Por: Márcio de Lima Dantas.
Há pouco se apagou de vez no reduto dos dicionários certa palavra-chave. Henriqueta Lisboa
Nilson dos Santos (17.06.1970) nasceu em Currais Novos. Iniciou seus trabalhos com os pincéis, fazendo letreiros e desenhos publicitários nos estabelecimentos comerciais, ou seja, era sob encomenda. Portanto, o que predominava era a funcionalidade, o concreto, que existe desde muito como apelo para a venda dos produtos da casa onde estava assentado o escrito. O interessante foi que logo os comerciantes reconheceram a verve e vivacidade do rapaz. Desse modo, não se contentavam com apenas os letreiros, os números, mas também pediam algum personagem ou objeto relacionado ao letreiro e ao que era passível de venda no comércio onde estava escrito o demandado. Mas há que dizer uma coisa acerca do surgimento da característica da personalidade do pintor de fachadas ou paredes outras. É que, sutilmente, ele estava atento ao seu irmão, que também fazia o mesmo serviço. E assim surgiu o entusiasmo pelo desenho e pela pintura, pois eram detentores de uma inspiração que parecia estar adormecida desde sempre nas profundezas da sua subjetividade. Infelizmente, seu irmão não continuou. Talvez o fôlego estético fosse curto. Acontece isso no universo da arte. Muitos começam e avançam, porém, não parece ser um assinalado dentre os que estão no grande círculo, que, na verdade, vai selecionando a partir de algo que não sabemos direito como ocorre. Tão somente nos limitamos a indigitar: inspiração.Enfim, eis um pintor naïf que surge para agregar-se aos tantos ingênuos já existentes. Só que ele não sabia que viria a ser um dos melhores do estado do Rio Grande do Norte. Mas quero dizer que não ficou só por aqui. Participou de exposições mundo afora e ganhou prêmios e reconhecimento. Apesar de tantas alvíssaras, permaneceu um homem gentil e simples, fácil
de lidar e sem vaidades. Sua pintura reflete essa sua maneira de lidar com a vida e com sua imensa clientela. Para efeito didático e de melhor compreensão do conjunto da obra, preferi arrumar essa profusão de telas em dois estilos. Mesmo amadores são capazes de discernir essa bipartição. Entretanto, é preciso reparar que há um legítimo traço do risco e da cor que vai preencher as vestes das personagens ou as cores das casas dos sertões. Na verdade, o que tem de melhor são as telas de ingenuidade com temas da vida sertaneja. É aqui que eu prefiro fazer saber de uma etnografia, À la recherche du temps perdu (Marcel Proust). Há como uma necessidade de registrar as maneiras de viver de outrora, tanto no que diz respeito ao utilitário ou funcional, quanto ao lúdico de inúmeras brincadeiras infantis. Acredito que homens hoje com mais de 60 anos conseguem se reconhecer nesse lazer feito de improvisos, de elementos retirados dos arredores, das cercas, do que restou de uma fruta. Quer dizer, não havia nada de industrializado, tudo era feito com materiais oferecidos pela natureza.
Basta dizer que essa etnografia de outrora deixava o mundo bem mais simples, sem modas ou modos que a Ideologia (pensamento das classes dominantes) imperava com seu mando, fazendo parecer as coisas como naturais e não como historicamente construídas. Observar e pintar os costumes de um grupo social, atentando-se às suas crenças, à sua religiosidade e a como as crianças representavam o mundo e o vivenciavam. O que me interessa saber e dizer acerca do artista visual Nilson Santos é que sua pintura, na verdade, não passa de uma bela narrativa de um mundo que sofreu a ausência de indulto do mito de Cronos (o tempo), assolando cercas de pedras, carrascos, riachos, casas de taipa, lavouras a serem segadas com a alegria de colher o que se plantou e não recebendo esmolas do Estado. A rotina era escandida pelas horas de ocupação nos trabalhos do campo ou domésticos. Bem diferente dos dias de hoje, em que se mede os expedientes da rotina pelo culto ao corpo, pelo narcisismo das redes sociais e por quase que uma obrigação de demonstrar que se é feliz, que está aproveitando a vida com um copo na mão e sorrisos visivelmente artificiais.
