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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Especial: Fábio Di Ojuara: umas tantas facetas de uma obra multiforme.

Por Márcio de Lima Dantas.

 Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos.  

– E acheia-a amarga. E injuriei-a. 

Armei-me contra a justiça. 

Fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, a vós é  

que meu tesouro foi confiado. 

 Arthur Rimbaud 



1. Fábio de Araújo, cujo nome artístico é Fabio de Ojuara (Natal, RN, 1958),  reside em Ceará-Mirim. Sua formação como artista foi na Escola de Arte  com Jaques Wagner, por volta de 1975. Quando retornou a Natal, foi  acolhido pelo pintor Dorian Gray, que atuou como curador da sua primeira  exposição, Brasil Abstrato, realizada na Galeria de Arte Câmara Cascudo  (1987). Devido a problemas com a Capitania da Arte, durante a seleção dos trabalhos  participantes do XI Salão de Artes Visuais de Natal (2006), resolveu criar o  Salão dos Excluídos, arregimentando mais de 200 artistas. Esse evento foi  organizado pelo artista visual Vitor Serrão, pelo próprio Fábio Di Ojuara e  pelo poeta Plínio Sanderson. A exposição foi acolhida pelo Palácio Potengi  (2006). Na ocasião, Ojuara destacou-se com uma instalação na qual fez uso  de restos de lixo reciclado, chamando atenção pela maneira inusitada como  concebia o fazer artístico e seus resultados estéticos. 

 Também participou de várias exposições pelo mundo afora, como a  Exposição de Arte Erótica, em Paris (2005). Já nos anos de 1987, integrou o  movimento de Mail Art, liderado por Falves Silva e J. Medeiros. Recentemente, foi convidado a participar de um evento na Áustria. O  Wassenckraft ocorre na cidade de Gmünd, mundialmente reputada como a  cidade que realiza mais eventos relativos às artes. O convite partiu da  Associação Áustria/Brasil, prontamente aceito. Hoje em dia, encontra-se  dividido entre Ceará-Mirim e a Áustria, residindo na cidade de Spittal an der  Drau. De outra parte, também se fez presente na 52ª Bienal de Veneza, por meio  da apresentação de performances. Participou ainda da 3ª Biennale Arte Dolomiti, em 2022. Durante suas permanências na Áustria, trabalha em  parceria com o escultor Reinhard Schell, produzindo juntos na mesma  oficina (onde existe uma fundição). Os convites partiram de pessoas que já tinham contato com o seu trabalho,  qualificando-o como condizente com a arte contemporânea, no sentido de  deter um forte pendor de originalidade e universalidade. Nada ficando a  dever aos seus pares de vários países europeus presentes. O certo é que se  sentiu inteiramente à vontade, na medida em que os trabalhos apresentados  estavam não somente antenados com o Ar do Tempo, mas se revestiam de  grande singularidade, despertando bastante atenção sobre o brasileiro. 

2. De antemão, esclareço que faço uso de uma nomenclatura referendada pela  tradição e pela História da Arte. Uso para efeito didático e de melhor  compreensão, revestida de uma pedagogia que só tem efeito para este ensaio  no qual empreendo uma análise e interpretação. 

De maneira nenhuma posso  estender para a obra multifacetada de Fábio Di Ojuara categorias de quando  a arte estava compartimentada nos limites do que ficou conhecido como  pertencimento às artes como pintura ou escultura. Conquanto, aqui estamos diante de uma obra em que quase nada se encontra  em estado puro, detendo apenas ícones, sinais e emblemas concernentes a  cada uma das chamadas “belas artes”. Estamos no século XXI: essa  categorização dizia respeito a condições sociais da aristocracia e da Igreja  Católica, com o intuito de marcar diferença, de afirmar sua superioridade, de  falar de um pertencimento que não dizia respeito às classes dominadas. O artista Fábio Di Ojuara é considerado escultor, mas acredito que isso diz  pouco de sua obra multifacetada, centrada em uma determinação de superar  o que outrora houvera, lançando seus vetores com vibrações estéticas  subliminares para outras áreas, em uma tentativa de descobrir formas  diferentes de arte. O convite para residir na Áustria, por alguns meses do ano,  deve-se certamente a esse caráter experimental do temperamento e da obra  do artista. Dito isso, faz-nos relembrar uma passagem de Morte e Vida  Severina. 

- Belo porque tem do novo 

 a surpresa e a alegria.

- Belo como a coisa nova 

 na prateleira até então vazia. 

- Como qualquer coisa nova 

 inaugurando o seu dia. 

- Ou como caderno novo 

 quando a gente o principia. 

João Cabral de Melo Neto 

Assim sendo, o artista lida bem com qualquer sistema semiótico, sobretudo  buscando, através de uma inquietação permanente, os domínios  desconhecidos. Adentra por meio da experimentação, mesclando material  reciclado, testando materiais para ver como ficam, inaugurando e  incorporando à realidade outra proposta de dizer, ser, ver, fazer. Como se fosse uma reeducação dos sentidos, reinventa e alarga as formas de  contemplar, ampliando sem preconceitos novos objetos acrescentados à  realidade, que irão questionar o existente, quedado inerte na concretude dos  dias, imóvel. Essa realidade só se altera quando é conveniente aos donos do  poder, que criam as leis e estabelecem a vigilância e a punição. A realidade, o cotidiano, com seus horários e relógios marcando as cobranças  instituídas na ampulheta da hipocrisia, escorre como areia de um mundo  dominado por discursos não condizentes com as formas nas quais  enfrentamos as vicissitudes.

Não se fala do abandono, das lacunas, chegadas  como cartas que apenas ostentam nosso endereço. Não existe emissor nessas  cartas sempre registradas. Sua técnica de trabalho, contemplando todo e qualquer material já usado ou  reciclado, desde a madeira, metais, papel, permite um trânsito e um câmbio  por suportes vários. Refrata, ainda que não totalmente, a matéria-prima e  seus suportes, detentores de convenções desde sempre integrantes dos  movimentos da arte. 

3. Há uma série de trabalhos tridimensionais, confeccionados em chapas de  alumínio derramado por meio da fundição, plasmados em uma oficina da  Áustria. O alumínio fundido é despejado sobre suportes negros, causando  um efeito de rara beleza. A ausência de uma forma figurativa, baseada nos  objetos do nosso entorno, torna-se impossível de encontrar no plano do real, quedando-se como obra de arte a questionar se o real concreto é mesmo um  espaço com gramática fechada, normativa, não permitindo o acréscimo de  outros elementos. A cor dourada é alcançada através de flambagem, ou seja,  uma pintura que recebe uma queima, tornando-se diferente da cor prata do  alumínio. 

 Sobre o suporte negro, formas verticais parecem exaltar uma busca  impossível de modificar o que já está dado, pois não passam de alumínio  fundido. Proclamam o que era líquido e veio a ser sólido, despejado  aleatoriamente no ato de derramar sobre a placa negra. Parece dizer que, diante dos nossos entraves com a realidade, via de regra  não detemos o domínio da força das coisas. A verdade é que só podemos nos  adaptar ou efetivar arrodeios, buscando outros caminhos que nos conduzam  ao nosso foco, ao que desejamos realizar. É curioso que essas formas de  alumínio ondulam, através de uma geometria em curvas, sugerindo o tempo  em círculos, buscando um ponto no qual haja contato, feche um ciclo. Ora, a menor distância entre dois pontos é uma reta. Mas todo mundo sabe  que a vida não oferta nada de graça. As estradas são cheias de curvas, a poeira  se ergue tapando nossa visão, obrigando a uma marcha sempre mais lenta, à  medida em que Cronos vai atualizando nossa idade (depois dos 40, vem 50?  Nunca! Pule logo para os 62). Só por uma percepção ilusória o tempo é  mensurado de maneira linear (15h, 16h, 17h). O filósofo francês Henri Bergson (1859–1941) dedicou parte de sua obra a  repensar os elementos e categorias referentes ao tempo, questionando nossas  percepções acerca de Cronos e sua pressa de chegar a um fim que todos  sabemos onde vai dar. Para o filósofo, além de termos o chamado tempo  físico, que pode ser submetido à ciência com seu aparelhamento, permitindo nos calcular e analisar, esse tempo se configura como quantitativo, haja vista  a alternância das estações presentes todo ano, com sua inevitabilidade. Conquanto, essa forma do tempo pode ser submetida aos carrilhões nas  paredes ou ao relógio de pulso (analógico ou digital). Para Bergson, há outra  forma de sentir o tempo: através dos sentidos, da intuição, de mecanismos  vários que mudam de pessoa para pessoa. Este tempo é o que nos imprime o  viver, cognominado durée (duração). As horas físicas submetem-se a como  sentimos o passar. Desse modo, uma hora física pode durar cinco horas, a depender do estado emocional, do que aguardamos, da paciência ou  impaciência. É difícil compreender, haja vista que ele é qualitativo. Nossos caminhos, nossa trajetória de vida, não seguem um curso reto, mas  estão plenos de meandros, hiatos, lacunas, passadiços, encruzilhadas. Isso é  o que conhecemos como condição humana. Mais cedo ou mais tarde iremos  sentir o que provou o jovem príncipe Sidarta Guatama: guardado pelo pai  dentro do palácio para não conhecer a dor provocada pela realidade, um dia  encontrou o portão aberto e deparou-se com um velho (envelhecemos), um  enfermo (adoecemos), um cortejo conduzindo um morto (morremos). E se o que pertence à nossa trajetória de vida não for de necessidade utilitária  ou funcional, mas diga respeito à busca de equilibrar sistemas do nosso  âmago, de uma desarmonia consigo mesmo, de uma inimizade, de uma não  aceitação do próprio corpo ou de pertencer às classes modestas, a cada um  compete dar sua resposta. Acredito que aceitar nossas limitações através de  atitudes resilientes parece mais sensato, pois não podemos fazer juízo de  valor sobre nossos semelhantes (é sempre bom aparar a língua). Afinal,  “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Gal Costa). Enfim, em síntese, depois dessa digressão: o certo é que a forma no negro do  suporte permanecerá estática, indiferente às nossas insistências. E, sobretudo, por se tratar de alumínio, sempre será sólido, pois é um metal  abundante no planeta Terra, detentor de enorme resistência à corrosão.  Nunca se encontra em estado puro, é extraído da bauxita. Acredito que essa  série de três variações sobre o mesmo tema resguarda uma metáfora da  condição humana e das suas inevitabilidades e impossibilidades de alterar  um conjunto de coisas. 

