuna, José de Alencar, Sílvio Romero, Antônio Conselheiro, Euclides da Cunha, Leandro Gomes de Barros, João Duarte Dantas, Homero Torres Villar, José Pereira Lima, Alfredo Dantas Villar, José Lins do Rego e Manuel Dantas Villar, os quais o autor classifica como “santos, poetas, mártires, profetas e guerreiros do meu mundo mítico do Sertão” — é central para a compreensão de seu projeto estético e literário. Nesse universo mítico forjado por Suassuna, Jesuíno encarna o arquétipo do guerreiro-poeta: um justiceiro que funde a violência das armas à eloquência dos versos, simbolizando a dupla face da cultura sertaneja — ao mesmo tempo brutal e sublime. Sua figura torna-se peça fundamental na construção desse Sertão imaginário, elevado à condição de reino simbólico, onde valores como bravura, arte e honra regem as ações humanas com a grandeza e complexidade das epopeias clássicas. Dessa maneira, Jesuíno Brilhante consolida-se como um dos cavaleiros fundadores do Brasil Armorial — esse país literário sonhado e eternizado por Suassuna, no qual a tradição popular e a erudição se fundem para criar uma mitografia única e profundamente brasileira. Jesuíno Brilhante é evocado como o arquétipo do cangaceiro honrado, quase um cavaleiro medieval transposto para a caatinga. Sua menção no Folheto XII é carregada de admiração e nostalgia. Através de versos de cordel adaptados pelo narrador, Dom Pedro Dinis, Jesuíno é celebrado como quem “morreu no campo da honra” e é chamado de “Rei do Sertão”. Sua imagem é associada a um código de conduta rígido, de respeito às famílias e de bravura inconteste. Suassuna utiliza Jesuíno para encarnar o ideal armorial de coragem e nobreza sertaneja, um parâmetro contra o qual outros cangaceiros serão medidos. Ariano o insere na linhagem dos “reis do sertão”, heróis populares que desafiaram a ordem oficial e se converteram em personagens épicos da memória nordestina. Conhecido pelos apelidos de Rifle de Ouro e Governador do Sertão, Antônio Silvino ocupa posição de destaque na narrativa de Quaderna. Ariano Suassuna o apresenta como uma autoridade paralela, cuja arma cintilante simboliza poder e respeito. Mais do que simples bandoleiro, ele surge como personagem épico consagrado nos folhetos de cordel — herói de júris, biografias rimadas e lamentos — que o fixaram no imaginário popular. No romance, Silvino é reelaborado como príncipe sertanejo, cavaleiro armado de rifle, herdeiro da tradição guerreira e parte essencial do projeto armorial de Ariano, que transforma os cangaceiros em reis errantes do sertão. No Folheto XIV, Silvino é evocado como senhor de um “castelo”, metáfora retirada da tradição do cordel para designar seu refúgio e domínio simbólico. Essa fortaleza, “fincada em Pedra de grande altura”, resiste aos ataques do governo e adquire um sentido que vai além da defesa física: expressa a autonomia cultural do sertão e sua capacidade de erguer estruturas próprias de poder e soberania. Assim, o cangaceiro é assimilado à imagem de um senhor feudal sertanejo, cuja trajetória serve de alicerce para a mitologia armorial que Suassuna constrói, transformando o sertão em palco de reinos, castelos e cavaleiros. Lampião é citado como chefe supremo do cangaço, o mais famoso de todos os bandoleiros. Seu título de “Rei” é incorporado à linguagem quase nobiliárquica do narrador Quaderna, que o situa dentro da simbologia armorial: assim como os reis medievais tinham tronos e coroas, Lampião teria sua “coroa” de cangaceiro, conquistada pela liderança e pelo temor que inspirava. Em algumas passagens, Suassuna o nomeia como Dom Virgolino Ferreira, conferindo-lhe um estatuto de nobreza sertaneja. Essa forma de tratamento, típica da ironia do narrador, transforma o cangaceiro em personagem de uma cavalaria invertida: ao invés de espadas, rifles; no lugar de armaduras, gibões de couro. O romance ressalta que Lampião, embora fosse de origem pobre e mestiça, se aliou à família Pereira e a Sinhô Pereira, reproduzindo os interesses da aristocracia sertaneja. Essa lembrança aparece como crítica — especialmente quando Suassuna o contrapõe a líderes revolucionários como Zapata e à Coluna Prestes, que representariam uma rebeldia com projeto político mais claro. Em outra linha de citações, Lampião aparece vinculado a seu bando, sobretudo a Corisco, que Suassuna enaltece como cabra valente, quase um cavaleiro do sertão. Essa presença secundária reforça a imagem de Lampião como comandante de uma irmandade de guerreiros, integrada à epopeia armorial. Por fim, o Lampião do romance não é narrado apenas como personagem histórico, mas como emblema da cultura popular: sua figura já transformada em cordel, cantoria, lenda e poesia. O romance recolhe essa tradição e a reinventa em chave épica, integrando-o à mitologia sertaneja que Suassuna constrói. Em conjunto, a tríade Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Lampião forma uma linha de sucessão: Jesuíno como fundador cavaleiresco, Silvino como príncipe feudal e Lampião como rei absoluto. Ariano constrói, assim, uma genealogia épica do cangaço, equiparável às linhagens de reis e cavaleiros das epopeias medievais. O romance insere os três na lógica da “realeza do sertão”: Jesuíno como o cavaleiro honrado, Silvino como o governador, Lampião como o rei. Todos eles participam de uma monarquia simbólica, onde o sertão é visto como reino independente, com seus próprios soberanos. No projeto armorial de Suassuna, os três são reelaborados como parte de uma cavalaria sertaneja: em vez de espadas, rifles; em vez de armaduras, gibões; em vez de castelos de pedra, lajedos e serras. Eles se tornam cavaleiros míticos do sertão, compondo a epopeia que Quaderna sonha escrever. A tríade também simboliza a complexidade do sertão: Jesuíno representa a justiça popular; Silvino, a autoridade autônoma; Lampião, a força ambígua que fascina, mas também revela limites. Eles condensam, assim, os dilemas entre banditismo, poder e mito. As citações de Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Lampião em A Pedra do Reino não são apenas lembranças históricas: são símbolos armoriais. Ariano Suassuna os transforma em cavaleiros de uma epopeia nordestina, heróis de uma monarquia simbólica que reinventa o sertão como reino. Unidos, eles compõem uma tríade que expressa a passagem do cangaceiro cavaleiro (Jesuíno) ao príncipe feudal (Silvino) e ao rei trágico (Lampião), pilares da mitologia que dá sustentação ao romance.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Especial: Olympia Bulhões: a casa de morada e seus emblemas simbólicos.

