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quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Nos trilhos do trem da Great Western

 Por: José Tavares de Araújo Neto.



Seguir os trilhos do trem da Great Western é percorrer um dos caminhos mais decisivos da história do Nordeste brasileiro. Sobre barras de ferro assentadas entre o litoral e o sertão, a ferrovia não apenas transportou cargas e passageiros, mas redesenhou o território, acelerou o tempo, reorganizou economias e transformou o cotidiano de cidades inteiras. O trem introduziu uma nova experiência de modernidade em regiões marcadas pela lentidão dos caminhos de terra, fazendo do apito da locomotiva um símbolo de progresso, esperança e ruptura. Essa experiência de modernidade não surgiu de forma espontânea nem homogênea. Foi resultado de um projeto histórico específico, marcado pela entrada do capital estrangeiro, pelas exigências do mercado exportador e pela necessidade de integrar áreas produtoras do interior aos portos do litoral. É nesse contexto que se insere a atuação da Great Western of Brazil Railway, empresa britânica criada no final do século XIX, cuja presença no Nordeste estruturou a mais extensa e influente rede ferroviária regional do país. Criada em Londres em 1872 e autorizada a operar no Império do Brasil em 1873, a Great Western passou a absorver e arrendar ferrovias já existentes, entre elas a Recife and São Francisco Railway, inaugurada em 1858 e considerada a primeira estrada de ferro de efetiva importância econômica do Brasil. A lógica era clara: conectar o interior produtor aos portos do litoral, assegurando o escoamento de açúcar, algodão, álcool, madeira, gado e outros produtos que sustentavam a economia nordestina. Pernambuco tornou-se o eixo estruturador dessa rede. A partir de 1881, com o trecho Recife–Jaboatão, iniciou-se a formação da Linha Centro, que avançaria rumo ao Agreste e ao Sertão. O maior desafio técnico foi a travessia da Serra das Russas, marcada por túneis, pontes e cortes em rocha, símbolo do esforço de engenharia necessário para integrar territórios até então separados por barreiras naturais. A partir desse núcleo, a ferrovia expandiu-se para além de Pernambuco, alcançando a Paraíba, Alagoas e o Rio Grande do Norte, formando um sistema regional integrado. O trem introduziu horários regulares, estimulou o trabalho assalariado, intensificou migrações internas e alterou profundamente os costumes. Cidades passaram a se organizar em função da estação, do apito e da chegada cotidiana de pessoas, mercadorias e notícias. Na Paraíba, essa expansão ganhou contornos decisivos com a formação do Ramal da Paraíba, articulado à antiga Estrada de Ferro Baturité, no Ceará. Após alcançar Sousa, os trilhos avançaram rumo ao Sertão, fazendo de Pombal a estação de ponta de seu primeiro prolongamento. A Estação Ferroviária de Pombal, inaugurada em 24 de outubro de 1932, representou a incorporação definitiva da cidade ao circuito ferroviário nordestino. Posteriormente, os trilhos avançaram até Patos e Campina Grande, onde se conectaram ao Ramal de Campina Grande e, por extensão, à rede da Great Western, estabelecendo uma ligação contínua entre a Paraíba, Pernambuco e o Rio Grande do Norte. A chegada do trem a Pombal foi amplamente festejada pela população. Representava progresso, integração regional e novas possibilidades econômicas. A ferrovia passou a transportar passageiros e cargas diversas, como gado, madeira, cimento e produtos agrícolas, encurtando distâncias e dinamizando o comércio local. O impacto não se limitou à economia. O trem alterou hábitos, intensificou o fluxo de pessoas e provocou mudanças profundas na vida urbana, afetando serviços, práticas sociais e formas de sociabilidade, como ocorreu em tantas outras cidades ferroviárias do interior brasileiro. Um marco decisivo dessa integração foi a construção da ponte ferroviária sobre o Rio Piancó, conhecida como Ponte do Trem ou Ponte Vermelha. Inaugurada em 17 de janeiro de 1942, a ponte possui 270 metros de extensão e cerca de 6 metros de largura, constituindo-se em uma das mais expressivas obras de engenharia ferroviária do Sertão paraibano. Sua inauguração consolidou Pombal como elo estratégico na ligação ferroviária do interior da Paraíba com o restante do Nordeste, vencendo um obstáculo natural de grande porte e fortalecendo o papel da cidade na malha regional. A presença da ferrovia foi também decisiva para a instalação de empreendimentos industriais, como a fábrica da Brasil Oiticica, evidenciando o papel dos trilhos como indutores de investimentos e de diversificação econômica no Sertão. Durante o auge da Great Western, sobretudo nas primeiras décadas do século XX, a empresa modernizou seu material rodante. Operou locomotivas a vapor de origem britânica, norte-americana e alemã. Modelos como Mogul, Consolidation e Mastodon tornaram-se comuns nos trilhos nordestinos, acompanhados por carros de passageiros de diferentes classes e vagões de carga padronizados. Esses equipamentos simbolizavam uma modernidade técnica que contrastava fortemente com a paisagem sertaneja. O declínio seguiu a trajetória conhecida da política ferroviária brasileira. O avanço do transporte rodoviário, a redução dos investimentos e as mudanças no modelo econômico levaram à desativação progressiva dos serviços. Em Pombal, o transporte de passageiros foi encerrado entre o final da década de 1970 e o início da década de 1980. Permaneceram apenas os trens de carga, que resistiram até aproximadamente 2010. Em 1950, a encampação da Great Western pelo governo federal deu origem à Rede Ferroviária do Nordeste, posteriormente incorporada à Rede Ferroviária Federal. A Estação Ferroviária de Pombal, reconhecida por seu valor histórico, foi tombada em 2001 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep). Apesar desse reconhecimento, o cenário atual é de abandono. A estação, a ponte e o antigo leito ferroviário encontram-se em grande parte tomados pela vegetação, com acesso difícil e sinais evidentes de deterioração. Registros recentes apontam para descaso e depredação do entorno, comprometendo a preservação desse patrimônio. Hoje, a ponte sobre o Rio Piancó permanece como a imagem mais poderosa desse legado. Mais do que uma estrutura de ferro e concreto, ela simboliza a ligação entre tempos distintos: o do progresso anunciado pelo apito do trem e o do silêncio que se seguiu ao abandono dos trilhos. A ponte uniu margens, cidades e destinos. Hoje, une memória e esquecimento. Preservá-la é reconhecer que a história do Nordeste moderno não se fez apenas nos gabinetes e nos portos, mas também sobre trilhos que cruzaram rios, sertões e vidas. Trilhos que deixaram marcas indeléveis na paisagem e na identidade de lugares como Pombal.


quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

O Conflito que moldou o Seridó: A Emancipação de Caicó e a disputa com Pombal.

Por: José Tavares de Araújo Neto (*)

O atual município de Caicó, no Rio Grande do Norte, possui uma história profundamente entrelaçada com a da Capitania da Parahyba do Norte. Sua origem e emancipação política são um processo marcado por ambição territorial, complexos conflitos de jurisdição e a luta de uma comunidade por sua identidade e autonomia, tendo a relação com a Vila de Pombal como elemento central.

Antes de sua emancipação, o território onde hoje se situa Caicó era parte integrante do domínio da Vila Nova de Pombal, na Capitania da Parahyba. A região do Seridó era administrada civilmente a partir de Pombal, embora já possuísse uma identidade distinta, centrada na Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, criada em 1748.

Tudo começa não em 1788, mas muito antes, no rastro da chamada "Guerra dos Bárbaros" (1683-1725). Com a pacificação relativa da região, surgiu por volta de 1695 uma pequena capela dedicada à Senhora Sant'Ana, dando origem a um arraial que, em 1700, foi oficialmente fundado como Arraial do Queiquó (ou Caicó), nome de origem indígena referente a um pássaro local e ao rio que margeava o lugar.