4. Ora, não é justamente esse o papel da arte? Proclamar uma possibilidade de  haver outras formas de pensar, sentir e agir, bem como organizar materiais  que não digam respeito ao chamado mundo real. Mesmo se tratando de um  questionamento através da confecção de outros objetos destoantes do que  fomos acostumados a usar como espécie de moeda de troca nas relações  sociais e nos relacionamentos interpessoais, de natureza mais próxima, mais  íntima. 

Esses costumes tornam-se hábitos que nos impelem e requerem,  engendrando uma expectativa de que nos comportemos não de uma maneira, mas de outra mais condizente com aquilo que chamam de “normal”. Essas  expectativas, por parte de quem educa, fundam uma pessoa, um homem, uma  mulher. Enfim, ao vivenciar com formas que se vão gestando durante o  processo de educação de uma criança. Essas maneiras de perceber a realidade são repassadas pelo aprendizado da  linguagem, que nunca é inocente. Na verdade, já traz no seu bojo, nas letras,  nas sílabas e nas palavras, discursos que passam inconscientemente,  organizando determinadas formas de comportamento. O que ocorre são  signos partilhados por todos, sobretudo os que dizem respeito às classes  dominantes, com seu simulacro de inocência e hipocrisia. 

Voltemos ao Fábio Di Ojuara escultor.  

Em um parque de uma cidade austríaca há uma escultura sua, representando  um cavalo-marinho. Chama atenção por sua beleza plástica, com uma  elegância estética que o mantém ereto, como os cavalos-marinhos que nadam  na vertical. Não se perdeu, na escultura, essa característica: nadar ereto, com  paciência e persistência diante das vicissitudes, adaptando-se às  adversidades. 

5. Por fim, vejamos o que se constitui como sintoma dessa recorrência do peixe  e do cavalo-marinho no conjunto da obra de Fábio de Ojuara. Esses animais  da água, no contexto do seu trabalho, são menos do que imagens a serem  retratadas. Quero dizer: são estruturas antropológicas do Imaginário (Gilbert  Durand), que chegam como imagens vindas do âmago do artista, das regiões  mais profundas, do pelágico, onde as sombras resguardam o mais secreto da  gente. Para o artista, o inconsciente, liberando as imagens, segue um devir  de plasmar em arte, em peixes, em cavalos-marinhos. Podemos atestar duas imagens recorrentes no conjunto da sua obra: o peixe  e o cavalo-marinho. 