 



Por: Márcio de Lima Dantas.

Não te fies do tempo nem da eternidade

que as nuvens me puxam pelos vestidos.

que os ventos me arrastam contra meu desejo!

Cecília Meireles




Olympia Bulhões (Natal, 24.09.1966) tem formação acadêmica em Arte Educação pela UFRN. O fato de ser sobrinha de dois artistas acabou por influenciá-la a lidar com lápis e pincéis, pois convivia com os tios desde pequena. Façamos referência ao que mais a conduziu para que viesse a ser artista visual naïf. Esse artista é Levi Bulhões, ainda em franca atividade, dotado de um papel nuclear no conjunto dos artistas filiados a essa tradução da pintura também chamada primitiva e que no Rio Grande do Norte assoma, ou seja, aparece em grande quantidade e qualidade, em uma plêiade de diferentes estilos, com suas gramáticas pictóricas inerentes à singularidade de cada um. Como não poderia deixar de ser, reverbera dessas estrelas um grande naipe de pintores que atinge um registro de não originalidade, mas lança seus vetores e estéticos para assinaturas universais. Para não esquecer de onde veio esse manancial que não para de verter mais pintores vinculados a essa tradição, obrigatoriamente, temos de evocar o nome de Maria do Santíssimo, aquela que foi o prelúdio dessa mina, não cessando de verter a transparente água do arroio. Dessarte, foi ela a naïf que primeiro riscou, no volumoso livro das artes visuais do Rio Grande do Norte, seu nome em um vinco, fazendo uma assinatura involuntária. Sem saber nem do que se tratava, fez saber que, mais do que um prelúdio, também fundava uma tradição, conclamando à posteridade uma espécie de desafio, alentando quem pudesse superá-la, sobretudo no que diz respeito às formas de como germina a potência de lançar o ser para uma vontade de lidar com o simbólico da estética de alguma forma. No caso de Maria do Santíssimo, parece ter sido regida por uma espécie de aura que ela continha desde seu despertar para a vida, desde que se fez gente, desde que se fez mulher e desde que casou. Ela passou a, involuntariamente, pintar suas cartolinas distintas de tudo o que há no nosso estado no que tange às artes visuais. Assim, temos de apreciar sua obra e a reconhecer como aquela que lançou para o tempo futuro um pomar capaz de gerar muitos frutos. A seara que lançou as sementes cresceu farta, e hoje temos uma sega com muitos trabalhadores dando respostas, quer dizer, não apenas já temos como ainda continuam a germinar artistas visuais naïfs. Quero dizer que, no imaginário do nosso estado, pulsa e reverbera um cabedal de artistas de que talvez poucos estados do Nordeste disponham de registro, nominados de naïfs, de ingênuos, de primitivos, ou como queiram indigitar. O importante é que uns são de razão acesa, qual frágua permanente (como Iaperi Aráujo, registro racional), e outros apresentam padrões estéticos que pontuam suas diferenças (Dona Ivanise, registro intuitivo). Assim, outros artistas mesclam o uso da razão com um vocabulário mais ingênuo, pintando com uma paleta plena de sentimentos e emoções. Não disse apenas para comparar mas também para mostrar a riqueza dos tantos pintores elaborando suas singularidades ou mesmo suas universalidades, erguendo-se como prova do que temos de nosso para apresentar a outras nacionalidades ou mesmo às nossas regiões do Brasil.

Acredito que o melhor de Olympia Bulhões sejam as fachadas de casas modestas com seus jardins bem cuidados, plenos de flores e suas diversas maneiras de organizar os detalhes das portas e das janelas. A arquitetura pode ser de grande simplicidade, mas, para um bom observador, fica-se diante de um fato estético, pois cada uma recebe uma diferença na sua fachada como um todo. Ao manter-se uma distância, isso acaba por atestar o esmero como foi feita, pois em algumas casas predominam a linha curva, tanto na porta quanto nas janelas. Linhas curvas que desenham a platibanda, causando uma elegância extraída do que nos chega como simples; linhas que emolduram o contorno das portas e janelas, embora haja também pequenas casas de feitura modesta, demonstrando as condições de vida de seus moradores.
Na verdade, são casas de antigamente, quando não havia tanta violência e as pessoas podiam ficar defronte, debaixo das árvores, varrendo as calçadas, irrigando as plantas, com sua profusão de flores. As casas receberam cores extremamente fortes, puras, o que faz chamar a atenção para também contemplar esse resplende de uma tinta luminosa. Com efeito, essas pequenas herdades parecem querer convidar o espectador, conclamando a se viver de maneira mais tranquila, com sossego, sem tanta preocupação com o tempo que sopra sua brisa; esquecendo um tanto as demandas de uma sociedade como a nossa, na qual predomina o narcisismo e o anonimato é combatido. Resta o valor de aparecer a todo custo (com um ridículo copo qualquer na mão). As redes sociais demandam ser alimentadas por fotografias o tempo inteiro. O perfil do WhatsApp é mudado de tempos em tempos, para aparecer com um sorriso que só um tolo não percebe a artificialidade: basta observar os dentes, são sempre os mesmos. A felicidade é de plástico. Falar da casa de morada, principalmente quando lhe pertence, é lidar com sua simbologia, ou seja, com o lugar em que moramos e o modo como arrumamos seu interior, o jardim e o pomar. Isso fala de nossa identidade pessoal, escreve metaforicamente como somos no íntimo, já que a casa detém em si a dicotomia entre o interior e o exterior (a rua). A casa, nesse sentido, seria a síntese de uma sintaxe – um meio de organizar os diversos paradigmas (objetos) que selecionamos para viver –, quer dizer, uma dicotomia entre o comportamental do coletivo (o fora) e do pessoal (oíntimo). A casa nunca deixou de deter o simbolismo no qual nos sentimos amparados em um abrigo, no qual descansamos após a jornada do dia a dia, com seus trabalhos e sua rotina. O espírito detém segurança e conforto de sempre ter para onde retornar: alimentação, descanso e as horas de sono no decorrer da noite. Na verdade, o fora parece ser o dentro, uma casa que dispõe de seus objetos funcionais ou de adorno e que acaba por desvelar o imo dos seus habitantes. Então, podemos admirar e resguardar com esmero o lugar onde habitamos, ordenando para uma segurança e para o que sempre se diz: “qual o melhor lugar do mundo?”. Todos sabem a resposta.

Creio que duas telas conseguem se destacar por se dizer algo extremamente banal: lavar roupa dentro de bacias com sabão, quarar uma parte, outra parte pendurar no varal. Há uma tela em que as roupas estão esquecidas em um varal à beira-mar. Não há ninguém. Em outra, estão lavando à beira-rio. Lavar a roupa também é uma alegoria concernente às tarefas da casa. Seria uma forma de, após lavar, passar a roupa para se apresentar socialmente. Neste escrito, tive oportunidade, amiúde, de me reportar ao naipe simbólico da casa e ao que ela representa. Afora esse caráter (ethos) das pequenas e simpáticas herdades, nas quais avultam cores fortes e firmes para reforçar, talvez, o distintivo de ser um símbolo, cujo epíteto nos acompanha desde a infância, há a dimensão funcional, prática. Afinal, não foi feita para adorno.