Nilson tem uma série muito bonita e que se assemelha ao pintor de Fortaleza, Chico da Silva, o maior pintor cearense de todos os tempos. As demais séries são sua dicção pictórica, ingênua e extremamente lúdica, principalmente no desenho simples que refoge totalmente ao desenho acadêmico. Acontece que, nessa série, acaba por se afastar de si próprio. Não que imite o pintor cearense, mas, ao pintar galos, borboletas, cavalos-marinhos, pavões, ou seja, só animais, o seu traço diz de uma múltipla diferença do que sempre foi. Assim sendo, só podemos entender que se trata de uma inquietude estética, quer dizer, não se conforma, nem parece ter se acostumado com sua gramática pictórica do que sempre foi, aquela que virou vício ou costume e foi reconhecida publicamente também nas vendas das telas. Com efeito, essa série caracteriza-se por não haver o personagem humano, apenas animais em retratos hieráticos e plenos de elementos ornamentais, com uma mescla extremamente diferente ao misturar toda uma sorte de cores. Visivelmente, houve um desejo de plasmar outra espécie de pintura com referentes (temas, assuntos) distintos do que sempre fora.
A tecnologia, com sua fúria e ânsia de mostrar, e se mostrar a que veio, buscando, por vezes, à força, o seu lugar no seio das relações contemporâneas de viver, nada poupou ou foi gentil com os jeitos de comportamento do que era antes, calcado no simples, na ausência de malícias, nas tiranias de convencionar o que é belo, para que todos aplaudam isso que se chama o novo. Mas, na verdade, se, por exemplo, observarmos com atenção a moda, chegamos à conclusão de que é extremamente de mau gosto, com seus vestidos estampados e suas calças que parecem feitas de um lençol. O sol já se pôs. Não adianta prantear ou lamentar o que não tem volta, o que a humanidade escolheu como rodagem para seguir e andar a esmo, em busca de um rumo. Inútil uma vereda saudável. Resta nos contentarmos com as narrativas contidas nas telas ou na obra de um artista visual. Nilson dos Santos, detentor de uma enorme disciplina, pinta convulsivamente, sem nunca tropeçar em si mesmo, sem nunca se imitar, sem nunca deixar de buscar temas dentro do seu vocabulário. Eis que o pintor, no caso de ser sua pintura considerada (tomei essa liberdade) por nós “como” uma etnografia de outrora, e mesmo ainda do que resta nas capoeiras e sertões adentro, acabou ocupando o papel do antropólogo. E o que está retratado na tela é o que representa o objeto (Antropologia Clássica = antropólogo e as comunidades que vai estudar, ou seja, o seu objeto), sendo que essa etnografia não é a que se encontra nos livros de Antropologia (como os de Claude Lévi-Strauss).De todo modo, existe uma relação estreita entre o pintor e seu assunto (referente), na medida em que o objeto pintado no quadro assoma de suas entranhas, de seu inconsciente, do seu coração com lembranças, enfim, de tudo o que está adormecido, e qualquer olhar ou barulho evoca o que tem para emergir, com uma pulsão, com algo riscado que pode ser uma epifania, com tudo vindo a ser uma necessidade de ser uma coisa no lugar da outra (metáfora). Enfim, temos de admitir que a linguagem simbólica é a que prevalece, com seus signos e sinais, outorgando ao desenho e às suas cores um pendor do artista para plasmar determinadas coisas e não outras. Essa seleção são os paradigmas que habitam o íntimo, desejando ser sintagmas. Ou seja, as unidades justapondo-se para criar a vivacidade que impera e preenche de entusiasmo a ingenuidade de meninos, donas de casa, homens na lavoura. E tudo vem a ser vivacidade, alegria e saudades do que fora até certo tempo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário