Por Márcio de Lima Dantas.
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos.
– E acheia-a amarga. E injuriei-a.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, a vós é
que meu tesouro foi confiado.
Arthur Rimbaud
1. Fábio de Araújo, cujo nome artístico é Fabio de Ojuara (Natal, RN, 1958), reside em Ceará-Mirim. Sua formação como artista foi na Escola de Arte com Jaques Wagner, por volta de 1975. Quando retornou a Natal, foi acolhido pelo pintor Dorian Gray, que atuou como curador da sua primeira exposição, Brasil Abstrato, realizada na Galeria de Arte Câmara Cascudo (1987). Devido a problemas com a Capitania da Arte, durante a seleção dos trabalhos participantes do XI Salão de Artes Visuais de Natal (2006), resolveu criar o Salão dos Excluídos, arregimentando mais de 200 artistas. Esse evento foi organizado pelo artista visual Vitor Serrão, pelo próprio Fábio Di Ojuara e pelo poeta Plínio Sanderson. A exposição foi acolhida pelo Palácio Potengi (2006). Na ocasião, Ojuara destacou-se com uma instalação na qual fez uso de restos de lixo reciclado, chamando atenção pela maneira inusitada como concebia o fazer artístico e seus resultados estéticos.
Também participou de várias exposições pelo mundo afora, como a Exposição de Arte Erótica, em Paris (2005). Já nos anos de 1987, integrou o movimento de Mail Art, liderado por Falves Silva e J. Medeiros. Recentemente, foi convidado a participar de um evento na Áustria. O Wassenckraft ocorre na cidade de Gmünd, mundialmente reputada como a cidade que realiza mais eventos relativos às artes. O convite partiu da Associação Áustria/Brasil, prontamente aceito. Hoje em dia, encontra-se dividido entre Ceará-Mirim e a Áustria, residindo na cidade de Spittal an der Drau. De outra parte, também se fez presente na 52ª Bienal de Veneza, por meio da apresentação de performances. Participou ainda da 3ª Biennale Arte Dolomiti, em 2022. Durante suas permanências na Áustria, trabalha em parceria com o escultor Reinhard Schell, produzindo juntos na mesma oficina (onde existe uma fundição). Os convites partiram de pessoas que já tinham contato com o seu trabalho, qualificando-o como condizente com a arte contemporânea, no sentido de deter um forte pendor de originalidade e universalidade. Nada ficando a dever aos seus pares de vários países europeus presentes. O certo é que se sentiu inteiramente à vontade, na medida em que os trabalhos apresentados estavam não somente antenados com o Ar do Tempo, mas se revestiam de grande singularidade, despertando bastante atenção sobre o brasileiro.2. De antemão, esclareço que faço uso de uma nomenclatura referendada pela tradição e pela História da Arte. Uso para efeito didático e de melhor compreensão, revestida de uma pedagogia que só tem efeito para este ensaio no qual empreendo uma análise e interpretação.
De maneira nenhuma posso estender para a obra multifacetada de Fábio Di Ojuara categorias de quando a arte estava compartimentada nos limites do que ficou conhecido como pertencimento às artes como pintura ou escultura. Conquanto, aqui estamos diante de uma obra em que quase nada se encontra em estado puro, detendo apenas ícones, sinais e emblemas concernentes a cada uma das chamadas “belas artes”. Estamos no século XXI: essa categorização dizia respeito a condições sociais da aristocracia e da Igreja Católica, com o intuito de marcar diferença, de afirmar sua superioridade, de falar de um pertencimento que não dizia respeito às classes dominadas. O artista Fábio Di Ojuara é considerado escultor, mas acredito que isso diz pouco de sua obra multifacetada, centrada em uma determinação de superar o que outrora houvera, lançando seus vetores com vibrações estéticas subliminares para outras áreas, em uma tentativa de descobrir formas diferentes de arte. O convite para residir na Áustria, por alguns meses do ano, deve-se certamente a esse caráter experimental do temperamento e da obra do artista. Dito isso, faz-nos relembrar uma passagem de Morte e Vida Severina.- Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
- Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
- Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
- Ou como caderno novo
quando a gente o principia.
João Cabral de Melo Neto
Assim sendo, o artista lida bem com qualquer sistema semiótico, sobretudo buscando, através de uma inquietação permanente, os domínios desconhecidos. Adentra por meio da experimentação, mesclando material reciclado, testando materiais para ver como ficam, inaugurando e incorporando à realidade outra proposta de dizer, ser, ver, fazer. Como se fosse uma reeducação dos sentidos, reinventa e alarga as formas de contemplar, ampliando sem preconceitos novos objetos acrescentados à realidade, que irão questionar o existente, quedado inerte na concretude dos dias, imóvel. Essa realidade só se altera quando é conveniente aos donos do poder, que criam as leis e estabelecem a vigilância e a punição. A realidade, o cotidiano, com seus horários e relógios marcando as cobranças instituídas na ampulheta da hipocrisia, escorre como areia de um mundo dominado por discursos não condizentes com as formas nas quais enfrentamos as vicissitudes.
Não se fala do abandono, das lacunas, chegadas como cartas que apenas ostentam nosso endereço. Não existe emissor nessas cartas sempre registradas. Sua técnica de trabalho, contemplando todo e qualquer material já usado ou reciclado, desde a madeira, metais, papel, permite um trânsito e um câmbio por suportes vários. Refrata, ainda que não totalmente, a matéria-prima e seus suportes, detentores de convenções desde sempre integrantes dos movimentos da arte.3. Há uma série de trabalhos tridimensionais, confeccionados em chapas de alumínio derramado por meio da fundição, plasmados em uma oficina da Áustria. O alumínio fundido é despejado sobre suportes negros, causando um efeito de rara beleza. A ausência de uma forma figurativa, baseada nos objetos do nosso entorno, torna-se impossível de encontrar no plano do real, quedando-se como obra de arte a questionar se o real concreto é mesmo um espaço com gramática fechada, normativa, não permitindo o acréscimo de outros elementos. A cor dourada é alcançada através de flambagem, ou seja, uma pintura que recebe uma queima, tornando-se diferente da cor prata do alumínio.
Sobre o suporte negro, formas verticais parecem exaltar uma busca impossível de modificar o que já está dado, pois não passam de alumínio fundido. Proclamam o que era líquido e veio a ser sólido, despejado aleatoriamente no ato de derramar sobre a placa negra. Parece dizer que, diante dos nossos entraves com a realidade, via de regra não detemos o domínio da força das coisas. A verdade é que só podemos nos adaptar ou efetivar arrodeios, buscando outros caminhos que nos conduzam ao nosso foco, ao que desejamos realizar. É curioso que essas formas de alumínio ondulam, através de uma geometria em curvas, sugerindo o tempo em círculos, buscando um ponto no qual haja contato, feche um ciclo. Ora, a menor distância entre dois pontos é uma reta. Mas todo mundo sabe que a vida não oferta nada de graça. As estradas são cheias de curvas, a poeira se ergue tapando nossa visão, obrigando a uma marcha sempre mais lenta, à medida em que Cronos vai atualizando nossa idade (depois dos 40, vem 50? Nunca! Pule logo para os 62). Só por uma percepção ilusória o tempo é mensurado de maneira linear (15h, 16h, 17h). O filósofo francês Henri Bergson (1859–1941) dedicou parte de sua obra a repensar os elementos e categorias referentes ao tempo, questionando nossas percepções acerca de Cronos e sua pressa de chegar a um fim que todos sabemos onde vai dar. Para o filósofo, além de termos o chamado tempo físico, que pode ser submetido à ciência com seu aparelhamento, permitindo nos calcular e analisar, esse tempo se configura como quantitativo, haja vista a alternância das estações presentes todo ano, com sua inevitabilidade. Conquanto, essa forma do tempo pode ser submetida aos carrilhões nas paredes ou ao relógio de pulso (analógico ou digital). Para Bergson, há outra forma de sentir o tempo: através dos sentidos, da intuição, de mecanismos vários que mudam de pessoa para pessoa. Este tempo é o que nos imprime o viver, cognominado durée (duração). As horas físicas submetem-se a como sentimos o passar. Desse modo, uma