Por Márcio de Lima Dantas.
O que se perdeu foi pouco. Mas era o que eu mais amava.
Henriqueta Lisboa
Naya Silva (Currais Novos, 22.10.2002) recebeu forte influência do seu pai, um dos melhores pintores naïfs do nosso estado: Nilson dos Santos. Embora tenha recebido essa influência, como não poderia deixar de ser, visto que tinha um grande artista dentro de casa, acabou por marcar sua obra com um outro vocabulário, engendrando toda uma espécie de retratos de mulheres no qual se evidencia o semblante, como a querer mostrar diversas maneiras de contemplar o mundo, na medida em que, como sabemos, as feições refletem o íntimo de um estar no mundo, seja em embates ou em contemplações líricas. Há artistas que não se deixam domesticar por apenas um estilo. A cada gesto, a cada composição, parecem inaugurar um campo novo, onde a tradição e a invenção do novo andam lado a lado. Uma não se sobrepõe a outra. Naya, com sua obra de rara sensibilidade, inscreve-se nesse terreno: ora recuperando a gramática do popular, com suas feiras, vilarejos e figuras camponesas, ora lançando-se às vertigens do digital, onde o eu se cinde em fragmentos, ainda, ressignificando mitos, costurando fios de diferentes culturas, como quem tece um bordado invisível no tecido da imaginação. A produção de Naya é uma travessia. Travessia de mundos: o rural e o urbano, o ingênuo e o conceitual, o local e o estrangeiro. Vejamos como isso sucede. Comecemos pelas obras de vocação naïf: Pequeno Vilarejo, Feira Livre e Mulher Camponesa. À primeira vista, parecem simples cenas da vida popular, carregadas de ingenuidade. Contudo, sob a superfície vibrante de cores, há uma gramática simbólica que exige interpretação, um querer dizer algo por meio de signos subliminares, de imagens advindas da sua subjetividade. No Pequeno Vilarejo, as casas parecem feitas de uma memória infantil. Os telhados desproporcionais, as fachadas coloridas, o traço sem perspectiva acadêmica... Tudo aponta para uma lógica outra, a lógica do afeto. A arquitetura aqui não precisa de cálculo, apenas precisa ser lembrança. O vilarejo de Naya nos leva à infância coletiva de uma comunidade, o abrigo onde ainda é possível se reconhecer pelo nome e pelo rosto. É o locus amoenus da cultura popular, onde o espaço tanto é real quanto mítico. A Feira Livre, por sua vez, explode em excesso cromático. Se pensarmos com Bakhtin, a feira é espaço do carnaval popular, onde a ordem hierárquica se dissolve, e todos, ricos e pobres, se tornam iguais no barulho das vozes. Já a Mulher Camponesa concentra em si o arquétipo da Grande Matriarca. A figura feminina, ligada à terra, aparece como guardiã da fertilidade e da continuidade da vida. Com efeito, aqui, o feminino não é apenas representação do princípio arquetípico, ela aparece como resistência e afirmação social. Seu corpo, sua cor, seus traços, se tornam instrumentos de empoderamento, mostrando que a arte também pode ser espaço de insurgência e reconhecimento. Na leitura de Naya, a força dessa presença representa resistência feminina: a capacidade de criar, sustentar e transformar, mesmo diante das adversidades. Se no naïf a artista ancora-se na memória coletiva, nas obras digitais ela se lança à sua subjetividade. Podemos dizer que é uma tessitura tecnológica: a memória coletiva cede o lugar à interioridade fragmentada. Ao ocorrer a cisão, o eu se rompe em pedaços. O quadro não oferece espaço para ser um, são estilhaços. Cores que se recusam a se fundir, linhas que não se reconciliam. O que está em jogo aqui é o drama do sujeito moderno: a impossibilidade de se manter inteiro. Freud diria que se trata do retorno do mal-estar na civilização, Lacan veria aí a fenda do sujeito, a rachadura que nos constitui. O espectador, ao se deter face a essa cisão, sente-se intimado a habitar essa mesma ferida: somos todos fragmentos tentando costurar uma narrativa de si que nunca se completa. Em contraste, o céu passa um ar de expansão. Se ocorre a cisão dessa ideia de fratura, de fragmentação, o céu é o horizonte. Contudo, não se trata de um céu bucólico, de paz, mas de um espaço ambíguo: lugar da liberdade e ao mesmo tempo do vazio. Contemplá-lo é se sentir livre, mas igualmente perdido. Já Liberdade nos traz o paradoxo da condição humana. Não falo da liberdade idealizada dos românticos, mas uma liberdade precária, sempre ameaçada pela queda. Há uma forte presença do existencialismo, pois somos seres lançados, condenados a escolher, a inventar caminhos que nunca serão definitivos. O sentido da obra é, portanto, duplo: celebra o fato de ser livre, mas não esconde o peso da angústia que acompanha toda escolha. Esse vazio, essa solidão paradoxal e a fragilidade dos laços humanos não são apenas dramas individuais: fazem parte do que chamamos de espírito da época, o Zeitgeist. Cada era produz sua forma própria de angústia. A nossa, marcada pela hiperconectividade, pelo excesso de imagens e pela promessa de uma liberdade ilimitada, nos oferece, em contrapartida, uma ampla solidão, causada pela soberba, narcisismo, infantilidade e toda uma série de sentimentos que nos lança, como já disse, ao distrito da solidão, implicando grande sofrimento, pranto sem conserto, melancolia oscilante. O Ar do Tempo, que quase nos obriga, feito tirania, a se comportar de determinadas maneiras: de ser, parecer, comparecer ao que possa ser mais ambivalente e sempre presente, como um desprezo pelo que não foi estipulado como o que é beleza (corpos bem feitos, exagerados, bombados, cheios de botox etc.). Essa forma de se vestir ou a insolência da negação de um bom dia está nos conduzindo para formas sociais lançando seus vetores para destruir tudo o que era gentileza ou etiqueta social, no melhor sentido. Vivemos cercados de contatos e, ao mesmo tempo, desprovidos de vínculos profundos. É o retrato de um tempo em que o sujeito, multiplicado em perfis e telas, se encontra cindido, fragmentado. Naya, ao apresentar obras como Cisão e Liberdade, parece traduzir esse Zeitgeist: a existência de um ser que habita um mundo saturado de presenças visíveis, mas pobre em presenças reais. O terceiro eixo da obra de Naya nos coloca diante de um curioso paradoxo: ao mesmo tempo em que se lança para o campo da arte digital, a artista recupera mitos, ora locais, ora estrangeiros. No Folclore de Câmara Cascudo, ela resgata narrativas do imaginário potiguar. O que poderia ser apenas ilustração folclórica ganha significado simbólico e universal, pois os personagens não são caricaturas, mas a representação de um inconsciente coletivo ainda vivo. O mito, nos lembra Mircea Eliade (O Sagrado e o Profano), não é o que restou do passado, mas uma força atuante no presente. Ao abordar o tema em sua obra, Naya nos recorda que a força da cultura popular permanece presente, quase como uma necessidade, mesmo em situações onde não o reconhecemos. Em Akai Ito, o fio vermelho do destino, mito japonês que une pessoas predestinadas, a artista se desloca para outra tradição cultural, mas reinscreve em sua poética um mesmo rito de um mito presente em muitas culturas. O fio vermelho é metáfora da ligação invisível entre corpos, tempos e culturas. No gesto de Naya, o mito oriental se funde ao repertório nordestino, revelando que o destino humano é, no fundo, o mesmo: o desejo de ligação, a busca por um outro que nos complete.
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