Em 1735, este arraial foi elevado à condição de Povoação do Caicó (também chamada de Povoação do Seridó), um reconhecimento de seu crescimento perante a coroa portuguesa. No entanto, a verdadeira autonomia política só viria com o status de Vila, pois apenas estas podiam abrigar uma Câmara Municipal, o centro do poder local.

A Criação da Vila Nova do Príncipe (1788) e a Semente do Conflito

O momento decisivo chegou em 1788, no contexto das reformas pombalinas, que visavam reorganizar o império português, promover o povoamento e fortalecer o controle metropolitano sobre as colônias.

O Autor: 

O ouvidor geral da Comarca da Paraíba (à qual a Capitania do Rio Grande do Norte estava judicialmente subordinada), o desembargador Antônio Filipe Soares de Andrade Brederodes, encaminhou uma representação ao governo da Capitania de Pernambuco sugerindo a elevação de várias povoações à categoria de vila.

A Ordem: 

O governador de Pernambuco, Dom Tomás José de Melo, expediu uma carta autorizando Brederodes a erigir as vilas. A Povoação do Seridó foi transformada na Vila Nova do Príncipe, uma homenagem ao Príncipe da Beira, filho primogênito da rainha D. Maria I e herdeiro do trono português.

O Ato Formal: 

Através de um alvará datado de 31 de julho de 1788, Brederodes oficializou a criação da vila. Esta data é considerada a da emancipação política de Caicó, pois a partir dela o território se desmembrou politicamente do município de Natal.

A Delimitação do Território e a Origem do Problema: 

No "Termo de Assinação de território desta Villa do Principe" (assinatura do termo de território), Brederodes delimitou o vasto território da nova vila como correspondente a "todo o distrito desta Freguesia de Senhora Santa Anna do Caicó". Este foi o ponto crucial que gerou décadas de conflito. A Freguesia de Santa Ana do Seridó, criada em 1748, era uma divisão eclesiástica que cobria uma área imensa, incluindo partes do sertão do Rio Grande do Norte e parte do sertão da vizinha Capitania da Paraíba.

Ao definir o território civil da vila com base no território religioso da freguesia, Brederodes determinou que a Vila Nova do Príncipe passava a administrar civilmente terras que ficavam geograficamente dentro dos limites da Capitania da Paraíba, notadamente as áreas das ribeiras do Sabugi e Piranhas, e as povoações que dariam origem a Patos e Serra do Cuité.

Imediatamente, em 1788, a Freguesia de Nossa Senhora da Guia dos Patos foi desmembrada, ganhando autonomia eclesiástica, mas seus habitantes continuaram civilmente subordinados à Vila do Príncipe. O mesmo ocorreu com a Serra do Cuité em 1801.

A Relação de Conflito com a Vila Nova de Pombal

A Vila Nova de Pombal (atual Pombal, PB) havia sido fundada em 1772 na Capitania da Paraíba. Para suas autoridades, era inaceitável que uma outra vila de exercesse jurisdição sobre territórios que eles consideravam seus. A relação entre as duas vilas, portanto, não foi de subordinação, mas de concorrência direta, antagonismo e disputa aberta pela hegemonia sobre o sertão.

Os conflitos começaram a se intensificar. Um episódio emblemático ocorreu em 1806, quando o Capitão-Mor da Vila do Príncipe, Cipriano Lopes Galvão, tentou fazer o alistamento militar ("recensear a gente") em áreas do Sabugi, sendo impedido pelo capitão-mor de Pombal, Francisco de Arruda Câmara, que alegou invasão de jurisdição. A disputa chegou ao Príncipe Regente D. João, mas não foi resolvida.

O estopim definitivo foi o Alvará de 18 de março de 1818, que desmembrou a Capitania do Rio Grande do Norte da Comarca da Paraíba, criando a Comarca do Rio Grande do Norte. Este documento afirmava que os limites da nova comarca seriam os que "se acham assinados para a mesma Capitania". As autoridades de Pombal interpretaram isso como uma oportunidade para anexar as áreas contestadas.

Em 1822, a situação explodiu. O juiz ordinário e o escrivão da Vila do Príncipe tentaram realizar eleições de paróquia na Matriz de Patos, mas "o Povo tumultuariamente obstou as Eleições tomando por pretexto serem do Termo da Vila do Pombal".

Diante do que consideraram um "esbulho", os vereadores da Vila do Príncipe, liderados pelo juiz Martinho de Medeiros Rocha, escreveram uma carta dramática ao Rei D. João VI em 3 de julho de 1822. Eles argumentavam que Pombal queria "arrancar das entranhas desta Vila quase todo o território, e a maior parte dos Povos" e que os habitantes dessas áreas, "satisfeitos com a sua antiga subordinação à esta Vila", não queriam ser transferidos para Pombal.

Os moradores do Sabugi e do Cuité, de fato, enviaram requerimentos à Câmara do Príncipe, "rogando para não serem desamparados" e afirmando que só queriam obedecer à Vila do Príncipe, "tanto por lhe ficar mais perto como por que tinham sido criados na obediência à mesma". Este argumento da proximidade geográfica era crucial:

Distância dos Povos em relação às Vilas (em léguas):

Lugar Distância da Vila do Príncipe Distância da Vila de Pombal

Povos da Serra do Cuité e mais alguns lugares 24 léguas 44 léguas

Povos do Sabugi, na parte mais longe 10 léguas 30 léguas

Povos do Sabugi, na parte “de mais perto” 4 léguas 16 léguas

Fonte: Resposta dos Vereadores da Villa do Príncipe ao Presidente da Província (1827).

A Resolução e a Consolidação de Caicó

O conflito se arrastou pela década de 1820 e 1830, dentro do novo Império do Brasil. A questão foi parar na Assembleia Geral Legislativa, onde o padre Francisco de Brito Guerra, deputado geral representando os interesses do Seridó, teve papel fundamental em defender a jurisdição do Príncipe.

Aos poucos, a questão foi sendo resolvida em favor do Rio Grande do Norte. As áreas contestadas foram sendo incorporadas definitivamente à Paraíba (como no caso de Patos), mas o núcleo central do Seridó, com Caicó como sua sede, manteve-se no Rio Grande do Norte. A mudança de nome da vila para Cidade do Príncipe em 1868 e, finalmente, para Caicó em 1890, consolidou uma identidade própria, desvinculada da homenagem à realeza e reafirmando suas origens indígenas.

Portanto, a emancipação de Caicó não foi um simples ato burocrático. Foi um processo longo e conturbado, marcado por uma ousada definição territorial em 1788 que ignorou fronteiras capitais, gerando um conflito jurisdicional duradouro com Pombal. A vitória final do Príncipe/Caicó nesta disputa garantiu a formação do Seridó potiguar como o conhecemos hoje, fruto não apenas de um alvará, mas da resistência de suas elites locais e da própria população que se identificava com a esfera de influência da histórica Freguesia de Santa Ana. A relação com Pombal foi, desde o início, o pano de fundo contra o qual a história política de Caicó foi forjada.


* - Trecho Livro  *-“A história de Pombal contextualizada no Cenário Nacional”_*  (Título Provisório), de José Tavares de Araújo Neto.

Especial: Fábio Di Ojuara: umas tantas facetas de uma obra multiforme.

Por Márcio de Lima Dantas.

 Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos.  

– E acheia-a amarga. E injuriei-a. 

Armei-me contra a justiça. 

Fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, a vós é  

que meu tesouro foi confiado. 

 Arthur Rimbaud 



1. Fábio de Araújo, cujo nome artístico é Fabio de Ojuara (Natal, RN, 1958),  reside em Ceará-Mirim. Sua formação como artista foi na Escola de Arte  com Jaques Wagner, por volta de 1975. Quando retornou a Natal, foi  acolhido pelo pintor Dorian Gray, que atuou como curador da sua primeira  exposição, Brasil Abstrato, realizada na Galeria de Arte Câmara Cascudo  (1987). Devido a problemas com a Capitania da Arte, durante a seleção dos trabalhos  participantes do XI Salão de Artes Visuais de Natal (2006), resolveu criar o  Salão dos Excluídos, arregimentando mais de 200 artistas. Esse evento foi  organizado pelo artista visual Vitor Serrão, pelo próprio Fábio Di Ojuara e  pelo poeta Plínio Sanderson. A exposição foi acolhida pelo Palácio Potengi  (2006). Na ocasião, Ojuara destacou-se com uma instalação na qual fez uso  de restos de lixo reciclado, chamando atenção pela maneira inusitada como  concebia o fazer artístico e seus resultados estéticos. 

