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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Especial: César Revorêdo: história íntima da solitude

 Por Márcio de Lima Dantas 

O fim 

limite íntimo 

 nada é além de si mesmo 

ponto último. 

Orides Fontela 

1. Prelúdio 

Essa nova série do artista visual Cesar Revorêdo apresentou-se em duas  exposições individuais: Alma Mater (2024, no seu ateliê, que também abriga  sua própria galeria: Cesar Revorêdo: Gabinete de Arte) e Todas as mulheres  do mundo (São Miguel do Gostoso), que entregam sua proposta de tratar de  uma condição concernente ao ser humano: a solidão e os diversos modos de  abordá-la, a partir do momento em que somos direta ou indiretamente  arredados para esse estado que integra a condição de todo ser. 

Destacando a mulher como ícone, esse espaço nos conduz a refletir sobre um  dos dois recursos presentes na linguagem: a metonímia, integrante dos dois  eixos que estruturam a linguagem (Ferdinand de Saussure). Esse eixo é o da  combinação (horizontal), distinto do eixo paradigmático, que diz respeito à  seleção (vertical). 

Consabido é que a metonímia requer uma relação objetiva entre as duas  partes que se aproximam para comparar, para colocar uma coisa no lugar da  outra. Dessarte, a metáfora é calcada no livre-arbítrio de quem elabora. Ou  seja, não há necessidade de interpor entre as duas partes comparativas uma  relação de pertença, é pura analogia, haja vista o que o Surrealismo de  Salvador Dalí conseguiu engendrar com total liberdade o fato de colocar em  uma tela o que quer que fosse: triunfo e bom uso da metáfora. 

Voltando às mulheres. Sim, é bom dizer que o corpus por nós manuseado,  para efeito de extrair possíveis significados, foi somente treze telas  apresentadas por Cesar Revorêdo. A mulher nessa série, protagonizando uma 

imagética na qual se encontra só e sem rosto, nos permite evocar que ela é  uma metonímia do ser humano. Sua aura e os poucos elementos  circundantes, em um excelso minimalismo difícil de alcançar em arte,  constroem um discurso de uma representação da parte pelo todo. 

Com efeito, essa aludida solidão não diz respeito somente ao feminino, pois podemos pensar em um grande círculo capaz de agregar toda uma sorte de  singularidades de gêneros. Há que pensar em um “nós”, para que o círculo  retesse seu perímetro, e considerar que, um dia ou outro, a depender da  Fortuna ou de Cronos, cada um haverá de provar do travo amargo dessa raiz.  Ela que lança muitos a negociar todas as boas cartas dos naipes de ouros ou  de paus, em função de nunca estar só, nunca estar sozinho, nunca quitar as  dívidas consigo mesmo. 

E, daí por diante, incorporar uma outra pele, marcada por estar diante de si  sem as interpelações do entorno, do discurso alheio, dos chavões tediosos  das falas familiares. 

2. Interlúdio 

As telas registram a mulher com uma parcimônia de formas e um  minimalismo cromático, margeando uma só personagem retratada: um  personagem feminino sem o traço de olhos e bocas, configurando um  semblante com uma expressividade que se bandeia para as fronteiras dos  domínios de, até certo ponto, um hieratismo e uma subjetividade voltada à  introspecção. 

O talhe longilíneo parece querer falar de um corpo, resultado de múltiplas  experiências vivenciais. Há um silêncio presente, tal qual uma necessidade,  no resguardo da verticalidade corporal (evoco aqui o arquétipo presente nos  personagens de Dom Quixote de La Mancha), embora não se possa  considerar como regra geral. A obra é prosa? É ficção: o biótipo esguio do  Quixote, lançando-se mais para o alto, congrega as pessoas mais afeitas à  imaginação, à inventividade, distanciando-se do real empírico. Sancho  Pança, no seu jumento, olhando para o chão, resguarda um biótipo mais  atarracado, parrudo e preso às leis da razão, do sensato, questionando o  excesso de imaginação. 

Ainda as mulheres. Elas estão vestidas com indumentárias de cores vivas,  como o verde-escuro, o azul-real, o laranja e o preto. A luz emana, parece,  da própria personagem, em uma atmosfera circundada sempre por um 

retângulo na vertical. Aquela encontra-se no centro da cena. Defronte de si,  uma cadeira bastante simples, sem o conforto de um sofá, sugere o hábito de  estar acostumada a se amoldar em tudo o que lhe chega à frente, bem como  o merecido descanso momentâneo para refratar a fadiga, inerente aos seres  humanos com maior autonomia subjetiva. 

Toda a aura que arrodeia a cena é como se o aludido “nós” passasse a viver  e ocupar seu tempo através de sua própria luz. Uma espécie de sol íntimo a  iluminar apenas o essencial, o parco, o suficiente de um espaço conseguido  não sem luta: consigo e com as regras sociais. 

