Por: José Tavares de Araújo Neto
Em março de 1955, a capital paraibana foi palco de um dos debates históricos mais acalorados de sua memória recente. O lançamento do livro “Os Mártires de Piancó”, do Padre Manuel Otaviano, pela Editora Teone, foi muito mais que um evento literário; foi um ato de resgate de uma memória dolorosa e o estopim de uma polêmica que dividiu a intelligentsia, a política e os militares paraibanos, reacendendo, trinta anos depois, as chamas de um dos episódios mais traumáticos do sertão: a passagem da Coluna Prestes por Piancó em 1926. O autor, Padre Manuel Otaviano (1880-1960), não era um historiador qualquer. Sacerdote, ex-professor, ex-deputado estadual, palestrante, jornalista e membro da Academia Paraibana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, ele era uma figura intelectual respeitada. Seu livro buscava “fixar para a posteridade o episódio trágico” da morte do Padre Aristides Ferreira da Cruz, sacrificado durante a irrupção da Coluna Prestes no sertão. O lançamento, realizado em 12 de março daquele ano, foi prestigiado por um “elevado número de pessoas, principalmente das classes intelectuais”, contou com discursos do deputado e intelectual Ivan Bichara, que destacou a dupla importância da obra: como “documentário de uma época” e como “estudo de caráter sociológico” pela fixação do ambiente sertanejo. A obra surgia em um contexto nacional onde se construía a “lenda do Cavaleiro da Esperança”, impulsionada pela biografia homônima de Jorge Amado (1942) que idealizava a trajetória de Luís Carlos Prestes. O Norte salientou que, enquanto a grande imprensa nacional celebrava essa narrativa, o Padre Otaviano agiu como um “repórter” que foi à fonte, recolhendo “farto material a respeito das violências sofridas pelas populações”. O jornal afirmou que, nos grandes centros urbanos, a doutrinação fortalecia o prestígio da Coluna, mas “nas áreas rurais, que lhe sofreram o impacto, causava dolorosas impressões”, gerando uma repulsa à ideia de renovação por meio da violência. O cerne do livro é a reconstituição dos eventos de 9 de fevereiro de 1926, quando a Coluna Prestes (ou um de seus destacamentos) se aproximou da cidade de Piancó e encontrou uma resistência organizada pelo polêmico Padre Aristides. Apesar de atuar politicamente em Piancó, onde fora vigário e construíra sua base de influência, ele era natural de Pombal, assim como o sargento Manuel Arruda, que fora designado para atuar em Piancó justamente a convite do próprio padre, que depositava extrema confiança em seu conterrâneo.Aristides era uma figura à parte da igreja, suspenso das ordens desde 1912 por viver maritalmente, mas um líder local influente e temido, em pleno exercício de cargo de deputado estadual. Com base no relato do próprio Manuel Arruda, é possível reconstruir com maior nuance o cenário político e pessoal em Piancó às vésperas do ataque da Coluna Prestes. O depoimento revela tensões profundas e complexas que antecederam o conflito: “O Padre era muito autoritário. Queria que todo oficial estivesse sob as ordens dele. O Antônio Benício rompeu logo com ele. Discutiram e romperam. Ficaram inimigos… O Padre, quando se metia em alguma dificuldade, mandava me chamar: ‘Sargento!’. E eu o tratava bem… Suassuna o desprestigiou em toda linha. O Padre, ele não tinha prestígio para mudar um soldado do destacamento. No domingo, 07, ninguém sabia notícia da Coluna Prestes. O João Galdino, Coletor Federal, inimigo acérrimo do Padre Aristides, passou um telegrama ao Suassuna oferecendo cinquenta homens armados e municiados. O governo aceitou incontinente. Quando o padre soube, enciumado, manda me chamar… ‘Sargento, eu mandei-lhe chamar para senhor me fazer o favor de me acompanhar até o telégrafo, que eu quero me entender com o Comandante Rangel'”. O telegrama de Galdino foi uma manobra astuta para minar a autoridade residual de Aristides, oferecendo diretamente a Suassuna o que deveria ser uma competência do líder local. A reação imediata do padre – buscar contato com o comando militar em Patos (o Capitão Irineu Rangel) através de seu amigo leal sargento Arruda – foi uma tentativa desesperada de reafirmar seu controle e não ser passado por seu rival em um momento de crise iminente. O que se seguiu foi uma tragédia. Após horas de combate, a casa do padre Aristides foi tomada. Ele e entre 16 e 17 de seus seguidores foram capturados, levados a um barreiro e brutalmente executados. A descrição gráfica dos corpos, com a maioria apresentando ferimentos cortantes na carótida (degolados), e o padre Aristides com o rosto retalhado e punhaladas, chocou os leitores da época e permanece como uma imagem visceral da crueldade do conflito. O livro não foi recebido pacificamente. Imediatamente, tornou-se o centro de uma tempestade política e histórica, iniciada pelo então deputado estadual o tenente Manuel Arruda de Assis. O tenente Arruda não era um crítico externo; era o ex-sargento da Polícia Militar que comandou um dos piquetes de defesa de Piancó em 1926. Em um longo e detalhado discurso na Assembleia Legislativa, ele contestou ponto por ponto a narrativa de Otaviano: 1. O Início do Confronto: Arruda negou veementemente que a Coluna tenha entrado em “atitude pacífica”. Segundo ele, a vanguarda era composta por dois oficiais a cavalo, seguidos por soldados em linha de atiradores em marcha acelerada. O tenente Manuel Marinho teria gritado “alto” três vezes e, em resposta, recebido uma descarga de carabina que iniciou o tiroteio, resultando na morte imediata de dois cavaleiros. 