 Também participou de várias exposições pelo mundo afora, como a  Exposição de Arte Erótica, em Paris (2005). Já nos anos de 1987, integrou o  movimento de Mail Art, liderado por Falves Silva e J. Medeiros. Recentemente, foi convidado a participar de um evento na Áustria. O  Wassenckraft ocorre na cidade de Gmünd, mundialmente reputada como a  cidade que realiza mais eventos relativos às artes. O convite partiu da  Associação Áustria/Brasil, prontamente aceito. Hoje em dia, encontra-se  dividido entre Ceará-Mirim e a Áustria, residindo na cidade de Spittal an der  Drau. De outra parte, também se fez presente na 52ª Bienal de Veneza, por meio  da apresentação de performances. Participou ainda da 3ª Biennale Arte Dolomiti, em 2022. Durante suas permanências na Áustria, trabalha em  parceria com o escultor Reinhard Schell, produzindo juntos na mesma  oficina (onde existe uma fundição). Os convites partiram de pessoas que já tinham contato com o seu trabalho,  qualificando-o como condizente com a arte contemporânea, no sentido de  deter um forte pendor de originalidade e universalidade. Nada ficando a  dever aos seus pares de vários países europeus presentes. O certo é que se  sentiu inteiramente à vontade, na medida em que os trabalhos apresentados  estavam não somente antenados com o Ar do Tempo, mas se revestiam de  grande singularidade, despertando bastante atenção sobre o brasileiro. 

2. De antemão, esclareço que faço uso de uma nomenclatura referendada pela  tradição e pela História da Arte. Uso para efeito didático e de melhor  compreensão, revestida de uma pedagogia que só tem efeito para este ensaio  no qual empreendo uma análise e interpretação. 

De maneira nenhuma posso  estender para a obra multifacetada de Fábio Di Ojuara categorias de quando  a arte estava compartimentada nos limites do que ficou conhecido como  pertencimento às artes como pintura ou escultura. Conquanto, aqui estamos diante de uma obra em que quase nada se encontra  em estado puro, detendo apenas ícones, sinais e emblemas concernentes a  cada uma das chamadas “belas artes”. Estamos no século XXI: essa  categorização dizia respeito a condições sociais da aristocracia e da Igreja  Católica, com o intuito de marcar diferença, de afirmar sua superioridade, de  falar de um pertencimento que não dizia respeito às classes dominadas. O artista Fábio Di Ojuara é considerado escultor, mas acredito que isso diz  pouco de sua obra multifacetada, centrada em uma determinação de superar  o que outrora houvera, lançando seus vetores com vibrações estéticas  subliminares para outras áreas, em uma tentativa de descobrir formas  diferentes de arte. O convite para residir na Áustria, por alguns meses do ano,  deve-se certamente a esse caráter experimental do temperamento e da obra  do artista. Dito isso, faz-nos relembrar uma passagem de Morte e Vida  Severina. 

- Belo porque tem do novo 

 a surpresa e a alegria.

- Belo como a coisa nova 

 na prateleira até então vazia. 

- Como qualquer coisa nova 

 inaugurando o seu dia. 

- Ou como caderno novo 

 quando a gente o principia. 

João Cabral de Melo Neto 

Assim sendo, o artista lida bem com qualquer sistema semiótico, sobretudo  buscando, através de uma inquietação permanente, os domínios  desconhecidos. Adentra por meio da experimentação, mesclando material  reciclado, testando materiais para ver como ficam, inaugurando e  incorporando à realidade outra proposta de dizer, ser, ver, fazer. Como se fosse uma reeducação dos sentidos, reinventa e alarga as formas de  contemplar, ampliando sem preconceitos novos objetos acrescentados à  realidade, que irão questionar o existente, quedado inerte na concretude dos  dias, imóvel. Essa realidade só se altera quando é conveniente aos donos do  poder, que criam as leis e estabelecem a vigilância e a punição. A realidade, o cotidiano, com seus horários e relógios marcando as cobranças  instituídas na ampulheta da hipocrisia, escorre como areia de um mundo  dominado por discursos não condizentes com as formas nas quais  enfrentamos as vicissitudes.

Não se fala do abandono, das lacunas, chegadas  como cartas que apenas ostentam nosso endereço. Não existe emissor nessas  cartas sempre registradas. Sua técnica de trabalho, contemplando todo e qualquer material já usado ou  reciclado, desde a madeira, metais, papel, permite um trânsito e um câmbio  por suportes vários. Refrata, ainda que não totalmente, a matéria-prima e  seus suportes, detentores de convenções desde sempre integrantes dos  movimentos da arte. 

3. Há uma série de trabalhos tridimensionais, confeccionados em chapas de  alumínio derramado por meio da fundição, plasmados em uma oficina da  Áustria. O alumínio fundido é despejado sobre suportes negros, causando  um efeito de rara beleza. A ausência de uma forma figurativa, baseada nos  objetos do nosso entorno, torna-se impossível de encontrar no plano do real, quedando-se como obra de arte a questionar se o real concreto é mesmo um  espaço com gramática fechada, normativa, não permitindo o acréscimo de  outros elementos. A cor dourada é alcançada através de flambagem, ou seja,  uma pintura que recebe uma queima, tornando-se diferente da cor prata do  alumínio. 

 Sobre o suporte negro, formas verticais parecem exaltar uma busca  impossível de modificar o que já está dado, pois não passam de alumínio  fundido. Proclamam o que era líquido e veio a ser sólido, despejado  aleatoriamente no ato de derramar sobre a placa negra. Parece dizer que, diante dos nossos entraves com a realidade, via de regra  não detemos o domínio da força das coisas. A verdade é que só podemos nos  adaptar ou efetivar arrodeios, buscando outros caminhos que nos conduzam  ao nosso foco, ao que desejamos realizar. É curioso que essas formas de  alumínio ondulam, através de uma geometria em curvas, sugerindo o tempo  em círculos, buscando um ponto no qual haja contato, feche um ciclo. Ora, a menor distância entre dois pontos é uma reta. Mas todo mundo sabe  que a vida não oferta nada de graça. As estradas são cheias de curvas, a poeira  se ergue tapando nossa visão, obrigando a uma marcha sempre mais lenta, à  medida em que Cronos vai atualizando nossa idade (depois dos 40, vem 50?  Nunca! Pule logo para os 62). Só por uma percepção ilusória o tempo é  mensurado de maneira linear (15h, 16h, 17h). O filósofo francês Henri Bergson (1859–1941) dedicou parte de sua obra a  repensar os elementos e categorias referentes ao tempo, questionando nossas  percepções acerca de Cronos e sua pressa de chegar a um fim que todos  sabemos onde vai dar. Para o filósofo, além de termos o chamado tempo  físico, que pode ser submetido à ciência com seu aparelhamento, permitindo nos calcular e analisar, esse tempo se configura como quantitativo, haja vista  a alternância das estações presentes todo ano, com sua inevitabilidade. Conquanto, essa forma do tempo pode ser submetida aos carrilhões nas  paredes ou ao relógio de pulso (analógico ou digital). Para Bergson, há outra  forma de sentir o tempo: através dos sentidos, da intuição, de mecanismos  vários que mudam de pessoa para pessoa. Este tempo é o que nos imprime o  viver, cognominado durée (duração). As horas físicas submetem-se a como  sentimos o passar. Desse modo, uma hora física pode durar cinco horas, a depender do estado emocional, do que aguardamos, da paciência ou  impaciência. É difícil compreender, haja vista que ele é qualitativo. Nossos caminhos, nossa trajetória de vida, não seguem um curso reto, mas  estão plenos de meandros, hiatos, lacunas, passadiços, encruzilhadas. Isso é  o que conhecemos como condição humana. Mais cedo ou mais tarde iremos  sentir o que provou o jovem príncipe Sidarta Guatama: guardado pelo pai  dentro do palácio para não conhecer a dor provocada pela realidade, um dia  encontrou o portão aberto e deparou-se com um velho (envelhecemos), um  enfermo (adoecemos), um cortejo conduzindo um morto (morremos). E se o que pertence à nossa trajetória de vida não for de necessidade utilitária  ou funcional, mas diga respeito à busca de equilibrar sistemas do nosso  âmago, de uma desarmonia consigo mesmo, de uma inimizade, de uma não  aceitação do próprio corpo ou de pertencer às classes modestas, a cada um  compete dar sua resposta. Acredito que aceitar nossas limitações através de  atitudes resilientes parece mais sensato, pois não podemos fazer juízo de  valor sobre nossos semelhantes (é sempre bom aparar a língua). Afinal,  “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Gal Costa). Enfim, em síntese, depois dessa digressão: o certo é que a forma no negro do  suporte permanecerá estática, indiferente às nossas insistências. E, sobretudo, por se tratar de alumínio, sempre será sólido, pois é um metal  abundante no planeta Terra, detentor de enorme resistência à corrosão.  Nunca se encontra em estado puro, é extraído da bauxita. Acredito que essa  série de três variações sobre o mesmo tema resguarda uma metáfora da  condição humana e das suas inevitabilidades e impossibilidades de alterar  um conjunto de coisas. 