Com efeito, quando do uso da acrílica sobre tela, estão  no centro da composição, projetados sobre diversos planos de fundo. Eis que  surge um cavalo-marinho azul, com finos fios que saem do seu corpo e  terminam em círculos pintados de vermelho intenso. O resultado cromático,  entre cores fortes, clama pela empatia de quem contempla. Os peixes podem aparecer inteiros ou fragmentados, alguns suspensos como  se estivessem sobre uma vegetação do fundo do mar. Parece que o artista não  se cansa de tratar o mesmo tema a partir de um leque de cores. A paleta é  vasta, em contrastes que circundam as partes dos peixes, fragmentados ou  inteiriços. Podemos apontar a presença do peixe em diversas séries, sendo o referente (tema) que mais desponta nas suas telas. Desse modo, podemos falar em  variações sobre o mesmo tema. A criatividade do artista, no manuseio de  uma multiplicidade de cores, possibilita tratar desse desenho de um animal  constituído apenas de dois arcos superpostos, resultando em um traço  extremamente simples de lidar. Em seguida, faz uso de uma paleta na qual todas as cores estão presentes. A  coleção de cores é vasta, muitas vezes antípodas, em contrastes cromáticos  que circundam o espaço no qual a figura é ressaltada, quer seja fragmentada  ou inteira. No que concerne à simbólica do peixe, foi um dos primeiros e principais  ícones relacionados aos primórdios do Cristianismo, pois a palavra PEIXE  (ICHTHYS (acrônimo cristão antigo); em grego: IΧΘΥΣ, deve ser lida  usando a primeira letra: Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. I X Θ Y Σ I CH TH Y S 

O peixe resguarda a capacidade de mergulhar e navegar através de águas  profundas, representativas do inconsciente, sendo o que nos confere  humanidade. Nessas regiões abissais, não temos o mesmo acesso que o peixe  detém como atributo de sua natureza. Com essa amplitude de atingir o  invisível, às regiões cujos domínios pertencem ao imaginário, ao que  concerne mais aos sentimentos, como a intuição e a sabedoria, o peixe nos  convida a inquirir o lado oculto da psiqué. De outra parte, alguns peixes,  como as carpas, efetuam seu nado contra a corrente, simbolizando a  superação de obstáculos ou dissabores trazidos pelo estar no mundo.  Conclama à perseverança e à necessidade de fechar ciclos e abrir outros. Com relação ao cavalo-marinho, suas estações simbólicas parecem mais  evidentes, já que seu próprio modus vivendi encontra-se vinculado à sua  maneira de se locomover com calma e paciência. Por serem animais monogâmicos, representam fidelidade, lealdade e proteção ao seu par.  Também, assim como o peixe, estão associados à calma e à perseverança  quando em águas agitadas, permanecendo tranquilos e resguardando a  insistência em seu objetivo. Ou seja, constituem-se como um temperamento  perseverante. 

6. Por fim, resta admitir minha admiração a um artista visual como Fábio de  Ojuara que, através de uma rara simplicidade de meios, logrou êxito em  modelar, com poucos elementos, uma obra de grande envergadura e beleza  plástica. Não se pode esquecer de mencionar sua alquimia estética, detentora  de uma frágua que queima com labaredas ardentes determinadas formas de  ser e estar da sociedade contemporânea. Ou seja, é uma crítica, direta ou  velada, ao nosso tempo marcado pelo comportamento narcísico, eivado de  simulacro, culto às aparências e infantilidade. A parcimônia de formas e cores é bastante difícil de se atingir em objetos de  arte. O nosso alquimista-maior filia-se a um minimalismo presente na arte  contemporânea. Basta ver a arquitetura dos dias de hoje: com o uso de  poucos meios, cimento armado, madeira e plantas, compõe-se um bloco uno  em seu despojamento de ornamentos, mais de acordo com o Ar do Tempo (Espírito da Época). Os bons arquitetos modelam uma bela casa. Entende-se  como uma tendência antibarroca, procurando configurar formas  representativas de um viver mais simples, sem dar muito trabalho e sem  implicar grande emprego de tempo na sua conservação. Dissemos isso acerca da arquitetura para melhor esclarecer em que tradição  nosso artista inscreve sua rubrica, desenha seu nome e firma-se como um dos  nossos mais importantes artistas visuais, com seu caráter pansemiótico, sua  simplicidade de comportamento e sua projeção para outros países. Construiu  uma obra de grande universalidade. O seu sucesso fala por si. Assim como o  peixe, sua inquietude o conduziu a navegar pelos meandros do grande rio  que é a vida. Como o cavalo-marinho, nadou em águas turbulentas, mas foi  perseverante. O resultado de tudo isso foi levar fé no que fazia, acreditando  e se garantindo como um assinalado da arte.


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