email atual aluisiodutra@gmail.com

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Especial: Naya: a fenda trincada na vida social ou o equívoco da vereda sem rumo

 

Por Márcio de Lima Dantas.

O que se perdeu foi pouco. Mas era o que eu mais amava. 

Henriqueta Lisboa 

Naya Silva (Currais Novos, 22.10.2002) recebeu forte influência do seu pai,  um dos melhores pintores naïfs do nosso estado: Nilson dos Santos. Embora  tenha recebido essa influência, como não poderia deixar de ser, visto que  tinha um grande artista dentro de casa, acabou por marcar sua obra com um  outro vocabulário, engendrando toda uma espécie de retratos de mulheres no  qual se evidencia o semblante, como a querer mostrar diversas maneiras de  contemplar o mundo, na medida em que, como sabemos, as feições refletem  o íntimo de um estar no mundo, seja em embates ou em contemplações  líricas. Há artistas que não se deixam domesticar por apenas um estilo. A cada gesto,  a cada composição, parecem inaugurar um campo novo, onde a tradição e a  invenção do novo andam lado a lado. Uma não se sobrepõe a outra. Naya,  com sua obra de rara sensibilidade, inscreve-se nesse terreno: ora  recuperando a gramática do popular, com suas feiras, vilarejos e figuras  camponesas, ora lançando-se às vertigens do digital, onde o eu se cinde em  fragmentos, ainda, ressignificando mitos, costurando fios de diferentes  culturas, como quem tece um bordado invisível no tecido da imaginação. 
A produção de Naya é uma travessia. Travessia de mundos: o rural e o  urbano, o ingênuo e o conceitual, o local e o estrangeiro. Vejamos como isso  sucede. Comecemos pelas obras de vocação naïf: Pequeno Vilarejo, Feira  Livre e Mulher Camponesa. À primeira vista, parecem simples cenas da vida  popular, carregadas de ingenuidade. Contudo, sob a superfície vibrante de  cores, há uma gramática simbólica que exige interpretação, um querer dizer  algo por meio de signos subliminares, de imagens advindas da sua  subjetividade. 
No Pequeno Vilarejo, as casas parecem feitas de uma memória infantil. Os  telhados desproporcionais, as fachadas coloridas, o traço sem perspectiva  acadêmica... Tudo aponta para uma lógica outra, a lógica do afeto. A  arquitetura aqui não precisa de cálculo, apenas precisa ser lembrança. O vilarejo de Naya nos leva à infância coletiva de uma comunidade, o abrigo  onde ainda é possível se reconhecer pelo nome e pelo rosto. É o locus  amoenus da cultura popular, onde o espaço tanto é real quanto mítico.  A Feira Livre, por sua vez, explode em excesso cromático. Se pensarmos  com Bakhtin, a feira é espaço do carnaval popular, onde a ordem hierárquica  se dissolve, e todos, ricos e pobres, se tornam iguais no barulho das vozes. Já  a Mulher Camponesa concentra em si o arquétipo da Grande Matriarca. A  figura feminina, ligada à terra, aparece como guardiã da fertilidade e da  continuidade da vida.  Com efeito, aqui, o feminino não é apenas representação do princípio  arquetípico, ela aparece como resistência e afirmação social. Seu corpo, sua  cor, seus traços, se tornam instrumentos de empoderamento, mostrando que  a arte também pode ser espaço de insurgência e reconhecimento. Na leitura de Naya, a força dessa presença representa resistência feminina: a  capacidade de criar, sustentar e transformar, mesmo diante das adversidades. 