4. Ora, não é justamente esse o papel da arte? Proclamar uma possibilidade de  haver outras formas de pensar, sentir e agir, bem como organizar materiais  que não digam respeito ao chamado mundo real. Mesmo se tratando de um  questionamento através da confecção de outros objetos destoantes do que  fomos acostumados a usar como espécie de moeda de troca nas relações  sociais e nos relacionamentos interpessoais, de natureza mais próxima, mais  íntima. 

Esses costumes tornam-se hábitos que nos impelem e requerem,  engendrando uma expectativa de que nos comportemos não de uma maneira, mas de outra mais condizente com aquilo que chamam de “normal”. Essas  expectativas, por parte de quem educa, fundam uma pessoa, um homem, uma  mulher. Enfim, ao vivenciar com formas que se vão gestando durante o  processo de educação de uma criança. Essas maneiras de perceber a realidade são repassadas pelo aprendizado da  linguagem, que nunca é inocente. Na verdade, já traz no seu bojo, nas letras,  nas sílabas e nas palavras, discursos que passam inconscientemente,  organizando determinadas formas de comportamento. O que ocorre são  signos partilhados por todos, sobretudo os que dizem respeito às classes  dominantes, com seu simulacro de inocência e hipocrisia. 

Voltemos ao Fábio Di Ojuara escultor.  

Em um parque de uma cidade austríaca há uma escultura sua, representando  um cavalo-marinho. Chama atenção por sua beleza plástica, com uma  elegância estética que o mantém ereto, como os cavalos-marinhos que nadam  na vertical. Não se perdeu, na escultura, essa característica: nadar ereto, com  paciência e persistência diante das vicissitudes, adaptando-se às  adversidades. 

5. Por fim, vejamos o que se constitui como sintoma dessa recorrência do peixe  e do cavalo-marinho no conjunto da obra de Fábio de Ojuara. Esses animais  da água, no contexto do seu trabalho, são menos do que imagens a serem  retratadas. Quero dizer: são estruturas antropológicas do Imaginário (Gilbert  Durand), que chegam como imagens vindas do âmago do artista, das regiões  mais profundas, do pelágico, onde as sombras resguardam o mais secreto da  gente. Para o artista, o inconsciente, liberando as imagens, segue um devir  de plasmar em arte, em peixes, em cavalos-marinhos. Podemos atestar duas imagens recorrentes no conjunto da sua obra: o peixe  e o cavalo-marinho. 

Com efeito, quando do uso da acrílica sobre tela, estão  no centro da composição, projetados sobre diversos planos de fundo. Eis que  surge um cavalo-marinho azul, com finos fios que saem do seu corpo e  terminam em círculos pintados de vermelho intenso. O resultado cromático,  entre cores fortes, clama pela empatia de quem contempla. Os peixes podem aparecer inteiros ou fragmentados, alguns suspensos como  se estivessem sobre uma vegetação do fundo do mar. Parece que o artista não  se cansa de tratar o mesmo tema a partir de um leque de cores. A paleta é  vasta, em contrastes que circundam as partes dos peixes, fragmentados ou  inteiriços. Podemos apontar a presença do peixe em diversas séries, sendo o referente (tema) que mais desponta nas suas telas. Desse modo, podemos falar em  variações sobre o mesmo tema. A criatividade do artista, no manuseio de  uma multiplicidade de cores, possibilita tratar desse desenho de um animal  constituído apenas de dois arcos superpostos, resultando em um traço  extremamente simples de lidar. Em seguida, faz uso de uma paleta na qual todas as cores estão presentes. A  coleção de cores é vasta, muitas vezes antípodas, em contrastes cromáticos  que circundam o espaço no qual a figura é ressaltada, quer seja fragmentada  ou inteira. No que concerne à simbólica do peixe, foi um dos primeiros e principais  ícones relacionados aos primórdios do Cristianismo, pois a palavra PEIXE  (ICHTHYS (acrônimo cristão antigo); em grego: IΧΘΥΣ, deve ser lida  usando a primeira letra: Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. I X Θ Y Σ I CH TH Y S 

O peixe resguarda a capacidade de mergulhar e navegar através de águas  profundas, representativas do inconsciente, sendo o que nos confere  humanidade. Nessas regiões abissais, não temos o mesmo acesso que o peixe  detém como atributo de sua natureza. Com essa amplitude de atingir o  invisível, às regiões cujos domínios pertencem ao imaginário, ao que  concerne mais aos sentimentos, como a intuição e a sabedoria, o peixe nos  convida a inquirir o lado oculto da psiqué. De outra parte, alguns peixes,  como as carpas, efetuam seu nado contra a corrente, simbolizando a  superação de obstáculos ou dissabores trazidos pelo estar no mundo.  Conclama à perseverança e à necessidade de fechar ciclos e abrir outros. Com relação ao cavalo-marinho, suas estações simbólicas parecem mais  evidentes, já que seu próprio modus vivendi encontra-se vinculado à sua  maneira de se locomover com calma e paciência. Por serem animais monogâmicos, representam fidelidade, lealdade e proteção ao seu par.  Também, assim como o peixe, estão associados à calma e à perseverança  quando em águas agitadas, permanecendo tranquilos e resguardando a  insistência em seu objetivo. Ou seja, constituem-se como um temperamento  perseverante. 