hora física pode durar cinco horas, a depender do estado emocional, do que aguardamos, da paciência ou impaciência. É difícil compreender, haja vista que ele é qualitativo. Nossos caminhos, nossa trajetória de vida, não seguem um curso reto, mas estão plenos de meandros, hiatos, lacunas, passadiços, encruzilhadas. Isso é o que conhecemos como condição humana. Mais cedo ou mais tarde iremos sentir o que provou o jovem príncipe Sidarta Guatama: guardado pelo pai dentro do palácio para não conhecer a dor provocada pela realidade, um dia encontrou o portão aberto e deparou-se com um velho (envelhecemos), um enfermo (adoecemos), um cortejo conduzindo um morto (morremos). E se o que pertence à nossa trajetória de vida não for de necessidade utilitária ou funcional, mas diga respeito à busca de equilibrar sistemas do nosso âmago, de uma desarmonia consigo mesmo, de uma inimizade, de uma não aceitação do próprio corpo ou de pertencer às classes modestas, a cada um compete dar sua resposta. Acredito que aceitar nossas limitações através de atitudes resilientes parece mais sensato, pois não podemos fazer juízo de valor sobre nossos semelhantes (é sempre bom aparar a língua). Afinal, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Gal Costa). Enfim, em síntese, depois dessa digressão: o certo é que a forma no negro do suporte permanecerá estática, indiferente às nossas insistências. E, sobretudo, por se tratar de alumínio, sempre será sólido, pois é um metal abundante no planeta Terra, detentor de enorme resistência à corrosão. Nunca se encontra em estado puro, é extraído da bauxita. Acredito que essa série de três variações sobre o mesmo tema resguarda uma metáfora da condição humana e das suas inevitabilidades e impossibilidades de alterar um conjunto de coisas.4. Ora, não é justamente esse o papel da arte? Proclamar uma possibilidade de haver outras formas de pensar, sentir e agir, bem como organizar materiais que não digam respeito ao chamado mundo real. Mesmo se tratando de um questionamento através da confecção de outros objetos destoantes do que fomos acostumados a usar como espécie de moeda de troca nas relações sociais e nos relacionamentos interpessoais, de natureza mais próxima, mais íntima.
Esses costumes tornam-se hábitos que nos impelem e requerem, engendrando uma expectativa de que nos comportemos não de uma maneira, mas de outra mais condizente com aquilo que chamam de “normal”. Essas expectativas, por parte de quem educa, fundam uma pessoa, um homem, uma mulher. Enfim, ao vivenciar com formas que se vão gestando durante o processo de educação de uma criança. Essas maneiras de perceber a realidade são repassadas pelo aprendizado da linguagem, que nunca é inocente. Na verdade, já traz no seu bojo, nas letras, nas sílabas e nas palavras, discursos que passam inconscientemente, organizando determinadas formas de comportamento. O que ocorre são signos partilhados por todos, sobretudo os que dizem respeito às classes dominantes, com seu simulacro de inocência e hipocrisia.Voltemos ao Fábio Di Ojuara escultor.
Em um parque de uma cidade austríaca há uma escultura sua, representando um cavalo-marinho. Chama atenção por sua beleza plástica, com uma elegância estética que o mantém ereto, como os cavalos-marinhos que nadam na vertical. Não se perdeu, na escultura, essa característica: nadar ereto, com paciência e persistência diante das vicissitudes, adaptando-se às adversidades.
5. Por fim, vejamos o que se constitui como sintoma dessa recorrência do peixe e do cavalo-marinho no conjunto da obra de Fábio de Ojuara. Esses animais da água, no contexto do seu trabalho, são menos do que imagens a serem retratadas. Quero dizer: são estruturas antropológicas do Imaginário (Gilbert Durand), que chegam como imagens vindas do âmago do artista, das regiões mais profundas, do pelágico, onde as sombras resguardam o mais secreto da gente. Para o artista, o inconsciente, liberando as imagens, segue um devir de plasmar em arte, em peixes, em cavalos-marinhos. Podemos atestar duas imagens recorrentes no conjunto da sua obra: o peixe e o cavalo-marinho.
