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sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Especial: Nilson dos Santos: registro da etnografia de um tempo extinto.

 Por: Márcio de Lima Dantas.

Há pouco se apagou de vez  no reduto dos dicionários  certa palavra-chave. Henriqueta Lisboa  

Nilson dos Santos (17.06.1970) nasceu em Currais Novos. Iniciou seus  trabalhos com os pincéis, fazendo letreiros e desenhos publicitários nos  estabelecimentos comerciais, ou seja, era sob encomenda. Portanto, o que  predominava era a funcionalidade, o concreto, que existe desde muito como  apelo para a venda dos produtos da casa onde estava assentado o escrito. O  interessante foi que logo os comerciantes reconheceram a verve e vivacidade  do rapaz. Desse modo, não se contentavam com apenas os letreiros, os  números, mas também pediam algum personagem ou objeto relacionado ao  letreiro e ao que era passível de venda no comércio onde estava escrito o  demandado. Mas há que dizer uma coisa acerca do surgimento da característica da  personalidade do pintor de fachadas ou paredes outras. É que, sutilmente, ele  estava atento ao seu irmão, que também fazia o mesmo serviço. E assim  surgiu o entusiasmo pelo desenho e pela pintura, pois eram detentores de  uma inspiração que parecia estar adormecida desde sempre nas profundezas  da sua subjetividade. Infelizmente, seu irmão não continuou. Talvez o fôlego estético fosse curto.  Acontece isso no universo da arte. Muitos começam e avançam, porém, não  parece ser um assinalado dentre os que estão no grande círculo, que, na  verdade, vai selecionando a partir de algo que não sabemos direito como  ocorre. Tão somente nos limitamos a indigitar: inspiração. 

Enfim, eis um pintor naïf que surge para agregar-se aos tantos ingênuos já  existentes. Só que ele não sabia que viria a ser um dos melhores do estado  do Rio Grande do Norte. Mas quero dizer que não ficou só por aqui.  Participou de exposições mundo afora e ganhou prêmios e reconhecimento.  Apesar de tantas alvíssaras, permaneceu um homem gentil e simples, fácil 

de lidar e sem vaidades. Sua pintura reflete essa sua maneira de lidar com a  vida e com sua imensa clientela.  Para efeito didático e de melhor compreensão do conjunto da obra, preferi  arrumar essa profusão de telas em dois estilos. Mesmo amadores são capazes  de discernir essa bipartição. Entretanto, é preciso reparar que há um legítimo  traço do risco e da cor que vai preencher as vestes das personagens ou as  cores das casas dos sertões. Na verdade, o que tem de melhor são as telas de  ingenuidade com temas da vida sertaneja.  É aqui que eu prefiro fazer saber de uma etnografia, À la recherche du temps perdu (Marcel Proust). Há como uma necessidade de registrar as maneiras  de viver de outrora, tanto no que diz respeito ao utilitário ou funcional, quanto ao lúdico de inúmeras brincadeiras infantis. Acredito que homens  hoje com mais de 60 anos conseguem se reconhecer nesse lazer feito de  improvisos, de elementos retirados dos arredores, das cercas, do que restou  de uma fruta. Quer dizer, não havia nada de industrializado, tudo era feito  com materiais oferecidos pela natureza. 

Basta dizer que essa etnografia de outrora deixava o mundo bem mais  simples, sem modas ou modos que a Ideologia (pensamento das classes  dominantes) imperava com seu mando, fazendo parecer as coisas como  naturais e não como historicamente construídas. Observar e pintar os  costumes de um grupo social, atentando-se às suas crenças, à sua  religiosidade e a como as crianças representavam o mundo e o vivenciavam. O que me interessa saber e dizer acerca do artista visual Nilson Santos é que  sua pintura, na verdade, não passa de uma bela narrativa de um mundo que  sofreu a ausência de indulto do mito de Cronos (o tempo), assolando cercas  de pedras, carrascos, riachos, casas de taipa, lavouras a serem segadas com  a alegria de colher o que se plantou e não recebendo esmolas do Estado. A  rotina era escandida pelas horas de ocupação nos trabalhos do campo ou  domésticos. Bem diferente dos dias de hoje, em que se mede os expedientes  da rotina pelo culto ao corpo, pelo narcisismo das redes sociais e por quase que uma obrigação de demonstrar que se é feliz, que está aproveitando a vida  com um copo na mão e sorrisos visivelmente artificiais. 