6. Por fim, resta admitir minha admiração a um artista visual como Fábio de  Ojuara que, através de uma rara simplicidade de meios, logrou êxito em  modelar, com poucos elementos, uma obra de grande envergadura e beleza  plástica. Não se pode esquecer de mencionar sua alquimia estética, detentora  de uma frágua que queima com labaredas ardentes determinadas formas de  ser e estar da sociedade contemporânea. Ou seja, é uma crítica, direta ou  velada, ao nosso tempo marcado pelo comportamento narcísico, eivado de  simulacro, culto às aparências e infantilidade. A parcimônia de formas e cores é bastante difícil de se atingir em objetos de  arte. O nosso alquimista-maior filia-se a um minimalismo presente na arte  contemporânea. Basta ver a arquitetura dos dias de hoje: com o uso de  poucos meios, cimento armado, madeira e plantas, compõe-se um bloco uno  em seu despojamento de ornamentos, mais de acordo com o Ar do Tempo (Espírito da Época). Os bons arquitetos modelam uma bela casa. Entende-se  como uma tendência antibarroca, procurando configurar formas  representativas de um viver mais simples, sem dar muito trabalho e sem  implicar grande emprego de tempo na sua conservação. Dissemos isso acerca da arquitetura para melhor esclarecer em que tradição  nosso artista inscreve sua rubrica, desenha seu nome e firma-se como um dos  nossos mais importantes artistas visuais, com seu caráter pansemiótico, sua  simplicidade de comportamento e sua projeção para outros países. Construiu  uma obra de grande universalidade. O seu sucesso fala por si. Assim como o  peixe, sua inquietude o conduziu a navegar pelos meandros do grande rio  que é a vida. Como o cavalo-marinho, nadou em águas turbulentas, mas foi  perseverante. O resultado de tudo isso foi levar fé no que fazia, acreditando  e se garantindo como um assinalado da arte.


quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Especial: Isaías Medeiros: consciência e reflexão do fazer artístico

Por:  Márcio de Lima Dantas.

O pássaro é definitivo 

por isso não o procuremos 

 ele nos elegerá. 

Orides Fontela


 

1. 

Isaías Medeiros (Mossoró, RN, 1994). Acredito que seria injusto deixar de  falar de Pe. Sátiro e sua importância na formação do nosso artista. O  sacerdote edificou no bairro Dom Jaime Câmara, onde sempre residiu, uma  série de empreitadas que o tornou bastante querido pelo pessoal habitante  dessa área de Mossoró. Seu trabalho era com a FUNCERN (Fundação Socio Educativa do Rio Grande do Norte). Foi de grande importância esse trabalho social. Podemos arrolar, dentre  outros, a Gruta de Santa Clara, a Creche Erondina Cavalcanti, a Escola Padre  Sátiro (onde o artista estudou durante sua infância e adolescência), a  Biblioteca Dorian Jorge Freire, a FM 105 e o Mosteiro de Santa Clara. A trajetória como artista é bastante singular. No ano de 2015, cursava Letras  na UERN. Em 2017, realizou sua primeira individual exposição: Barroco  tropical: fiesta de colores. Fez um curso com o renomado artista Careca, na  Escola de Artes. Ainda em 2017, realizou outra exposição, celebrando os 50  anos do Tropicalismo, que ficou em cartaz até 2018. Explorou a figura de  Frida Kahlo em 2023. No mesmo ano, fruto de uma viagem a Salvador, realizou uma de suas mais  importantes exposições: “Ori”, em aquarela e caneta nanquim. Segundo o  artista: “Sua trajetória técnica acompanhou seu percurso de vida: começou  com lápis de cor, passou pela pintura em tecido, pela tinta acrílica, pela tinta  a óleo, aproximou-se da aquarela e hoje trabalha principalmente com  acrílica, técnica que lhe oferece a intensidade, a textura e a liberdade  expressiva que sua obra busca revelar”. Com efeito, sua relação com a arte foi bastante precoce, instalando-se desde  a infância, quando, aos oito anos, participou de atividades sociais do bairro  em uma ONG, onde teve as primeiras lições com o artista Altemir (“Fogo”).  Nesse contexto, aprendeu o básico sobre os materiais e técnicas, mas, após o encerramento, passou a desenvolver seu trabalho sozinho, explorando  possibilidades e encontrando sua via ao encontro do que latejava em seu  íntimo. Ainda jovem, iniciou o trabalho com camisas pintadas à mão, que  acabaram sendo suas primeiras experiências artísticas autorais. A última série encontra-se exposta no Museu Lauro da Escóssia: A paleta  mossoroense. Cada série é condizente com o contexto de sua vida e do que  está passando em seu íntimo. É uma espécie de sintoma de estruturas mentais  que não apenas se organizam, mas buscam emergir em categorias  expressionais no qual o artista formata por meio de um desenho e seleciona  a técnica mais condizente com essas imagens querendo vir à tona. Só pode ser um temperamento humilde com relação ao saber: sai em busca  de estabelecer relações e articular novos saberes. Cada viagem que faz  incorpora novos conhecimentos, aprimorando suas técnicas a partir do que  contemplou em artistas que fazem diferente. 

Sucede, desse modo, uma ampliação de horizontes, a partir de ícones vistos  e refletidos durante uma estadia em qualquer lugar. É uma mente aberta ao  novo e às suas eventuais possibilidades. Isso explica que, encontrando-se  sempre inquieto, esse desassossego benfazejo acaba por conduzi-lo a  aprimorar e palmilhar veredas novas, mexendo com uma coisa ou outra.  Basta ver que sempre realiza exposições. 

2. 

Isaías Medeiros domina um discurso sobre si mesmo e sobre sua elaboração  de produtos estéticos. É difícil encontrar essa consciência no meio artístico,  do emprego dos meios de que faz uso, estabelecendo uma relação com sua  trajetória de vida. Está presente a razão. Quando se pensa em arte, evoca-se  de imediato o sentimento, a emoção para se autoanalisar e se interpretar.  Mais ainda, remete o tempo inteiro à sua psiqué, de quem já nasceu  assinalado para ser artista visual. Creio que, mesmo na infância, já havia  esboços de uma consciência que o lançava para os domínios concernentes às  coisas do espírito. Discorre com grande propriedade acerca do que faz, do como faz,  impregnando as séries de um discurso translúcido e dotado de conhecimento  teórico, histórico e estético. Nada seu é gratuito, mas o resultado de uma  pesquisa. Creio que é assim o legítimo artista. É óbvio que tudo germina nos  recônditos do espírito: uma palavra, uma imagem, uma visita a uma exposição, ou seja, através do que já conhece acerca de como funcionam as  técnicas, a paleta, o tipo de pincel empregado. Surge como luz que aumenta sua intensidade, como um sol que nascendo quando a alba desfalece, atenua o limite entre a madrugada e a chegada dos  cavalos de fogo de Apolo, rompendo a leste a linha do horizonte, aportando  o dia com seu intenso sol brilhante, dizendo de mais uma jornada plena de  trabalhos, de labuta edificante. Isso mesmo, de uma rotina que detém a promessa do previsível, instalando se para confirmar que estamos vivos e com desenvoltura para exercer nosso  meio de vida e ainda acrescentar, através de determinada expressão, o que  requer feitura e nossa rubrica, perfazendo um arco vergado acompanhando  as horas por meio da posição do sol. Esse cotidiano, além da sua expectativa, chega cercado por uma aura com  nosso domínio e responsabilidades. Para o artista, é realizar seu expediente  no qual exerce seu ofício (professor de artes no SESC) e, em seguida,  dedicar-se, no tempo que resta, à sua arte, quer seja pintura ou outra forma  de arte visual. Pelo que relatou e escreveu a seu respeito, impele-nos a considerá-lo como  um temperamento apolíneo, vinculado ao regime diurno da imagem (Gilbert  Durand), o qual se compraz com o dia. Desperta nas primeiras horas para  deixar o dia mais comprido, estirando a pele de uma jornada que sempre  deixa coisas pendentes, devido às poucas horas para dar conta de tudo. Creio  que nisso se resguarda uma grande beleza com relação ao carpe diem. Conquanto, temos que aproveitar o dia, alimentando-nos de positividade,  criando ânimo para viver e para elaborar nossos trabalhos, engendrando  tratados consigo mesmo. Por fim, lançando energias de assertividade, de  cunho luminoso, para os labirintos internos que estão presentes em nosso  íntimo, pulsando como coisa viva, plenos de ícones, sinais e marcas de uma  memória, de nossa identidade, de geometrias de pertencimento. Não é isso que nos outorga alento ao viver? Aos sentimentos que geram uma  personalidade, capaz de deixar um lastro de algo edificante e que torna o  mundo um pouco melhor; no caso desse artista, seriam as e pinturas que  nomeiam e constroem uma outra realidade para adicionar à que já estamos  acostumados e nem sempre aceitamos. Sua disposição física no espaço é algo que transmite ânimo de viver, uma  energia vital bastante acesa e acentuada. Seu corpo hirsuto, longilíneo,  queda-se em uma desenvoltura provida de grande naturalidade, de quem se  garante no que faz. Passa a assertividade daquele tipo de pessoa que nada  deve a ninguém. Antípodas ao corpo retesado, as mãos realizam movimentos  com os dedos, como se estivessem buscando se fazer entender, como se  falassem de maneira didática, visando despertar uma empatia com o  interlocutor. Esse corpo estacado evoca o arquétipo presente em D. Quixote de La  Mancha, com todo o seu ímpeto de comportamento e pensar voltados para o  alto, para onde repousa a imaginação, para o que prefere deixar o real  concreto de lado, para um azul representante do que outorga e autoriza a seus  oráculos interiores a buscar respostas do que inquieta, do que se abriu como  fresta no espírito. Afinal, qual o motivo de tantos hiatos, de tantas lacunas?  O que sou eu? Quem sou eu? 