No conjunto da obra de Olympia Bulhões, quase tudo remete ou deixa implícita a alegoria de objetos e temas vinculados a casa. Vejamos alguns desses referentes: roupa no varal, o jardim irrigado com uma mangueira, o quarto de Câmara Cascudo, louça de Ágata (representação do café da manhã; uma das mais bonitas e criativas telas representando o desjejum), as diversas santas como signo de religiosidade católica (N. Sra. do Livramento), crianças brincando defronte a casa. Como podemos ver, quase tudo evoca a casa como um emblema, uma metáfora e seu caráter simbólico de delinear uma identidade pessoal. Ao entrarmos em uma casa qualquer, já conseguimos decodificar uma sequência de elementos referentes a seus moradores. Isso quer dizer: os moradores organizam determinados objetos escolhidos como decoração ou também como lugar de conforto, diferentemente do que ocorre hoje em dia, em que há uma pasteurização meio ridícula de decorar as casas com os móveis que se encontram na moda. As casas são edificadas como se seguissem o mesmo padrão, pouco ou nada fogem dele, quando erguidas com cimento armado, madeira, vidro e determinadas espécies de plantas (não pode ser qualquer uma). Haja vista os condomínios fechados, parecem uma espécie de farda de colégio no seu minimalismo que a nada conflui, sobretudo em um país com forte tradição Barroca. Ainda com relação à figuração da casa, mesmo que tenha mudado muita coisa, como a divisão de papéis, de trabalhos no cuidar da casa, os homens ainda permanecem com sua tradição patriarcal de entregar quase tudo à mulher, com sua segunda jornada do dia: o trabalho/emprego e ainda chegar e cuidar da casa, lavar ou passar. Sei que pode não ser a regra, mas ainda persiste o lugar da mulher e o lugar do homem. Lembro aqui a quantidade de telas nas quais a pintora representou a mulher, índice intrinsicamente referenciado ao feminino.

Para efeito puramente didático, isolamos uma marca da pintura de Olympia Bulhões: foi a insígnia da casa e sua simbologia. Esse tipo de interesse concerne à Antropologia Cultural; quero dizer com isso que esse domínio do saber estuda as diversas culturas e suas idiossincrasias, seus costumes, suas formas de se comportar, assim como o jeito de residir em edificações. No nosso caso, foi um estudo de um distintivo relacionado à casa, como se fosse uma Antropologia de nós mesmos, embora a casa dessa pintora tenha funcionado como matriz ulterior, quer dizer, o relato das casas e seus naipes de valor dizem respeito ao passado.
De fato, a casa como concebíamos antes tinha a ver com o espírito da época (zeitgeist), no qual predominavam formas de ser e de se comportar. Não havia a violência e a insegurança que permeiam hoje em dia. A casa era como se fosse um distintivo onde o indivíduo podia assegurar sua rotina, escanear seu tempo em um ritmo capaz de outorgar tranquilidade, pois não havia tantos intercursos, tanta coisa que impedisse o cotidiano de fluir de acordo com o previsível. Verdadeiramente, a casa é o lugar no qual há um palco onde o eu e o mundo exterior reforçam a dicotomia do dentro e do fora, conduzindo o indivíduo a organizar suas emoções, a refletir em seu quarto, a cuidar do seu jardim, a provocar as necessárias rupturas de gente tóxica, a cultivar o necessário silêncio em seu benfazejo sanativo. Por fim, faço saber da beleza e do caráter simbólico da obra de Olympia Bulhões, com seu emblema (“o que está colocado dentro”), a casa, organizando as tantas séries produzidas pela pintura denunciadora de uma metáfora subliminar: os muitos significados da insígnia “casa”. Afinal, não precisa ir muito longe, antigamente era o lugar em que nascíamos e passávamos a maior parte da vida. Hoje tudo mudou. Temos a ânsia de morar em apartamentos com sua verticalidade, que também não deixa de ser um símbolo: por um lado, evadir-se do rés do chão, afastar-se das pessoas, não ter a obrigação de conviver com vizinhos; por outro, decorar os apartamentos de maneira exatamente igual, beirando o ridículo, com o morador detendo uma personalidade sem muita diferença dos outros, como se fosse uma série lembrando uma farda escolar.