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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Especial: Isaías Medeiros: consciência e reflexão do fazer artístico

Por:  Márcio de Lima Dantas.

O pássaro é definitivo 

por isso não o procuremos 

 ele nos elegerá. 

Orides Fontela


 

1. 

Isaías Medeiros (Mossoró, RN, 1994). Acredito que seria injusto deixar de  falar de Pe. Sátiro e sua importância na formação do nosso artista. O  sacerdote edificou no bairro Dom Jaime Câmara, onde sempre residiu, uma  série de empreitadas que o tornou bastante querido pelo pessoal habitante  dessa área de Mossoró. Seu trabalho era com a FUNCERN (Fundação Socio Educativa do Rio Grande do Norte). Foi de grande importância esse trabalho social. Podemos arrolar, dentre  outros, a Gruta de Santa Clara, a Creche Erondina Cavalcanti, a Escola Padre  Sátiro (onde o artista estudou durante sua infância e adolescência), a  Biblioteca Dorian Jorge Freire, a FM 105 e o Mosteiro de Santa Clara. A trajetória como artista é bastante singular. No ano de 2015, cursava Letras  na UERN. Em 2017, realizou sua primeira individual exposição: Barroco  tropical: fiesta de colores. Fez um curso com o renomado artista Careca, na  Escola de Artes. Ainda em 2017, realizou outra exposição, celebrando os 50  anos do Tropicalismo, que ficou em cartaz até 2018. Explorou a figura de  Frida Kahlo em 2023. No mesmo ano, fruto de uma viagem a Salvador, realizou uma de suas mais  importantes exposições: “Ori”, em aquarela e caneta nanquim. Segundo o  artista: “Sua trajetória técnica acompanhou seu percurso de vida: começou  com lápis de cor, passou pela pintura em tecido, pela tinta acrílica, pela tinta  a óleo, aproximou-se da aquarela e hoje trabalha principalmente com  acrílica, técnica que lhe oferece a intensidade, a textura e a liberdade  expressiva que sua obra busca revelar”. Com efeito, sua relação com a arte foi bastante precoce, instalando-se desde  a infância, quando, aos oito anos, participou de atividades sociais do bairro  em uma ONG, onde teve as primeiras lições com o artista Altemir (“Fogo”).  Nesse contexto, aprendeu o básico sobre os materiais e técnicas, mas, após o encerramento, passou a desenvolver seu trabalho sozinho, explorando  possibilidades e encontrando sua via ao encontro do que latejava em seu  íntimo. Ainda jovem, iniciou o trabalho com camisas pintadas à mão, que  acabaram sendo suas primeiras experiências artísticas autorais. A última série encontra-se exposta no Museu Lauro da Escóssia: A paleta  mossoroense. Cada série é condizente com o contexto de sua vida e do que  está passando em seu íntimo. É uma espécie de sintoma de estruturas mentais  que não apenas se organizam, mas buscam emergir em categorias  expressionais no qual o artista formata por meio de um desenho e seleciona  a técnica mais condizente com essas imagens querendo vir à tona. Só pode ser um temperamento humilde com relação ao saber: sai em busca  de estabelecer relações e articular novos saberes. Cada viagem que faz  incorpora novos conhecimentos, aprimorando suas técnicas a partir do que  contemplou em artistas que fazem diferente. 

Sucede, desse modo, uma ampliação de horizontes, a partir de ícones vistos  e refletidos durante uma estadia em qualquer lugar. É uma mente aberta ao  novo e às suas eventuais possibilidades. Isso explica que, encontrando-se  sempre inquieto, esse desassossego benfazejo acaba por conduzi-lo a  aprimorar e palmilhar veredas novas, mexendo com uma coisa ou outra.  Basta ver que sempre realiza exposições. 

2. 