2. O Número de Defensores: Afirmou que os defensores eram 43 (16 militares e 27 civis), contestando números maiores citados por outras fontes. 3. O Caso da Bandeira Branca: Arruda contestou a história de que a bandeira branca teria sido hasteada como símbolo de paz. Explicou que um detento apelidado “Preá” usou uma camisa branca amarrada num rifle não para se render, mas para tentar cruzar a rua sob fogo e levar uma mensagem entre piquetes, sendo recebido a bala pelos revoltosos. 4. A Chacina: Seu relato no plenário foi chocante. Ao visitar o poço no dia seguinte, encontrou 16 corpos. “Quinze deles apresentavam ferimentos de arma cortante na carótida, tendo sido, portanto, sangrados… o padre Aristides… apresentava as duas veias carótidas partidas, as faces completamente retalhadas de navalha ou arma semelhante e uma punhalada no ‘vão’”. Classificou os atos como “verdadeira selvageria”. A réplica do Padre Otaviano foi rápida e contundente. Por telegrama, acusou Arruda de ter “alterado as cores” de uma entrevista anterior e desafiou-o para uma “mesa redonda” em Piancó com todos os sobreviventes, afirmando contar com o testemunho de outros participantes como Pedro Lima e Isidoro Vieira. Sua defesa foi categórica: “Nunca, porém, emudecer a minha pena para elucidar os fatos e restabelecer a verdade histórica”. Arruda, por sua vez, não recuou. Aceitou o desafio publicamente e propôs a mesa redonda, insistindo na presença de todos os sobreviventes e de uma comissão de deputados. Foi tão longe a ponto de prometer renunciar ao mandato de deputado se o padre provasse que ele estava errado em qualquer de suas afirmações. A polêmica rapidamente deixou de ser uma disputa bilateral e dividiu a sociedade paraibana, revelando que a memória do evento ainda era profundamente conflituosa. A Favor de Arruda: O Capitão Irineu Rangel (que em 1926 superintendia os comandos das forças policiais) deu aval total a Arruda, declarando que o livro do padre Otaviano “foge quase inteiramente à realidade dos fatos” e que a descrição do deputado era a correta. O Tenente-Coronel Ascendino Feitosa também apoiou Arruda, corroborando seu relato. A Favor de Otaviano: Em oposição direta a seu colega, o Tenente-Coronel Elias Fernandes defendeu o trabalho do padre, afirmando que ele descreveu os fatos com “rigorosa e exemplar fidelidade” e que o discurso de Arruda “foge inteiramente à verdadeira história”. O apoio mais significativo veio do Coronel Manuel Viégas, que comandava a força policial que perseguiu a Coluna Prestes. Ele foi categórico: “O padre Otaviano descreveu os fatos com precisão e é inconteste a sua história. A verdade está inteiramente com o padre Otaviano.” A discussão extrapolou o evento central de Piancó. Severino Procópio, ex-delegado geral de Polícia, contestou uma passagem do livro sobre um levante no Recife em 1928, negando que o presidente João Suassuna tivesse comandado pessoalmente a repressão. Porfírio Góis, telegrafista de Piancó em 1926, negou ter presenciado a chacina (pois fugiu) e insinuou uma teoria surpreendente: que o padre Aristides pode ter sido morto por inimigos políticos locais que se infiltraram na Coluna, e não pelos revoltosos. A polêmica em torno de “Os Mártires de Piancó” é um exemplo fascinante de como a narrativa da história é construída, contestada e disputada na esfera pública. Mais de seis décadas depois, o episódio permanece um capítulo indelével e controverso. O livro do Padre Otaviano cumpriu seu propósito de salvar do esquecimento os nomes dos “mártires”, mas a reação que provocou mostrou que a memória daquele evento ainda era uma ferida aberta, capaz de dividir militares, intelectuais e políticos. A história da passagem da Coluna Prestes por Piancó transcendeu o âmbito local, ecoando na literatura nacional através de autores como Érico Veríssimo (O Arquipélago) e Domingos Pellegrini (No Coração das Perobas). No entanto, a polêmica de 1955, vividamente registrada nas páginas de O Norte, permanece como o testemunho mais eloquente da complexidade de se narrar o passado, onde a busca por uma verdade única é invariavelmente substituída pelo confronto de múltiplas memórias, todas igualmente apaixonadas e, em seus próprios termos, legítimas. A verdade sobre a tragédia Piancó parece residir não em um relato, mas na soma tensa e contraditória de todos eles.
Fonte: www.oxentenoticias.com.br
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