3. 

Vejamos sua série mais importante e mais madura do ponto de vista estético.  Quando viajava para Salvador, durante o percurso, imagens involuntárias  povoavam sua cabeça, evocando quase sempre a imagem recorrente de uma  sereia. Também não sabia o motivo, nem como chegara para chafurdar em  seu íntimo. Bem, se foi. Na capital da Bahia, empreendeu visitas a muitos  lugares relacionados à nossa cultura. Então, em uma visita ao Memorial Mãe Menininha do Gantois (antigo  Terreiro Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê), atento a tudo, não deixou passar nada  acerca da mitologia que serve de lastro e funciona como culto religioso,  regendo os rituais do Candomblé, sobretudo os do Gantois. Esteve à frente  por 66 anos a Maria Escolástica da Conceição Nazaré, a célebre Mãe  Menininha. A exposição intitulada Ori (“cabeça”, em iorubá) ocorreu em 2023. São 15  trabalhos em aquarela. Nela o artista respondendo a essa técnica de pintar,  não muito fácil, na medida em que deve haver agilidade, rapidez e esmero  nas pinceladas, escandindo uma cadência, um ritmo para a compreensão de  como o tempo funciona em uma tinta à base de água e em papel de maior  gramatura. A exposição, além da representação estética dos mitos, das chamadas  entidades do Candomblé e de seus orixás, resguarda uma pegada de  informação cultural acerca do que é essa manifestação religiosa. Inicialmente  houve um vernissage Mont petit, com café e livros. Houve também a mesma  exposição na Sala Joseph Boulier, no Memorial da Resistência. 

4. 

Há que apresentar o Candomblé. Diferente das religiões cristãs, cujo culto é  marcado pela melancolia, pelo sentimento do pecado, pela autopunição, em  que a dor e o sofrimento funcionam como se fossem um bilhete para a  entrada nas regiões celestiais. O Candomblé de matriz afro-brasileira exalta  uma alegria com hieratismo: durante o culto, dançam e cantam no ritmo do  atabaque e de outros instrumentos, com respeito e graça. Com efeito, os orixás não habitam uma cabeça desequilibrada, uma mente  desassossegada em demasia. Faz-se necessário deixar-se guiar por bons  pensamentos e boas vibrações nas atitudes e nos atos requeridos no  cotidiano. “Ori”, a cabeça, sintomaticamente a parte mais alta do corpo, se  conecta com o sagrado, lançando seus vetores vibracionais para se articular  com as forças físicas do bem. Eis alguns exemplos de orixás: Oxum, Ogum,  Iemanjá, Oxalá, Iansã-Oyá, Xangô, Oxumarê, Obaluaê-Omolu, Exu. A  curadoria da exposição foi de Jamira Lopes, com 15 obras aquareladas sobre  papel Canson. Acontece que, com Isaías Medeiros, ocorreu uma ressignificação da forma  como representou os orixás. Não da maneira ataviada e um tanto barroca  como fomos acostumados a ver. O artista optou por uma economia de meios,  um minimalismo que teve seu aliado no desenho, bem diferente de outros  trabalhos seus, nos quais a cor suplanta o desenho, fazendo-se senhora do  lugar. O desenho desponta como o que confere um delineamento do todo e das  partes dos orixás. Acompanha todos os detalhes presentes na configuração  do corpo, feito a partir de lápis e caneta nanquim, fazendo aparecer os  atributos que dizem respeito aos representantes máximos dessa religião. A cor encontra-se presente, caudatária do desenho. Essa maneira de  organizar um trabalho estético com aquarela e desenho aparente não é muito  comum. Quase sempre a aquarela aparece em uma intacta transparência de  cores e sombras, conformando a paisagem ou uma pintura de caráter mais íntimo. Não esquecer que essa técnica, basicamente, é de caráter solar, com  aproveitamento da luz e de suas possibilidades. Entretanto, também é  possível fazer uso dela não como secundária, mas com manuseio  parcimonioso. É o caso das explanações de Isaías Medeiros: fez uso de  maneira comedida, precisa e de grande beleza plástica, usando poucos  elementos para configurar as vestimentas e o movimento de todos os 15  trabalhos. Todos os orixás detêm um olho fechado: no lugar de um olho encontra-se  um espaço negro. Isso é bastante significativo no contexto de uma  representação diferente da que fomos acostumados a ver. O olho aberto  contempla a realidade e o seu derredor, em uma atitude de observar a  gramática da vida social, determinando o comportamento de seguir as regras  do bem viver e de uma volta para lidar somente com o bem. Assim como  toda religião, existe o resguardo de preceitos visando ao ser e ao estar em  permanente sintonia com as forças da natureza, encarnadas nos orixás. O olho fechado volta-se para o interior, buscando mapear seus sentimentos  e o que de inconveniente ou de mal possa ser extraído, outorgando à pessoa  uma possibilidade de ser melhor como gente face a seu semelhante; em um  estar no mundo, procurando sempre palmilhar as veredas nas quais o sensato,  o exercício diário de bons pensamentos se reveste da maior importância, na  medida em que prende os maus pensamentos e ordena-os, em uma atitude de  insubmissão perante o que existe de sombrio nos lugares abscônditos do  nosso interior. 

5. 

Por fim, é preciso trazer as quatro telas representando a amada e reverenciada  Santa Luzia, padroeira da cidade, sede de bispado (saudosos e queridos  bispos: D. Gentil Dinis Barreto e D. Freire), junto com Caicó e Natal. Santa Luzia (“luz”) foi uma mártir do século III. Representa a visão, a  luminosidade e tudo o que se relaciona ou necessita da clareza. Encontra-se  vinculada aos ofícios que exigem uma visão mais aprimorada, como as  costureiras, ou profissões que lidam com coisas miúdas, precisando ter uma  visão mais esmerada. Seus atributos são a folha de palmeira dos mártires e  uma bandeja com os olhos. Nasceu em Siracusa, Itália. Isaías Medeiros ungiu-se de grande liberdade estilística para compor seus  quatro ícones de Santa Luzia. O primeiro apresenta a imagem com apenas um olho, elaborada com lápis nanquim e aquarela. O desenho é inquieto no  branco do papel, com predominância de linhas curvas. Dispõe das cores  atributos desse ícone: vermelho e verde. O traço é ágil, minimalista, apenas  sugere a imagem para quem está familiarizado (os mossoroenses) com essa  representação. A segunda tela centra a imagem rodeada por um círculo amarelo ao fundo,  salientando a figura principal, com um resplendor. Para um lado e para outro,  palmeiras adornam a presença da mártir e três chananas separam o verde das  palmeiras. A tela perfaz uma simetria bilateral. No primeiro plano, bem  próximo do espectador, dois triângulos representam as belas salinas de Areia  Branca e Macau. Na metade esquerda, um galo-de-campina, uma coroa-de frade e uma bromélia florida, plantas das regiões xerófilas do semiárido  nordestino. A terceira é uma homenagem à festa de Santa Luzia, com grande  ajuntamento de pessoas vindas de regiões circunvizinhas. A imagem que o  artista apresenta não é a tradicional, mas a escultura de madeira da santa,  com seu resplendor de ouro, depositada na sacristia, antiga e original.  Encontra-se ataviada de azul, vermelho e amarelo. 