Isaías Medeiros domina um discurso sobre si mesmo e sobre sua elaboração  de produtos estéticos. É difícil encontrar essa consciência no meio artístico,  do emprego dos meios de que faz uso, estabelecendo uma relação com sua  trajetória de vida. Está presente a razão. Quando se pensa em arte, evoca-se  de imediato o sentimento, a emoção para se autoanalisar e se interpretar.  Mais ainda, remete o tempo inteiro à sua psiqué, de quem já nasceu  assinalado para ser artista visual. Creio que, mesmo na infância, já havia  esboços de uma consciência que o lançava para os domínios concernentes às  coisas do espírito. Discorre com grande propriedade acerca do que faz, do como faz,  impregnando as séries de um discurso translúcido e dotado de conhecimento  teórico, histórico e estético. Nada seu é gratuito, mas o resultado de uma  pesquisa. Creio que é assim o legítimo artista. É óbvio que tudo germina nos  recônditos do espírito: uma palavra, uma imagem, uma visita a uma exposição, ou seja, através do que já conhece acerca de como funcionam as  técnicas, a paleta, o tipo de pincel empregado. Surge como luz que aumenta sua intensidade, como um sol que nascendo quando a alba desfalece, atenua o limite entre a madrugada e a chegada dos  cavalos de fogo de Apolo, rompendo a leste a linha do horizonte, aportando  o dia com seu intenso sol brilhante, dizendo de mais uma jornada plena de  trabalhos, de labuta edificante. Isso mesmo, de uma rotina que detém a promessa do previsível, instalando se para confirmar que estamos vivos e com desenvoltura para exercer nosso  meio de vida e ainda acrescentar, através de determinada expressão, o que  requer feitura e nossa rubrica, perfazendo um arco vergado acompanhando  as horas por meio da posição do sol. Esse cotidiano, além da sua expectativa, chega cercado por uma aura com  nosso domínio e responsabilidades. Para o artista, é realizar seu expediente  no qual exerce seu ofício (professor de artes no SESC) e, em seguida,  dedicar-se, no tempo que resta, à sua arte, quer seja pintura ou outra forma  de arte visual. Pelo que relatou e escreveu a seu respeito, impele-nos a considerá-lo como  um temperamento apolíneo, vinculado ao regime diurno da imagem (Gilbert  Durand), o qual se compraz com o dia. Desperta nas primeiras horas para  deixar o dia mais comprido, estirando a pele de uma jornada que sempre  deixa coisas pendentes, devido às poucas horas para dar conta de tudo. Creio  que nisso se resguarda uma grande beleza com relação ao carpe diem. Conquanto, temos que aproveitar o dia, alimentando-nos de positividade,  criando ânimo para viver e para elaborar nossos trabalhos, engendrando  tratados consigo mesmo. Por fim, lançando energias de assertividade, de  cunho luminoso, para os labirintos internos que estão presentes em nosso  íntimo, pulsando como coisa viva, plenos de ícones, sinais e marcas de uma  memória, de nossa identidade, de geometrias de pertencimento. Não é isso que nos outorga alento ao viver? Aos sentimentos que geram uma  personalidade, capaz de deixar um lastro de algo edificante e que torna o  mundo um pouco melhor; no caso desse artista, seriam as e pinturas que  nomeiam e constroem uma outra realidade para adicionar à que já estamos  acostumados e nem sempre aceitamos. Sua disposição física no espaço é algo que transmite ânimo de viver, uma  energia vital bastante acesa e acentuada. Seu corpo hirsuto, longilíneo,  queda-se em uma desenvoltura provida de grande naturalidade, de quem se  garante no que faz. Passa a assertividade daquele tipo de pessoa que nada  deve a ninguém. Antípodas ao corpo retesado, as mãos realizam movimentos  com os dedos, como se estivessem buscando se fazer entender, como se  falassem de maneira didática, visando despertar uma empatia com o  interlocutor. Esse corpo estacado evoca o arquétipo presente em D. Quixote de La  Mancha, com todo o seu ímpeto de comportamento e pensar voltados para o  alto, para onde repousa a imaginação, para o que prefere deixar o real  concreto de lado, para um azul representante do que outorga e autoriza a seus  oráculos interiores a buscar respostas do que inquieta, do que se abriu como  fresta no espírito. Afinal, qual o motivo de tantos hiatos, de tantas lacunas?  O que sou eu? Quem sou eu? 

3. 

Vejamos sua série mais importante e mais madura do ponto de vista estético.  Quando viajava para Salvador, durante o percurso, imagens involuntárias  povoavam sua cabeça, evocando quase sempre a imagem recorrente de uma  sereia. Também não sabia o motivo, nem como chegara para chafurdar em  seu íntimo. Bem, se foi. Na capital da Bahia, empreendeu visitas a muitos  lugares relacionados à nossa cultura. Então, em uma visita ao Memorial Mãe Menininha do Gantois (antigo  Terreiro Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê), atento a tudo, não deixou passar nada  acerca da mitologia que serve de lastro e funciona como culto religioso,  regendo os rituais do Candomblé, sobretudo os do Gantois. Esteve à frente  por 66 anos a Maria Escolástica da Conceição Nazaré, a célebre Mãe  Menininha. A exposição intitulada Ori (“cabeça”, em iorubá) ocorreu em 2023. São 15  trabalhos em aquarela. Nela o artista respondendo a essa técnica de pintar,  não muito fácil, na medida em que deve haver agilidade, rapidez e esmero  nas pinceladas, escandindo uma cadência, um ritmo para a compreensão de  como o tempo funciona em uma tinta à base de água e em papel de maior  gramatura. A exposição, além da representação estética dos mitos, das chamadas  entidades do Candomblé e de seus orixás, resguarda uma pegada de  informação cultural acerca do que é essa manifestação religiosa. Inicialmente  houve um vernissage Mont petit, com café e livros. Houve também a mesma  exposição na Sala Joseph Boulier, no Memorial da Resistência. 

4. 

Há que apresentar o Candomblé. Diferente das religiões cristãs, cujo culto é  marcado pela melancolia, pelo sentimento do pecado, pela autopunição, em  que a dor e o sofrimento funcionam como se fossem um bilhete para a  entrada nas regiões celestiais. O Candomblé de matriz afro-brasileira exalta  uma alegria com hieratismo: durante o culto, dançam e cantam no ritmo do  atabaque e de outros instrumentos, com respeito e graça. Com efeito, os orixás não habitam uma cabeça desequilibrada, uma mente  desassossegada em demasia. Faz-se necessário deixar-se guiar por bons  pensamentos e boas vibrações nas atitudes e nos atos requeridos no  cotidiano. “Ori”, a cabeça, sintomaticamente a parte mais alta do corpo, se  conecta com o sagrado, lançando seus vetores vibracionais para se articular  com as forças físicas do bem. Eis alguns exemplos de orixás: Oxum, Ogum,  Iemanjá, Oxalá, Iansã-Oyá, Xangô, Oxumarê, Obaluaê-Omolu, Exu. A  curadoria da exposição foi de Jamira Lopes, com 15 obras aquareladas sobre  papel Canson. Acontece que, com Isaías Medeiros, ocorreu uma ressignificação da forma  como representou os orixás. Não da maneira ataviada e um tanto barroca  como fomos acostumados a ver. O artista optou por uma economia de meios,  um minimalismo que teve seu aliado no desenho, bem diferente de outros  trabalhos seus, nos quais a cor suplanta o desenho, fazendo-se senhora do  lugar. O desenho desponta como o que confere um delineamento do todo e das  partes dos orixás. Acompanha todos os detalhes presentes na configuração  do corpo, feito a partir de lápis e caneta nanquim, fazendo aparecer os  atributos que dizem respeito aos representantes máximos dessa religião. A cor encontra-se presente, caudatária do desenho. Essa maneira de  organizar um trabalho estético com aquarela e desenho aparente não é muito  comum. Quase sempre a aquarela aparece em uma intacta transparência de  cores e sombras, conformando a paisagem ou uma pintura de caráter mais íntimo. Não esquecer que essa técnica, basicamente, é de caráter solar, com  aproveitamento da luz e de suas possibilidades. Entretanto, também é  possível fazer uso dela não como secundária, mas com manuseio  parcimonioso. É o caso das explanações de Isaías Medeiros: fez uso de  maneira comedida, precisa e de grande beleza plástica, usando poucos  elementos para configurar as vestimentas e o movimento de todos os 15  trabalhos. Todos os orixás detêm um olho fechado: no lugar de um olho encontra-se  um espaço negro. Isso é bastante significativo no contexto de uma  representação diferente da que fomos acostumados a ver. O olho aberto  contempla a realidade e o seu derredor, em uma atitude de observar a  gramática da vida social, determinando o comportamento de seguir as regras  do bem viver e de uma volta para lidar somente com o bem. Assim como  toda religião, existe o resguardo de preceitos visando ao ser e ao estar em  permanente sintonia com as forças da natureza, encarnadas nos orixás. O olho fechado volta-se para o interior, buscando mapear seus sentimentos  e o que de inconveniente ou de mal possa ser extraído, outorgando à pessoa  uma possibilidade de ser melhor como gente face a seu semelhante; em um  estar no mundo, procurando sempre palmilhar as veredas nas quais o sensato,  o exercício diário de bons pensamentos se reveste da maior importância, na  medida em que prende os maus pensamentos e ordena-os, em uma atitude de  insubmissão perante o que existe de sombrio nos lugares abscônditos do  nosso interior. 

5. 

Por fim, é preciso trazer as quatro telas representando a amada e reverenciada  Santa Luzia, padroeira da cidade, sede de bispado (saudosos e queridos  bispos: D. Gentil Dinis Barreto e D. Freire), junto com Caicó e Natal. Santa Luzia (“luz”) foi uma mártir do século III. Representa a visão, a  luminosidade e tudo o que se relaciona ou necessita da clareza. Encontra-se  vinculada aos ofícios que exigem uma visão mais aprimorada, como as  costureiras, ou profissões que lidam com coisas miúdas, precisando ter uma  visão mais esmerada. Seus atributos são a folha de palmeira dos mártires e  uma bandeja com os olhos. Nasceu em Siracusa, Itália. Isaías Medeiros ungiu-se de grande liberdade estilística para compor seus  quatro ícones de Santa Luzia. O primeiro apresenta a imagem com apenas um olho, elaborada com lápis nanquim e aquarela. O desenho é inquieto no  branco do papel, com predominância de linhas curvas. Dispõe das cores  atributos desse ícone: vermelho e verde. O traço é ágil, minimalista, apenas  sugere a imagem para quem está familiarizado (os mossoroenses) com essa  representação. A segunda tela centra a imagem rodeada por um círculo amarelo ao fundo,  salientando a figura principal, com um resplendor. Para um lado e para outro,  palmeiras adornam a presença da mártir e três chananas separam o verde das  palmeiras. A tela perfaz uma simetria bilateral. No primeiro plano, bem  próximo do espectador, dois triângulos representam as belas salinas de Areia  Branca e Macau. Na metade esquerda, um galo-de-campina, uma coroa-de frade e uma bromélia florida, plantas das regiões xerófilas do semiárido  nordestino. A terceira é uma homenagem à festa de Santa Luzia, com grande  ajuntamento de pessoas vindas de regiões circunvizinhas. A imagem que o  artista apresenta não é a tradicional, mas a escultura de madeira da santa,  com seu resplendor de ouro, depositada na sacristia, antiga e original.  Encontra-se ataviada de azul, vermelho e amarelo. 

A catedral, ao fundo, referenda a festa animada, com forte pegada pagã nas  ruas que a circundam: mesas para bebidas e comidas. O que foge a esse  espírito de animação nada religioso é a procissão. Com efeito, um enorme cortejo, uma multidão acompanha o andor de Santa  Luzia. Grande parte está pagando promessas relativas a problemas com os  olhos ou a visão; alguns seguem de pés descalços. Não há como deixar de  admirar essa beleza, do que segue tranquilo por algumas ruas em torno da  Praça Vigário Antônio Joaquim. A imagem encontra-se circundada por uma  coroa de rosas vermelhas e brancas, alternadas. No lado esquerdo, sobressai  uma mão com um terço e duas fitas, vermelha e azul, amarradas no punho;  do lado direito, outra mão com uma vela, representando a luz que emana  dessa santa. A quarta tela é de grande beleza cromática. Um olho que se encontra na mão  da imagem, como um redemoinho azul, parte da imagem da sacristia,  rodeando-a de um azul com riscos brancos, como se quisesse apresentar a  figura. A tela quase se aproxima de uma simetria radial. Junto ao azul, temos  o verde. Justaposto a este, o vermelho. Nesse mundo turvado e de tanta coisa feia, mormente na moda, em que as pessoas estão cada vez mais  amarmotadas, vamos rogar ao mito de Santa Luzia que nos dê uma visão  seletiva, bem como um aprimoramento da visão periférica, para nos  defender.

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