Há duas outras coisas que esqueci de enumerar dos elementos da composição  de algumas telas: uma bicicleta e os gatos. A bicicleta, sem a garupa, terá  sido acidental, com o selim e uma cesta na frente do guidão? Ou quer insinuar  que só cabe uma pessoa, um “nós” sem criança ou adulto para conduzir ou  ser conduzido. 

Com relação aos gatos, em uma tela aparecem dois, em outras apenas um.  Insisto ainda na incerta adoção de algum animal... pode ser um sintoma. Os  gatos são silenciosos, quietos, independentes... diferentes dos cães, com sua  insistente busca de atenção, guarida, ordens, cumplicidade. Há quem deteste  cachorros. 

Consabida é a grande quantidade de casas de pets na paisagem das ruas.  Basta prestar atenção: a mesma coisa acontece com lojas de aparelhos para  audição. O que está acontecendo para que haja tal demanda? Aspiremos com  profundidade o Ar do Tempo (Espírito da Época). Só assim a paisagem se  desnuda com seus símbolos, plenos de veias que latejam um discurso a ser  decodificado por quem gosta de mirar com ironia o desmantelo de uma  sociedade completamente irrecuperável, caminhando por veredas equívocas. 

Todo animal em casa conduz o tutor ao domínio sobre o bicho. Com sua voz  ativa, a criatura reconhece como seu proprietário obedece à assertividade,  acostuma-se com a voz. Por outro lado, é mais fácil conviver com animais  do que com gente. Conheço gente que é insuportável como amigo, com suas  indiretas e insinuações infantis, mas é este mesmo que adotou doze gatos,  que ficam por todo canto da casa e dormem na cama com ele. 

Seguindo essa linha de raciocínio, somos conduzidos a refletir acerca de uma  solidão lancinante. Não uma solidão por causa de uma perda, menos ainda a  intensidade de uma solidão cruel, mas uma dificuldade de estabelecer um  relacionamento interpessoal com o mínimo de etiqueta, educação e o sempre  bem-vindo pudor.

Contudo, quero exaltar e exultar um estado de solitude alcançado por meio  de exercícios mentais nos quais se apela para a razão, no embate com a  experimentação do chamado real concreto. A desdita de uma solidão opaca  foi superada. Signo do infortúnio para todos que estão encenando no grande  palco do mundo, com seu cotidiano pleno de rotinas. No mau sentido, pois a  rotina libera um estar presente no dia a dia, com seus relacionamentos  fraternos ou íntimos eivados de palavras por dizer, de ações mal feitas, de  pouco ânimo para a vida e para o que chamam de felicidade. 

Ora, quando se fala de rotina, há que evocar outra espécie de pessoa: os  artistas, os cientistas ou aqueles que amam seu trabalho. É claro que o  cotidiano, com sua previsibilidade, se faz necessário, dado o fato de ser um  assinalado para aquele ofício ou ocupação principal personalizada. Nada  melhor do que despertar sabendo o que vai fazer das horas em sua escansão  pré-determinada. Se Cronos caminha com largas passadas, devorando tudo  o que for vivo e lateja, então é preciso atalhar até certo ponto, já que não podemos apostrofar ou evitar esse ritmo de pressa. 

Porém, existe essa possibilidade, essa alternativa, face aos infortúnios  cravados pelas deusas do destino, as implacáveis Parcas. Até os deuses da  antiga Grécia estavam subordinados às três: Cloto, Láquesis e Átropos.  Sempre fiando e tecendo o fio da vida, uma labuta sem fim, até chegar a hora  de cada um, encerrando a encenação no palco da vida. Essas três pouco se  importam com quem conduz bom ânimo ou com quem vive sem apego à  vida. Apenas algo que é inerente a todos: cansa-me ser (Orides Fontela). 

3. Toccata and fugue  

Por fim, através de expedientes das áreas subjetivas, habitadas nos distritos  onde jaz tudo o que é sombra, de tudo o que é surdamente agressivo, de tudo  que risca no caderno tendo seus vocabulários próprios de defesa. Nessas  planícies nas quais encontram-se as fortificações da cidadela do próprio  corpo, como também os fármacos presentes em qualquer constituição física  (o corpo detém mecanismos intrínsecos de operar ou superar qualquer  enfermidade: mental ou física). 

Se a gramática é essa, o sujeito/a escolhe esgueirar-se, saindo ou se  afastando, fortalecendo seu amor próprio, sem que o outro perceba o que se  organiza contra quem está do lado. Desse modo, implementa-se um processo 

de lenta autossabotagem: o que interessa é fomentar a desdita e,  silenciosamente, anular o que fora paixão ou amizade (Eros: amor com  contato íntimo; Philia: amor do companheirismo, amizade, fraternal). 

A bem da verdade, não há quem suporte um relacionamento mórbido, pleno  de limites e de “não pode” nas atitudes ou nas palavras, quando o encontro  entre um e outro é permeado por uma linguagem que ninguém mais acredita: murmúrios secos. Uma obediência simulando a edificação do que o outro  demanda. Ou pior: ninguém tem mais nada a dizer (solidão a dois). 

Rasga-se o tecido, como sucedeu ao véu do Templo de Sião. E torna-se  impossível cerzir as duas partes fendidas. Um fenômeno assoma, sem  possibilidade de retorno, sem salvar o amor, a amizade ou os laços  familiares. 

Esgueira-se, sai ou afasta-se cautelosamente, sem dar na vista. Resta o ato  de contemplar e remodelar, por meio de uma qualquer sabedoria. O que é a  sabedoria, após uma vivência com vários tipos de relacionamentos  interpessoais? Uma decantação de experiências do espírito, configurando um  substrato quase sempre aparente, conduzindo-nos a contemplar com lucidez  e desconfiança o que nos chega com interesses sem muita especificação. 

Mas também, mesmo estando o amor próprio fortalecido pelo ruminar de  que tudo poderia ser diferente, ou seja, uma relação como um locus amoenus,  no qual se cuida e é cuidado, cessando o excesso de movimento no jeito de  caminhar ou na forma como se olha. 

Em resumo, seria um descanso, um alívio, para as lidas domésticas,  mormente para os/as que edificam algo para acrescentar aqueles que tratam  das coisas referentes ao espírito. Creio que, para esse tipo de pessoa, faz-se  necessário o sossego, visando plantar suas obras em vasta seara. Aqueles que  amam de verdade serão os segadores, livres de qualquer impureza. 

4. Terminus  

Como saber o que resguarda um interessado? Pode-se consultar a pitonisa  dos oráculos interiores. Aqui será encontrada a compostura. Não exata, mas  símbolos capazes de encontrar a compostura de como se deve seguir e rasgar  interiormente tudo o que se refere ao chamado novo. Da mesma maneira que  se pôs um pé na frente, pode-se, presto, recuar.

Ora, o que se ganha com essa forma de ser? Creio que a superação de tudo  que é fenda, hiato ou lacuna. Acostumar-se com o que não é mais sortilégio,  o que fora encantamento durante os primeiros tempos de apostar em alguém.  Mas, após o escorrer do tempo na ampulheta da vida, faz-se necessário  aprender a direcionar o fascínio. 

Ao contemplar as mãos em concha, atesta-se que estão vazias. Nada restou,  perda de tempo. Nesse sentido, conclui que viera a perder seu precioso tempo  nesse entrelaçamento de outrora. O tempo de germinar o afeto tem, em todos,  uma determinada duração. Teimar com Cronos já vai se sabendo perdedor.  O tempo faz e desfaz (Fiama Hasse Pais Brandão). 

Não obstante, pode-se escolher fechar a porta, passar a chave e reclinar-se  na janela, sentir a brisa que assoma fresca da rua. Quer dizer, dar mais uma  chance às Parcas, enquanto a mais cruel das três corta o fio da vida,  encerrando nossa passagem por aqui. Seria esta uma eventual alternativa,  dada a fadiga do que nunca deu certo. 

Ou seja, aderir de uma vez à doce solitude, com seu remanso, com a calma  dos nervos, dos músculos, dos pensamentos que não mais incomodam. O que  fazer, então? Uma das minhas grandes amigas vive viajando pelo país e pela  Europa, com amigas, sempre. E sempre muito alinhada nas fotografias que  me envia. 

Depoimentos de pessoas inteligentes e fisicamente puro charme, como  Marília Gabriela, Zizi Possi, Maria Bethânia e Ney Matogrosso, falam com  naturalidade de viverem sós, cultivando a solitude. Pouco querem saber de  travar novos relacionamentos quando já provaram de muitos sabores, de  muitas experiências, de muitos amores. 

Até o encontro íntimo, casual, que não determina compromisso, assim  mesmo refratam. A bem da verdade, certas coisas da vida engendram um  enorme cansaço. Preguiça para sair de casa, ouvir o que já se sabe, sentir o  que já se ouviu. Melhor mesmo é arear o alumínio de uma rotina previsível. 

E para não saírem falando que sou démodé, posso discorrer um pouco acerca  das combinações binárias que regem a base da computação. Ou seja, só  existem duas possibilidades: 0 ou 1. A partir desses dois algarismos  procedem-se outras combinações, a saber: 10, 00, 01, 11. Como podemos  ver, aquele que elegeu a solitude como opção de vida restringe-se às três primeiras combinações. Quer dizer, o estado de 11 já não lhe diz: ou é 10 ou  é 01.


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