Por: Márcio de Lima Dantas.
O pássaro é definitivo
por isso não o procuremos
ele nos elegerá.
Orides Fontela
1.
Isaías Medeiros (Mossoró, RN, 1994). Acredito que seria injusto deixar de falar de Pe. Sátiro e sua importância na formação do nosso artista. O sacerdote edificou no bairro Dom Jaime Câmara, onde sempre residiu, uma série de empreitadas que o tornou bastante querido pelo pessoal habitante dessa área de Mossoró. Seu trabalho era com a FUNCERN (Fundação Socio Educativa do Rio Grande do Norte). Foi de grande importância esse trabalho social. Podemos arrolar, dentre outros, a Gruta de Santa Clara, a Creche Erondina Cavalcanti, a Escola Padre Sátiro (onde o artista estudou durante sua infância e adolescência), a Biblioteca Dorian Jorge Freire, a FM 105 e o Mosteiro de Santa Clara. A trajetória como artista é bastante singular. No ano de 2015, cursava Letras na UERN. Em 2017, realizou sua primeira individual exposição: Barroco tropical: fiesta de colores. Fez um curso com o renomado artista Careca, na Escola de Artes. Ainda em 2017, realizou outra exposição, celebrando os 50 anos do Tropicalismo, que ficou em cartaz até 2018. Explorou a figura de Frida Kahlo em 2023. No mesmo ano, fruto de uma viagem a Salvador, realizou uma de suas mais importantes exposições: “Ori”, em aquarela e caneta nanquim. Segundo o artista: “Sua trajetória técnica acompanhou seu percurso de vida: começou com lápis de cor, passou pela pintura em tecido, pela tinta acrílica, pela tinta a óleo, aproximou-se da aquarela e hoje trabalha principalmente com acrílica, técnica que lhe oferece a intensidade, a textura e a liberdade expressiva que sua obra busca revelar”. Com efeito, sua relação com a arte foi bastante precoce, instalando-se desde a infância, quando, aos oito anos, participou de atividades sociais do bairro em uma ONG, onde teve as primeiras lições com o artista Altemir (“Fogo”). Nesse contexto, aprendeu o básico sobre os materiais e técnicas, mas, após o encerramento, passou a desenvolver seu trabalho sozinho, explorando possibilidades e encontrando sua via ao encontro do que latejava em seu íntimo. Ainda jovem, iniciou o trabalho com camisas pintadas à mão, que acabaram sendo suas primeiras experiências artísticas autorais. A última série encontra-se exposta no Museu Lauro da Escóssia: A paleta mossoroense. Cada série é condizente com o contexto de sua vida e do que está passando em seu íntimo. É uma espécie de sintoma de estruturas mentais que não apenas se organizam, mas buscam emergir em categorias expressionais no qual o artista formata por meio de um desenho e seleciona a técnica mais condizente com essas imagens querendo vir à tona. Só pode ser um temperamento humilde com relação ao saber: sai em busca de estabelecer relações e articular novos saberes. Cada viagem que faz incorpora novos conhecimentos, aprimorando suas técnicas a partir do que contemplou em artistas que fazem diferente.
Sucede, desse modo, uma ampliação de horizontes, a partir de ícones vistos e refletidos durante uma estadia em qualquer lugar. É uma mente aberta ao novo e às suas eventuais possibilidades. Isso explica que, encontrando-se sempre inquieto, esse desassossego benfazejo acaba por conduzi-lo a aprimorar e palmilhar veredas novas, mexendo com uma coisa ou outra. Basta ver que sempre realiza exposições.
2.
Isaías Medeiros domina um discurso sobre si mesmo e sobre sua elaboração de produtos estéticos. É difícil encontrar essa consciência no meio artístico, do emprego dos meios de que faz uso, estabelecendo uma relação com sua trajetória de vida. Está presente a razão. Quando se pensa em arte, evoca-se de imediato o sentimento, a emoção para se autoanalisar e se interpretar. Mais ainda, remete o tempo inteiro à sua psiqué, de quem já nasceu assinalado para ser artista visual. Creio que, mesmo na infância, já havia esboços de uma consciência que o lançava para os domínios concernentes às coisas do espírito. Discorre com grande propriedade acerca do que faz, do como faz, impregnando as séries de um discurso translúcido e dotado de conhecimento teórico, histórico e estético. Nada seu é gratuito, mas o resultado de uma pesquisa. Creio que é assim o legítimo artista. É óbvio que tudo germina nos recônditos do espírito: uma palavra, uma imagem, uma visita a uma exposição, ou seja, através do que já conhece acerca de como funcionam as técnicas, a paleta, o tipo de pincel empregado. Surge como luz que aumenta sua intensidade, como um sol que nascendo quando a alba desfalece, atenua o limite entre a madrugada e a chegada dos cavalos de fogo de Apolo, rompendo a leste a linha do horizonte, aportando o dia com seu intenso sol brilhante, dizendo de mais uma jornada plena de trabalhos, de labuta edificante. Isso mesmo, de uma rotina que detém a promessa do previsível, instalando se para confirmar que estamos vivos e com desenvoltura para exercer nosso meio de vida e ainda acrescentar, através de determinada expressão, o que requer feitura e nossa rubrica, perfazendo um arco vergado acompanhando as horas por meio da posição do sol. Esse cotidiano, além da sua expectativa, chega cercado por uma aura com nosso domínio e responsabilidades. Para o artista, é realizar seu expediente no qual exerce seu ofício (professor de artes no SESC) e, em seguida, dedicar-se, no tempo que resta, à sua arte, quer seja pintura ou outra forma de arte visual. Pelo que relatou e escreveu a seu respeito, impele-nos a considerá-lo como um temperamento apolíneo, vinculado ao regime diurno da imagem (Gilbert Durand), o qual se compraz com o dia. Desperta nas primeiras horas para deixar o dia mais comprido, estirando a pele de uma jornada que sempre deixa coisas pendentes, devido às poucas horas para dar conta de tudo. Creio que nisso se resguarda uma grande beleza com relação ao carpe diem. Conquanto, temos que aproveitar o dia, alimentando-nos de positividade, criando ânimo para viver e para elaborar nossos trabalhos, engendrando tratados consigo mesmo. Por fim, lançando energias de assertividade, de cunho luminoso, para os labirintos internos que estão presentes em nosso íntimo, pulsando como coisa viva, plenos de ícones, sinais e marcas de uma memória, de nossa identidade, de geometrias de pertencimento. Não é isso que nos outorga alento ao viver? Aos sentimentos que geram uma personalidade, capaz de deixar um lastro de algo edificante e que torna o mundo um pouco melhor; no caso desse artista, seriam as e pinturas que nomeiam e constroem uma outra realidade para adicionar à que já estamos acostumados e nem sempre aceitamos. Sua disposição física no espaço é algo que transmite ânimo de viver, uma energia vital bastante acesa e acentuada. Seu corpo hirsuto, longilíneo, queda-se em uma desenvoltura provida de grande naturalidade, de quem se garante no que faz. Passa a assertividade daquele tipo de pessoa que nada deve a ninguém. Antípodas ao corpo retesado, as mãos realizam movimentos com os dedos, como se estivessem buscando se fazer entender, como se falassem de maneira didática, visando despertar uma empatia com o interlocutor. Esse corpo estacado evoca o arquétipo presente em D. Quixote de La Mancha, com todo o seu ímpeto de comportamento e pensar voltados para o alto, para onde repousa a imaginação, para o que prefere deixar o real concreto de lado, para um azul representante do que outorga e autoriza a seus oráculos interiores a buscar respostas do que inquieta, do que se abriu como fresta no espírito. Afinal, qual o motivo de tantos hiatos, de tantas lacunas? O que sou eu? Quem sou eu?
3.
Vejamos sua série mais importante e mais madura do ponto de vista estético. Quando viajava para Salvador, durante o percurso, imagens involuntárias povoavam sua cabeça, evocando quase sempre a imagem recorrente de uma sereia. Também não sabia o motivo, nem como chegara para chafurdar em seu íntimo. Bem, se foi. Na capital da Bahia, empreendeu visitas a muitos lugares relacionados à nossa cultura. Então, em uma visita ao Memorial Mãe Menininha do Gantois (antigo Terreiro Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê), atento a tudo, não deixou passar nada acerca da mitologia que serve de lastro e funciona como culto religioso, regendo os rituais do Candomblé, sobretudo os do Gantois. Esteve à frente por 66 anos a Maria Escolástica da Conceição Nazaré, a célebre Mãe Menininha. A exposição intitulada Ori (“cabeça”, em iorubá) ocorreu em 2023. São 15 trabalhos em aquarela. Nela o artista respondendo a essa técnica de pintar, não muito fácil, na medida em que deve haver agilidade, rapidez e esmero nas pinceladas, escandindo uma cadência, um ritmo para a compreensão de como o tempo funciona em uma tinta à base de água e em papel de maior gramatura. A exposição, além da representação estética dos mitos, das chamadas entidades do Candomblé e de seus orixás, resguarda uma pegada de informação cultural acerca do que é essa manifestação religiosa. Inicialmente houve um vernissage Mont petit, com café e livros. Houve também a mesma exposição na Sala Joseph Boulier, no Memorial da Resistência.
4.
Há que apresentar o Candomblé. Diferente das religiões cristãs, cujo culto é marcado pela melancolia, pelo sentimento do pecado, pela autopunição, em que a dor e o sofrimento funcionam como se fossem um bilhete para a entrada nas regiões celestiais. O Candomblé de matriz afro-brasileira exalta uma alegria com hieratismo: durante o culto, dançam e cantam no ritmo do atabaque e de outros instrumentos, com respeito e graça. Com efeito, os orixás não habitam uma cabeça desequilibrada, uma mente desassossegada em demasia. Faz-se necessário deixar-se guiar por bons pensamentos e boas vibrações nas atitudes e nos atos requeridos no cotidiano. “Ori”, a cabeça, sintomaticamente a parte mais alta do corpo, se conecta com o sagrado, lançando seus vetores vibracionais para se articular com as forças físicas do bem. Eis alguns exemplos de orixás: Oxum, Ogum, Iemanjá, Oxalá, Iansã-Oyá, Xangô, Oxumarê, Obaluaê-Omolu, Exu. A curadoria da exposição foi de Jamira Lopes, com 15 obras aquareladas sobre papel Canson. Acontece que, com Isaías Medeiros, ocorreu uma ressignificação da forma como representou os orixás. Não da maneira ataviada e um tanto barroca como fomos acostumados a ver. O artista optou por uma economia de meios, um minimalismo que teve seu aliado no desenho, bem diferente de outros trabalhos seus, nos quais a cor suplanta o desenho, fazendo-se senhora do lugar. O desenho desponta como o que confere um delineamento do todo e das partes dos orixás. Acompanha todos os detalhes presentes na configuração do corpo, feito a partir de lápis e caneta nanquim, fazendo aparecer os atributos que dizem respeito aos representantes máximos dessa religião. A cor encontra-se presente, caudatária do desenho. Essa maneira de organizar um trabalho estético com aquarela e desenho aparente não é muito comum. Quase sempre a aquarela aparece em uma intacta transparência de cores e sombras, conformando a paisagem ou uma pintura de caráter mais íntimo. Não esquecer que essa técnica, basicamente, é de caráter solar, com aproveitamento da luz e de suas possibilidades. Entretanto, também é possível fazer uso dela não como secundária, mas com manuseio parcimonioso. É o caso das explanações de Isaías Medeiros: fez uso de maneira comedida, precisa e de grande beleza plástica, usando poucos elementos para configurar as vestimentas e o movimento de todos os 15 trabalhos. Todos os orixás detêm um olho fechado: no lugar de um olho encontra-se um espaço negro. Isso é bastante significativo no contexto de uma representação diferente da que fomos acostumados a ver. O olho aberto contempla a realidade e o seu derredor, em uma atitude de observar a gramática da vida social, determinando o comportamento de seguir as regras do bem viver e de uma volta para lidar somente com o bem. Assim como toda religião, existe o resguardo de preceitos visando ao ser e ao estar em permanente sintonia com as forças da natureza, encarnadas nos orixás. O olho fechado volta-se para o interior, buscando mapear seus sentimentos e o que de inconveniente ou de mal possa ser extraído, outorgando à pessoa uma possibilidade de ser melhor como gente face a seu semelhante; em um estar no mundo, procurando sempre palmilhar as veredas nas quais o sensato, o exercício diário de bons pensamentos se reveste da maior importância, na medida em que prende os maus pensamentos e ordena-os, em uma atitude de insubmissão perante o que existe de sombrio nos lugares abscônditos do nosso interior.
5.
Por fim, é preciso trazer as quatro telas representando a amada e reverenciada Santa Luzia, padroeira da cidade, sede de bispado (saudosos e queridos bispos: D. Gentil Dinis Barreto e D. Freire), junto com Caicó e Natal. Santa Luzia (“luz”) foi uma mártir do século III. Representa a visão, a luminosidade e tudo o que se relaciona ou necessita da clareza. Encontra-se vinculada aos ofícios que exigem uma visão mais aprimorada, como as costureiras, ou profissões que lidam com coisas miúdas, precisando ter uma visão mais esmerada. Seus atributos são a folha de palmeira dos mártires e uma bandeja com os olhos. Nasceu em Siracusa, Itália. Isaías Medeiros ungiu-se de grande liberdade estilística para compor seus quatro ícones de Santa Luzia. O primeiro apresenta a imagem com apenas um olho, elaborada com lápis nanquim e aquarela. O desenho é inquieto no branco do papel, com predominância de linhas curvas. Dispõe das cores atributos desse ícone: vermelho e verde. O traço é ágil, minimalista, apenas sugere a imagem para quem está familiarizado (os mossoroenses) com essa representação. A segunda tela centra a imagem rodeada por um círculo amarelo ao fundo, salientando a figura principal, com um resplendor. Para um lado e para outro, palmeiras adornam a presença da mártir e três chananas separam o verde das palmeiras. A tela perfaz uma simetria bilateral. No primeiro plano, bem próximo do espectador, dois triângulos representam as belas salinas de Areia Branca e Macau. Na metade esquerda, um galo-de-campina, uma coroa-de frade e uma bromélia florida, plantas das regiões xerófilas do semiárido nordestino. A terceira é uma homenagem à festa de Santa Luzia, com grande ajuntamento de pessoas vindas de regiões circunvizinhas. A imagem que o artista apresenta não é a tradicional, mas a escultura de madeira da santa, com seu resplendor de ouro, depositada na sacristia, antiga e original. Encontra-se ataviada de azul, vermelho e amarelo.
A catedral, ao fundo, referenda a festa animada, com forte pegada pagã nas ruas que a circundam: mesas para bebidas e comidas. O que foge a esse espírito de animação nada religioso é a procissão. Com efeito, um enorme cortejo, uma multidão acompanha o andor de Santa Luzia. Grande parte está pagando promessas relativas a problemas com os olhos ou a visão; alguns seguem de pés descalços. Não há como deixar de admirar essa beleza, do que segue tranquilo por algumas ruas em torno da Praça Vigário Antônio Joaquim. A imagem encontra-se circundada por uma coroa de rosas vermelhas e brancas, alternadas. No lado esquerdo, sobressai uma mão com um terço e duas fitas, vermelha e azul, amarradas no punho; do lado direito, outra mão com uma vela, representando a luz que emana dessa santa. A quarta tela é de grande beleza cromática. Um olho que se encontra na mão da imagem, como um redemoinho azul, parte da imagem da sacristia, rodeando-a de um azul com riscos brancos, como se quisesse apresentar a figura. A tela quase se aproxima de uma simetria radial. Junto ao azul, temos o verde. Justaposto a este, o vermelho. Nesse mundo turvado e de tanta coisa feia, mormente na moda, em que as pessoas estão cada vez mais amarmotadas, vamos rogar ao mito de Santa Luzia que nos dê uma visão seletiva, bem como um aprimoramento da visão periférica, para nos defender.





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