A catedral, ao fundo, referenda a festa animada, com forte pegada pagã nas  ruas que a circundam: mesas para bebidas e comidas. O que foge a esse  espírito de animação nada religioso é a procissão. Com efeito, um enorme cortejo, uma multidão acompanha o andor de Santa  Luzia. Grande parte está pagando promessas relativas a problemas com os  olhos ou a visão; alguns seguem de pés descalços. Não há como deixar de  admirar essa beleza, do que segue tranquilo por algumas ruas em torno da  Praça Vigário Antônio Joaquim. A imagem encontra-se circundada por uma  coroa de rosas vermelhas e brancas, alternadas. No lado esquerdo, sobressai  uma mão com um terço e duas fitas, vermelha e azul, amarradas no punho;  do lado direito, outra mão com uma vela, representando a luz que emana  dessa santa. A quarta tela é de grande beleza cromática. Um olho que se encontra na mão  da imagem, como um redemoinho azul, parte da imagem da sacristia,  rodeando-a de um azul com riscos brancos, como se quisesse apresentar a  figura. A tela quase se aproxima de uma simetria radial. Junto ao azul, temos  o verde. Justaposto a este, o vermelho. Nesse mundo turvado e de tanta coisa feia, mormente na moda, em que as pessoas estão cada vez mais  amarmotadas, vamos rogar ao mito de Santa Luzia que nos dê uma visão  seletiva, bem como um aprimoramento da visão periférica, para nos  defender.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Especial: César Revorêdo: história íntima da solitude

 Por Márcio de Lima Dantas 

O fim 

limite íntimo 

 nada é além de si mesmo 

ponto último. 

Orides Fontela 

1. Prelúdio 

Essa nova série do artista visual Cesar Revorêdo apresentou-se em duas  exposições individuais: Alma Mater (2024, no seu ateliê, que também abriga  sua própria galeria: Cesar Revorêdo: Gabinete de Arte) e Todas as mulheres  do mundo (São Miguel do Gostoso), que entregam sua proposta de tratar de  uma condição concernente ao ser humano: a solidão e os diversos modos de  abordá-la, a partir do momento em que somos direta ou indiretamente  arredados para esse estado que integra a condição de todo ser. 

Destacando a mulher como ícone, esse espaço nos conduz a refletir sobre um  dos dois recursos presentes na linguagem: a metonímia, integrante dos dois  eixos que estruturam a linguagem (Ferdinand de Saussure). Esse eixo é o da  combinação (horizontal), distinto do eixo paradigmático, que diz respeito à  seleção (vertical). 

Consabido é que a metonímia requer uma relação objetiva entre as duas  partes que se aproximam para comparar, para colocar uma coisa no lugar da  outra. Dessarte, a metáfora é calcada no livre-arbítrio de quem elabora. Ou  seja, não há necessidade de interpor entre as duas partes comparativas uma  relação de pertença, é pura analogia, haja vista o que o Surrealismo de  Salvador Dalí conseguiu engendrar com total liberdade o fato de colocar em  uma tela o que quer que fosse: triunfo e bom uso da metáfora. 

Voltando às mulheres. Sim, é bom dizer que o corpus por nós manuseado,  para efeito de extrair possíveis significados, foi somente treze telas  apresentadas por Cesar Revorêdo. A mulher nessa série, protagonizando uma 

imagética na qual se encontra só e sem rosto, nos permite evocar que ela é  uma metonímia do ser humano. Sua aura e os poucos elementos  circundantes, em um excelso minimalismo difícil de alcançar em arte,  constroem um discurso de uma representação da parte pelo todo. 

Com efeito, essa aludida solidão não diz respeito somente ao feminino, pois podemos pensar em um grande círculo capaz de agregar toda uma sorte de  singularidades de gêneros. Há que pensar em um “nós”, para que o círculo  retesse seu perímetro, e considerar que, um dia ou outro, a depender da  Fortuna ou de Cronos, cada um haverá de provar do travo amargo dessa raiz.  Ela que lança muitos a negociar todas as boas cartas dos naipes de ouros ou  de paus, em função de nunca estar só, nunca estar sozinho, nunca quitar as  dívidas consigo mesmo. 

E, daí por diante, incorporar uma outra pele, marcada por estar diante de si  sem as interpelações do entorno, do discurso alheio, dos chavões tediosos  das falas familiares. 

2. Interlúdio 

As telas registram a mulher com uma parcimônia de formas e um  minimalismo cromático, margeando uma só personagem retratada: um  personagem feminino sem o traço de olhos e bocas, configurando um  semblante com uma expressividade que se bandeia para as fronteiras dos  domínios de, até certo ponto, um hieratismo e uma subjetividade voltada à  introspecção. 

O talhe longilíneo parece querer falar de um corpo, resultado de múltiplas  experiências vivenciais. Há um silêncio presente, tal qual uma necessidade,  no resguardo da verticalidade corporal (evoco aqui o arquétipo presente nos  personagens de Dom Quixote de La Mancha), embora não se possa  considerar como regra geral. A obra é prosa? É ficção: o biótipo esguio do  Quixote, lançando-se mais para o alto, congrega as pessoas mais afeitas à  imaginação, à inventividade, distanciando-se do real empírico. Sancho  Pança, no seu jumento, olhando para o chão, resguarda um biótipo mais  atarracado, parrudo e preso às leis da razão, do sensato, questionando o  excesso de imaginação. 

Ainda as mulheres. Elas estão vestidas com indumentárias de cores vivas,  como o verde-escuro, o azul-real, o laranja e o preto. A luz emana, parece,  da própria personagem, em uma atmosfera circundada sempre por um 

retângulo na vertical. Aquela encontra-se no centro da cena. Defronte de si,  uma cadeira bastante simples, sem o conforto de um sofá, sugere o hábito de  estar acostumada a se amoldar em tudo o que lhe chega à frente, bem como  o merecido descanso momentâneo para refratar a fadiga, inerente aos seres  humanos com maior autonomia subjetiva. 

Toda a aura que arrodeia a cena é como se o aludido “nós” passasse a viver  e ocupar seu tempo através de sua própria luz. Uma espécie de sol íntimo a  iluminar apenas o essencial, o parco, o suficiente de um espaço conseguido  não sem luta: consigo e com as regras sociais. 

Há duas outras coisas que esqueci de enumerar dos elementos da composição  de algumas telas: uma bicicleta e os gatos. A bicicleta, sem a garupa, terá  sido acidental, com o selim e uma cesta na frente do guidão? Ou quer insinuar  que só cabe uma pessoa, um “nós” sem criança ou adulto para conduzir ou  ser conduzido. 

Com relação aos gatos, em uma tela aparecem dois, em outras apenas um.  Insisto ainda na incerta adoção de algum animal... pode ser um sintoma. Os  gatos são silenciosos, quietos, independentes... diferentes dos cães, com sua  insistente busca de atenção, guarida, ordens, cumplicidade. Há quem deteste  cachorros. 

Consabida é a grande quantidade de casas de pets na paisagem das ruas.  Basta prestar atenção: a mesma coisa acontece com lojas de aparelhos para  audição. O que está acontecendo para que haja tal demanda? Aspiremos com  profundidade o Ar do Tempo (Espírito da Época). Só assim a paisagem se  desnuda com seus símbolos, plenos de veias que latejam um discurso a ser  decodificado por quem gosta de mirar com ironia o desmantelo de uma  sociedade completamente irrecuperável, caminhando por veredas equívocas. 