 Se no naïf a artista ancora-se na memória coletiva, nas obras digitais ela se  lança à sua subjetividade. Podemos dizer que é uma tessitura tecnológica: a  memória coletiva cede o lugar à interioridade fragmentada. Ao ocorrer a  cisão, o eu se rompe em pedaços. O quadro não oferece espaço para ser um,  são estilhaços. Cores que se recusam a se fundir, linhas que não se  reconciliam. O que está em jogo aqui é o drama do sujeito moderno: a  impossibilidade de se manter inteiro. Freud diria que se trata do retorno do  mal-estar na civilização, Lacan veria aí a fenda do sujeito, a rachadura que  nos constitui.  O espectador, ao se deter face a essa cisão, sente-se intimado a habitar essa  mesma ferida: somos todos fragmentos tentando costurar uma narrativa de  si que nunca se completa. Em contraste, o céu passa um ar de expansão. Se  ocorre a cisão dessa ideia de fratura, de fragmentação, o céu é o horizonte.  Contudo, não se trata de um céu bucólico, de paz, mas de um espaço  ambíguo: lugar da liberdade e ao mesmo tempo do vazio. Contemplá-lo é se  sentir livre, mas igualmente perdido.  Já Liberdade nos traz o paradoxo da condição humana. Não falo da liberdade  idealizada dos românticos, mas uma liberdade precária, sempre ameaçada pela queda. Há uma forte presença do existencialismo, pois somos seres  lançados, condenados a escolher, a inventar caminhos que nunca serão  definitivos.
O sentido da obra é, portanto, duplo: celebra o fato de ser livre,  mas não esconde o peso da angústia que acompanha toda escolha. Esse vazio, essa solidão paradoxal e a fragilidade dos laços humanos não são  apenas dramas individuais: fazem parte do que chamamos de espírito da  época, o Zeitgeist. Cada era produz sua forma própria de angústia. A nossa,  marcada pela hiperconectividade, pelo excesso de imagens e pela promessa  de uma liberdade ilimitada, nos oferece, em contrapartida, uma ampla  solidão, causada pela soberba, narcisismo, infantilidade e toda uma série de  sentimentos que nos lança, como já disse, ao distrito da solidão, implicando  grande sofrimento, pranto sem conserto, melancolia oscilante.
 O Ar do Tempo, que quase nos obriga, feito tirania, a se comportar de  determinadas maneiras: de ser, parecer, comparecer ao que possa ser mais  ambivalente e sempre presente, como um desprezo pelo que não foi  estipulado como o que é beleza (corpos bem feitos, exagerados, bombados,  cheios de botox etc.). Essa forma de se vestir ou a insolência da negação de  um bom dia está nos conduzindo para formas sociais lançando seus vetores  para destruir tudo o que era gentileza ou etiqueta social, no melhor sentido. Vivemos cercados de contatos e, ao mesmo tempo, desprovidos de vínculos  profundos.
É o retrato de um tempo em que o sujeito, multiplicado em perfis  e telas, se encontra cindido, fragmentado. Naya, ao apresentar obras como  Cisão e Liberdade, parece traduzir esse Zeitgeist: a existência de um ser que  habita um mundo saturado de presenças visíveis, mas pobre em presenças  reais. O terceiro eixo da obra de Naya nos coloca diante de um curioso paradoxo:  ao mesmo tempo em que se lança para o campo da arte digital, a artista  recupera mitos, ora locais, ora estrangeiros. No Folclore de Câmara  Cascudo, ela resgata narrativas do imaginário potiguar. O que poderia ser  apenas ilustração folclórica ganha significado simbólico e universal, pois os  personagens não são caricaturas, mas a representação de um inconsciente  coletivo ainda vivo. O mito, nos lembra Mircea Eliade (O Sagrado e o  Profano), não é o que restou do passado, mas uma força atuante no presente.  Ao abordar o tema em sua obra, Naya nos recorda que a força da cultura popular permanece presente, quase como uma necessidade, mesmo em  situações onde não o reconhecemos. Em Akai Ito, o fio vermelho do destino, mito japonês que une pessoas  predestinadas, a artista se desloca para outra tradição cultural, mas reinscreve  em sua poética um mesmo rito de um mito presente em muitas culturas. O  fio vermelho é metáfora da ligação invisível entre corpos, tempos e culturas.  No gesto de Naya, o mito oriental se funde ao repertório nordestino,  revelando que o destino humano é, no fundo, o mesmo: o desejo de ligação,  a busca por um outro que nos complete.




Nenhum comentário:

Postar um comentário