Nilson tem uma série muito bonita e que se assemelha ao pintor de Fortaleza,  Chico da Silva, o maior pintor cearense de todos os tempos. As demais séries  são sua dicção pictórica, ingênua e extremamente lúdica, principalmente no  desenho simples que refoge totalmente ao desenho acadêmico. Acontece  que, nessa série, acaba por se afastar de si próprio. Não que imite o pintor  cearense, mas, ao pintar galos, borboletas, cavalos-marinhos, pavões, ou  seja, só animais, o seu traço diz de uma múltipla diferença do que sempre  foi. Assim sendo, só podemos entender que se trata de uma inquietude  estética, quer dizer, não se conforma, nem parece ter se acostumado com sua  gramática pictórica do que sempre foi, aquela que virou vício ou costume e  foi reconhecida publicamente também nas vendas das telas. Com efeito, essa série caracteriza-se por não haver o personagem humano,  apenas animais em retratos hieráticos e plenos de elementos ornamentais, com uma mescla extremamente diferente ao misturar toda uma sorte de  cores. Visivelmente, houve um desejo de plasmar outra espécie de pintura  com referentes (temas, assuntos) distintos do que sempre fora.

 A tecnologia, com sua fúria e ânsia de mostrar, e se mostrar a que veio,  buscando, por vezes, à força, o seu lugar no seio das relações  contemporâneas de viver, nada poupou ou foi gentil com os jeitos de  comportamento do que era antes, calcado no simples, na ausência de  malícias, nas tiranias de convencionar o que é belo, para que todos aplaudam  isso que se chama o novo. Mas, na verdade, se, por exemplo, observarmos  com atenção a moda, chegamos à conclusão de que é extremamente de mau  gosto, com seus vestidos estampados e suas calças que parecem feitas de um  lençol. O sol já se pôs. Não adianta prantear ou lamentar o que não tem volta, o que  a humanidade escolheu como rodagem para seguir e andar a esmo, em busca  de um rumo. Inútil uma vereda saudável. Resta nos contentarmos com as  narrativas contidas nas telas ou na obra de um artista visual. Nilson dos  Santos, detentor de uma enorme disciplina, pinta convulsivamente, sem  nunca tropeçar em si mesmo, sem nunca se imitar, sem nunca deixar de  buscar temas dentro do seu vocabulário. Eis que o pintor, no caso de ser sua pintura considerada (tomei essa  liberdade) por nós “como” uma etnografia de outrora, e mesmo ainda do que  resta nas capoeiras e sertões adentro, acabou ocupando o papel do antropólogo. E o que está retratado na tela é o que representa o objeto  (Antropologia Clássica = antropólogo e as comunidades que vai estudar, ou  seja, o seu objeto), sendo que essa etnografia não é a que se encontra nos  livros de Antropologia (como os de Claude Lévi-Strauss). 

De todo modo, existe uma relação estreita entre o pintor e seu assunto  (referente), na medida em que o objeto pintado no quadro assoma de suas  entranhas, de seu inconsciente, do seu coração com lembranças, enfim, de  tudo o que está adormecido, e qualquer olhar ou barulho evoca o que tem  para emergir, com uma pulsão, com algo riscado que pode ser uma epifania,  com tudo vindo a ser uma necessidade de ser uma coisa no lugar da outra  (metáfora). Enfim, temos de admitir que a linguagem simbólica é a que prevalece, com  seus signos e sinais, outorgando ao desenho e às suas cores um pendor do  artista para plasmar determinadas coisas e não outras. Essa seleção são os  paradigmas que habitam o íntimo, desejando ser sintagmas. Ou seja, as  unidades justapondo-se para criar a vivacidade que impera e preenche de  entusiasmo a ingenuidade de meninos, donas de casa, homens na lavoura. E  tudo vem a ser vivacidade, alegria e saudades do que fora até certo tempo.

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