Por Márcio de Lima Dantas
O fim
limite íntimo
nada é além de si mesmo
ponto último.
Orides Fontela
1. Prelúdio
Essa nova série do artista visual Cesar Revorêdo apresentou-se em duas exposições individuais: Alma Mater (2024, no seu ateliê, que também abriga sua própria galeria: Cesar Revorêdo: Gabinete de Arte) e Todas as mulheres do mundo (São Miguel do Gostoso), que entregam sua proposta de tratar de uma condição concernente ao ser humano: a solidão e os diversos modos de abordá-la, a partir do momento em que somos direta ou indiretamente arredados para esse estado que integra a condição de todo ser.
Destacando a mulher como ícone, esse espaço nos conduz a refletir sobre um dos dois recursos presentes na linguagem: a metonímia, integrante dos dois eixos que estruturam a linguagem (Ferdinand de Saussure). Esse eixo é o da combinação (horizontal), distinto do eixo paradigmático, que diz respeito à seleção (vertical).
Consabido é que a metonímia requer uma relação objetiva entre as duas partes que se aproximam para comparar, para colocar uma coisa no lugar da outra. Dessarte, a metáfora é calcada no livre-arbítrio de quem elabora. Ou seja, não há necessidade de interpor entre as duas partes comparativas uma relação de pertença, é pura analogia, haja vista o que o Surrealismo de Salvador Dalí conseguiu engendrar com total liberdade o fato de colocar em uma tela o que quer que fosse: triunfo e bom uso da metáfora.
Voltando às mulheres. Sim, é bom dizer que o corpus por nós manuseado, para efeito de extrair possíveis significados, foi somente treze telas apresentadas por Cesar Revorêdo. A mulher nessa série, protagonizando uma
imagética na qual se encontra só e sem rosto, nos permite evocar que ela é uma metonímia do ser humano. Sua aura e os poucos elementos circundantes, em um excelso minimalismo difícil de alcançar em arte, constroem um discurso de uma representação da parte pelo todo.
Com efeito, essa aludida solidão não diz respeito somente ao feminino, pois podemos pensar em um grande círculo capaz de agregar toda uma sorte de singularidades de gêneros. Há que pensar em um “nós”, para que o círculo retesse seu perímetro, e considerar que, um dia ou outro, a depender da Fortuna ou de Cronos, cada um haverá de provar do travo amargo dessa raiz. Ela que lança muitos a negociar todas as boas cartas dos naipes de ouros ou de paus, em função de nunca estar só, nunca estar sozinho, nunca quitar as dívidas consigo mesmo.
E, daí por diante, incorporar uma outra pele, marcada por estar diante de si sem as interpelações do entorno, do discurso alheio, dos chavões tediosos das falas familiares.
2. Interlúdio
As telas registram a mulher com uma parcimônia de formas e um minimalismo cromático, margeando uma só personagem retratada: um personagem feminino sem o traço de olhos e bocas, configurando um semblante com uma expressividade que se bandeia para as fronteiras dos domínios de, até certo ponto, um hieratismo e uma subjetividade voltada à introspecção.
O talhe longilíneo parece querer falar de um corpo, resultado de múltiplas experiências vivenciais. Há um silêncio presente, tal qual uma necessidade, no resguardo da verticalidade corporal (evoco aqui o arquétipo presente nos personagens de Dom Quixote de La Mancha), embora não se possa considerar como regra geral. A obra é prosa? É ficção: o biótipo esguio do Quixote, lançando-se mais para o alto, congrega as pessoas mais afeitas à imaginação, à inventividade, distanciando-se do real empírico. Sancho Pança, no seu jumento, olhando para o chão, resguarda um biótipo mais atarracado, parrudo e preso às leis da razão, do sensato, questionando o excesso de imaginação.
Ainda as mulheres. Elas estão vestidas com indumentárias de cores vivas, como o verde-escuro, o azul-real, o laranja e o preto. A luz emana, parece, da própria personagem, em uma atmosfera circundada sempre por um
retângulo na vertical. Aquela encontra-se no centro da cena. Defronte de si, uma cadeira bastante simples, sem o conforto de um sofá, sugere o hábito de estar acostumada a se amoldar em tudo o que lhe chega à frente, bem como o merecido descanso momentâneo para refratar a fadiga, inerente aos seres humanos com maior autonomia subjetiva.
Toda a aura que arrodeia a cena é como se o aludido “nós” passasse a viver e ocupar seu tempo através de sua própria luz. Uma espécie de sol íntimo a iluminar apenas o essencial, o parco, o suficiente de um espaço conseguido não sem luta: consigo e com as regras sociais.