Com efeito, quando do uso da acrílica sobre tela, estão no centro da composição, projetados sobre diversos planos de fundo. Eis que surge um cavalo-marinho azul, com finos fios que saem do seu corpo e terminam em círculos pintados de vermelho intenso. O resultado cromático, entre cores fortes, clama pela empatia de quem contempla. Os peixes podem aparecer inteiros ou fragmentados, alguns suspensos como se estivessem sobre uma vegetação do fundo do mar. Parece que o artista não se cansa de tratar o mesmo tema a partir de um leque de cores. A paleta é vasta, em contrastes que circundam as partes dos peixes, fragmentados ou inteiriços. Podemos apontar a presença do peixe em diversas séries, sendo o referente (tema) que mais desponta nas suas telas. Desse modo, podemos falar em variações sobre o mesmo tema. A criatividade do artista, no manuseio de uma multiplicidade de cores, possibilita tratar desse desenho de um animal constituído apenas de dois arcos superpostos, resultando em um traço extremamente simples de lidar. Em seguida, faz uso de uma paleta na qual todas as cores estão presentes. A coleção de cores é vasta, muitas vezes antípodas, em contrastes cromáticos que circundam o espaço no qual a figura é ressaltada, quer seja fragmentada ou inteira. No que concerne à simbólica do peixe, foi um dos primeiros e principais ícones relacionados aos primórdios do Cristianismo, pois a palavra PEIXE (ICHTHYS (acrônimo cristão antigo); em grego: IΧΘΥΣ, deve ser lida usando a primeira letra: Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. I X Θ Y Σ I CH TH Y SO peixe resguarda a capacidade de mergulhar e navegar através de águas profundas, representativas do inconsciente, sendo o que nos confere humanidade. Nessas regiões abissais, não temos o mesmo acesso que o peixe detém como atributo de sua natureza. Com essa amplitude de atingir o invisível, às regiões cujos domínios pertencem ao imaginário, ao que concerne mais aos sentimentos, como a intuição e a sabedoria, o peixe nos convida a inquirir o lado oculto da psiqué. De outra parte, alguns peixes, como as carpas, efetuam seu nado contra a corrente, simbolizando a superação de obstáculos ou dissabores trazidos pelo estar no mundo. Conclama à perseverança e à necessidade de fechar ciclos e abrir outros. Com relação ao cavalo-marinho, suas estações simbólicas parecem mais evidentes, já que seu próprio modus vivendi encontra-se vinculado à sua maneira de se locomover com calma e paciência. Por serem animais monogâmicos, representam fidelidade, lealdade e proteção ao seu par. Também, assim como o peixe, estão associados à calma e à perseverança quando em águas agitadas, permanecendo tranquilos e resguardando a insistência em seu objetivo. Ou seja, constituem-se como um temperamento perseverante.
6. Por fim, resta admitir minha admiração a um artista visual como Fábio de Ojuara que, através de uma rara simplicidade de meios, logrou êxito em modelar, com poucos elementos, uma obra de grande envergadura e beleza plástica. Não se pode esquecer de mencionar sua alquimia estética, detentora de uma frágua que queima com labaredas ardentes determinadas formas de ser e estar da sociedade contemporânea. Ou seja, é uma crítica, direta ou velada, ao nosso tempo marcado pelo comportamento narcísico, eivado de simulacro, culto às aparências e infantilidade. A parcimônia de formas e cores é bastante difícil de se atingir em objetos de arte. O nosso alquimista-maior filia-se a um minimalismo presente na arte contemporânea. Basta ver a arquitetura dos dias de hoje: com o uso de poucos meios, cimento armado, madeira e plantas, compõe-se um bloco uno em seu despojamento de ornamentos, mais de acordo com o Ar do Tempo (Espírito da Época). Os bons arquitetos modelam uma bela casa. Entende-se como uma tendência antibarroca, procurando configurar formas representativas de um viver mais simples, sem dar muito trabalho e sem implicar grande emprego de tempo na sua conservação. Dissemos isso acerca da arquitetura para melhor esclarecer em que tradição nosso artista inscreve sua rubrica, desenha seu nome e firma-se como um dos nossos mais importantes artistas visuais, com seu caráter pansemiótico, sua simplicidade de comportamento e sua projeção para outros países. Construiu uma obra de grande universalidade. O seu sucesso fala por si. Assim como o peixe, sua inquietude o conduziu a navegar pelos meandros do grande rio que é a vida. Como o cavalo-marinho, nadou em águas turbulentas, mas foi perseverante. O resultado de tudo isso foi levar fé no que fazia, acreditando e se garantindo como um assinalado da arte.







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