Há duas outras coisas que esqueci de enumerar dos elementos da composição de algumas telas: uma bicicleta e os gatos. A bicicleta, sem a garupa, terá sido acidental, com o selim e uma cesta na frente do guidão? Ou quer insinuar que só cabe uma pessoa, um “nós” sem criança ou adulto para conduzir ou ser conduzido.
Com relação aos gatos, em uma tela aparecem dois, em outras apenas um. Insisto ainda na incerta adoção de algum animal... pode ser um sintoma. Os gatos são silenciosos, quietos, independentes... diferentes dos cães, com sua insistente busca de atenção, guarida, ordens, cumplicidade. Há quem deteste cachorros.
Consabida é a grande quantidade de casas de pets na paisagem das ruas. Basta prestar atenção: a mesma coisa acontece com lojas de aparelhos para audição. O que está acontecendo para que haja tal demanda? Aspiremos com profundidade o Ar do Tempo (Espírito da Época). Só assim a paisagem se desnuda com seus símbolos, plenos de veias que latejam um discurso a ser decodificado por quem gosta de mirar com ironia o desmantelo de uma sociedade completamente irrecuperável, caminhando por veredas equívocas.
Todo animal em casa conduz o tutor ao domínio sobre o bicho. Com sua voz ativa, a criatura reconhece como seu proprietário obedece à assertividade, acostuma-se com a voz. Por outro lado, é mais fácil conviver com animais do que com gente. Conheço gente que é insuportável como amigo, com suas indiretas e insinuações infantis, mas é este mesmo que adotou doze gatos, que ficam por todo canto da casa e dormem na cama com ele.
Seguindo essa linha de raciocínio, somos conduzidos a refletir acerca de uma solidão lancinante. Não uma solidão por causa de uma perda, menos ainda a intensidade de uma solidão cruel, mas uma dificuldade de estabelecer um relacionamento interpessoal com o mínimo de etiqueta, educação e o sempre bem-vindo pudor.
Contudo, quero exaltar e exultar um estado de solitude alcançado por meio de exercícios mentais nos quais se apela para a razão, no embate com a experimentação do chamado real concreto. A desdita de uma solidão opaca foi superada. Signo do infortúnio para todos que estão encenando no grande palco do mundo, com seu cotidiano pleno de rotinas. No mau sentido, pois a rotina libera um estar presente no dia a dia, com seus relacionamentos fraternos ou íntimos eivados de palavras por dizer, de ações mal feitas, de pouco ânimo para a vida e para o que chamam de felicidade.
Ora, quando se fala de rotina, há que evocar outra espécie de pessoa: os artistas, os cientistas ou aqueles que amam seu trabalho. É claro que o cotidiano, com sua previsibilidade, se faz necessário, dado o fato de ser um assinalado para aquele ofício ou ocupação principal personalizada. Nada melhor do que despertar sabendo o que vai fazer das horas em sua escansão pré-determinada. Se Cronos caminha com largas passadas, devorando tudo o que for vivo e lateja, então é preciso atalhar até certo ponto, já que não podemos apostrofar ou evitar esse ritmo de pressa.
Porém, existe essa possibilidade, essa alternativa, face aos infortúnios cravados pelas deusas do destino, as implacáveis Parcas. Até os deuses da antiga Grécia estavam subordinados às três: Cloto, Láquesis e Átropos. Sempre fiando e tecendo o fio da vida, uma labuta sem fim, até chegar a hora de cada um, encerrando a encenação no palco da vida. Essas três pouco se importam com quem conduz bom ânimo ou com quem vive sem apego à vida. Apenas algo que é inerente a todos: cansa-me ser (Orides Fontela).
3. Toccata and fugue
Por fim, através de expedientes das áreas subjetivas, habitadas nos distritos onde jaz tudo o que é sombra, de tudo o que é surdamente agressivo, de tudo que risca no caderno tendo seus vocabulários próprios de defesa. Nessas planícies nas quais encontram-se as fortificações da cidadela do próprio corpo, como também os fármacos presentes em qualquer constituição física (o corpo detém mecanismos intrínsecos de operar ou superar qualquer enfermidade: mental ou física).
Se a gramática é essa, o sujeito/a escolhe esgueirar-se, saindo ou se afastando, fortalecendo seu amor próprio, sem que o outro perceba o que se organiza contra quem está do lado. Desse modo, implementa-se um processo
de lenta autossabotagem: o que interessa é fomentar a desdita e, silenciosamente, anular o que fora paixão ou amizade (Eros: amor com contato íntimo; Philia: amor do companheirismo, amizade, fraternal).
A bem da verdade, não há quem suporte um relacionamento mórbido, pleno de limites e de “não pode” nas atitudes ou nas palavras, quando o encontro entre um e outro é permeado por uma linguagem que ninguém mais acredita: murmúrios secos. Uma obediência simulando a edificação do que o outro demanda. Ou pior: ninguém tem mais nada a dizer (solidão a dois).
Rasga-se o tecido, como sucedeu ao véu do Templo de Sião. E torna-se impossível cerzir as duas partes fendidas. Um fenômeno assoma, sem possibilidade de retorno, sem salvar o amor, a amizade ou os laços familiares.
Esgueira-se, sai ou afasta-se cautelosamente, sem dar na vista. Resta o ato de contemplar e remodelar, por meio de uma qualquer sabedoria. O que é a sabedoria, após uma vivência com vários tipos de relacionamentos interpessoais? Uma decantação de experiências do espírito, configurando um substrato quase sempre aparente, conduzindo-nos a contemplar com lucidez e desconfiança o que nos chega com interesses sem muita especificação.
Mas também, mesmo estando o amor próprio fortalecido pelo ruminar de que tudo poderia ser diferente, ou seja, uma relação como um locus amoenus, no qual se cuida e é cuidado, cessando o excesso de movimento no jeito de caminhar ou na forma como se olha.
Em resumo, seria um descanso, um alívio, para as lidas domésticas, mormente para os/as que edificam algo para acrescentar aqueles que tratam das coisas referentes ao espírito. Creio que, para esse tipo de pessoa, faz-se necessário o sossego, visando plantar suas obras em vasta seara. Aqueles que amam de verdade serão os segadores, livres de qualquer impureza.
4. Terminus
Como saber o que resguarda um interessado? Pode-se consultar a pitonisa dos oráculos interiores. Aqui será encontrada a compostura. Não exata, mas símbolos capazes de encontrar a compostura de como se deve seguir e rasgar interiormente tudo o que se refere ao chamado novo. Da mesma maneira que se pôs um pé na frente, pode-se, presto, recuar.
Ora, o que se ganha com essa forma de ser? Creio que a superação de tudo que é fenda, hiato ou lacuna. Acostumar-se com o que não é mais sortilégio, o que fora encantamento durante os primeiros tempos de apostar em alguém. Mas, após o escorrer do tempo na ampulheta da vida, faz-se necessário aprender a direcionar o fascínio.
Ao contemplar as mãos em concha, atesta-se que estão vazias. Nada restou, perda de tempo. Nesse sentido, conclui que viera a perder seu precioso tempo nesse entrelaçamento de outrora. O tempo de germinar o afeto tem, em todos, uma determinada duração. Teimar com Cronos já vai se sabendo perdedor. O tempo faz e desfaz (Fiama Hasse Pais Brandão).
Não obstante, pode-se escolher fechar a porta, passar a chave e reclinar-se na janela, sentir a brisa que assoma fresca da rua. Quer dizer, dar mais uma chance às Parcas, enquanto a mais cruel das três corta o fio da vida, encerrando nossa passagem por aqui. Seria esta uma eventual alternativa, dada a fadiga do que nunca deu certo.
Ou seja, aderir de uma vez à doce solitude, com seu remanso, com a calma dos nervos, dos músculos, dos pensamentos que não mais incomodam. O que fazer, então? Uma das minhas grandes amigas vive viajando pelo país e pela Europa, com amigas, sempre. E sempre muito alinhada nas fotografias que me envia.
Depoimentos de pessoas inteligentes e fisicamente puro charme, como Marília Gabriela, Zizi Possi, Maria Bethânia e Ney Matogrosso, falam com naturalidade de viverem sós, cultivando a solitude. Pouco querem saber de travar novos relacionamentos quando já provaram de muitos sabores, de muitas experiências, de muitos amores.
Até o encontro íntimo, casual, que não determina compromisso, assim mesmo refratam. A bem da verdade, certas coisas da vida engendram um enorme cansaço. Preguiça para sair de casa, ouvir o que já se sabe, sentir o que já se ouviu. Melhor mesmo é arear o alumínio de uma rotina previsível.
E para não saírem falando que sou démodé, posso discorrer um pouco acerca das combinações binárias que regem a base da computação. Ou seja, só existem duas possibilidades: 0 ou 1. A partir desses dois algarismos procedem-se outras combinações, a saber: 10, 00, 01, 11. Como podemos ver, aquele que elegeu a solitude como opção de vida restringe-se às três primeiras combinações. Quer dizer, o estado de 11 já não lhe diz: ou é 10 ou é 01.
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