Todo animal em casa conduz o tutor ao domínio sobre o bicho. Com sua voz  ativa, a criatura reconhece como seu proprietário obedece à assertividade,  acostuma-se com a voz. Por outro lado, é mais fácil conviver com animais  do que com gente. Conheço gente que é insuportável como amigo, com suas  indiretas e insinuações infantis, mas é este mesmo que adotou doze gatos,  que ficam por todo canto da casa e dormem na cama com ele. 

Seguindo essa linha de raciocínio, somos conduzidos a refletir acerca de uma  solidão lancinante. Não uma solidão por causa de uma perda, menos ainda a  intensidade de uma solidão cruel, mas uma dificuldade de estabelecer um  relacionamento interpessoal com o mínimo de etiqueta, educação e o sempre  bem-vindo pudor.

Contudo, quero exaltar e exultar um estado de solitude alcançado por meio  de exercícios mentais nos quais se apela para a razão, no embate com a  experimentação do chamado real concreto. A desdita de uma solidão opaca  foi superada. Signo do infortúnio para todos que estão encenando no grande  palco do mundo, com seu cotidiano pleno de rotinas. No mau sentido, pois a  rotina libera um estar presente no dia a dia, com seus relacionamentos  fraternos ou íntimos eivados de palavras por dizer, de ações mal feitas, de  pouco ânimo para a vida e para o que chamam de felicidade. 

Ora, quando se fala de rotina, há que evocar outra espécie de pessoa: os  artistas, os cientistas ou aqueles que amam seu trabalho. É claro que o  cotidiano, com sua previsibilidade, se faz necessário, dado o fato de ser um  assinalado para aquele ofício ou ocupação principal personalizada. Nada  melhor do que despertar sabendo o que vai fazer das horas em sua escansão  pré-determinada. Se Cronos caminha com largas passadas, devorando tudo  o que for vivo e lateja, então é preciso atalhar até certo ponto, já que não podemos apostrofar ou evitar esse ritmo de pressa. 

Porém, existe essa possibilidade, essa alternativa, face aos infortúnios  cravados pelas deusas do destino, as implacáveis Parcas. Até os deuses da  antiga Grécia estavam subordinados às três: Cloto, Láquesis e Átropos.  Sempre fiando e tecendo o fio da vida, uma labuta sem fim, até chegar a hora  de cada um, encerrando a encenação no palco da vida. Essas três pouco se  importam com quem conduz bom ânimo ou com quem vive sem apego à  vida. Apenas algo que é inerente a todos: cansa-me ser (Orides Fontela). 

3. Toccata and fugue  

Por fim, através de expedientes das áreas subjetivas, habitadas nos distritos  onde jaz tudo o que é sombra, de tudo o que é surdamente agressivo, de tudo  que risca no caderno tendo seus vocabulários próprios de defesa. Nessas  planícies nas quais encontram-se as fortificações da cidadela do próprio  corpo, como também os fármacos presentes em qualquer constituição física  (o corpo detém mecanismos intrínsecos de operar ou superar qualquer  enfermidade: mental ou física). 

Se a gramática é essa, o sujeito/a escolhe esgueirar-se, saindo ou se  afastando, fortalecendo seu amor próprio, sem que o outro perceba o que se  organiza contra quem está do lado. Desse modo, implementa-se um processo 

de lenta autossabotagem: o que interessa é fomentar a desdita e,  silenciosamente, anular o que fora paixão ou amizade (Eros: amor com  contato íntimo; Philia: amor do companheirismo, amizade, fraternal). 

A bem da verdade, não há quem suporte um relacionamento mórbido, pleno  de limites e de “não pode” nas atitudes ou nas palavras, quando o encontro  entre um e outro é permeado por uma linguagem que ninguém mais acredita: murmúrios secos. Uma obediência simulando a edificação do que o outro  demanda. Ou pior: ninguém tem mais nada a dizer (solidão a dois). 

Rasga-se o tecido, como sucedeu ao véu do Templo de Sião. E torna-se  impossível cerzir as duas partes fendidas. Um fenômeno assoma, sem  possibilidade de retorno, sem salvar o amor, a amizade ou os laços  familiares. 

Esgueira-se, sai ou afasta-se cautelosamente, sem dar na vista. Resta o ato  de contemplar e remodelar, por meio de uma qualquer sabedoria. O que é a  sabedoria, após uma vivência com vários tipos de relacionamentos  interpessoais? Uma decantação de experiências do espírito, configurando um  substrato quase sempre aparente, conduzindo-nos a contemplar com lucidez  e desconfiança o que nos chega com interesses sem muita especificação. 

Mas também, mesmo estando o amor próprio fortalecido pelo ruminar de  que tudo poderia ser diferente, ou seja, uma relação como um locus amoenus,  no qual se cuida e é cuidado, cessando o excesso de movimento no jeito de  caminhar ou na forma como se olha. 

Em resumo, seria um descanso, um alívio, para as lidas domésticas,  mormente para os/as que edificam algo para acrescentar aqueles que tratam  das coisas referentes ao espírito. Creio que, para esse tipo de pessoa, faz-se  necessário o sossego, visando plantar suas obras em vasta seara. Aqueles que  amam de verdade serão os segadores, livres de qualquer impureza. 

4. Terminus  

Como saber o que resguarda um interessado? Pode-se consultar a pitonisa  dos oráculos interiores. Aqui será encontrada a compostura. Não exata, mas  símbolos capazes de encontrar a compostura de como se deve seguir e rasgar  interiormente tudo o que se refere ao chamado novo. Da mesma maneira que  se pôs um pé na frente, pode-se, presto, recuar.

Ora, o que se ganha com essa forma de ser? Creio que a superação de tudo  que é fenda, hiato ou lacuna. Acostumar-se com o que não é mais sortilégio,  o que fora encantamento durante os primeiros tempos de apostar em alguém.  Mas, após o escorrer do tempo na ampulheta da vida, faz-se necessário  aprender a direcionar o fascínio. 

Ao contemplar as mãos em concha, atesta-se que estão vazias. Nada restou,  perda de tempo. Nesse sentido, conclui que viera a perder seu precioso tempo  nesse entrelaçamento de outrora. O tempo de germinar o afeto tem, em todos,  uma determinada duração. Teimar com Cronos já vai se sabendo perdedor.  O tempo faz e desfaz (Fiama Hasse Pais Brandão). 

Não obstante, pode-se escolher fechar a porta, passar a chave e reclinar-se  na janela, sentir a brisa que assoma fresca da rua. Quer dizer, dar mais uma  chance às Parcas, enquanto a mais cruel das três corta o fio da vida,  encerrando nossa passagem por aqui. Seria esta uma eventual alternativa,  dada a fadiga do que nunca deu certo. 

Ou seja, aderir de uma vez à doce solitude, com seu remanso, com a calma  dos nervos, dos músculos, dos pensamentos que não mais incomodam. O que  fazer, então? Uma das minhas grandes amigas vive viajando pelo país e pela  Europa, com amigas, sempre. E sempre muito alinhada nas fotografias que  me envia. 

Depoimentos de pessoas inteligentes e fisicamente puro charme, como  Marília Gabriela, Zizi Possi, Maria Bethânia e Ney Matogrosso, falam com  naturalidade de viverem sós, cultivando a solitude. Pouco querem saber de  travar novos relacionamentos quando já provaram de muitos sabores, de  muitas experiências, de muitos amores. 

Até o encontro íntimo, casual, que não determina compromisso, assim  mesmo refratam. A bem da verdade, certas coisas da vida engendram um  enorme cansaço. Preguiça para sair de casa, ouvir o que já se sabe, sentir o  que já se ouviu. Melhor mesmo é arear o alumínio de uma rotina previsível. 

E para não saírem falando que sou démodé, posso discorrer um pouco acerca  das combinações binárias que regem a base da computação. Ou seja, só  existem duas possibilidades: 0 ou 1. A partir desses dois algarismos  procedem-se outras combinações, a saber: 10, 00, 01, 11. Como podemos  ver, aquele que elegeu a solitude como opção de vida restringe-se às três primeiras combinações. Quer dizer, o estado de 11 já não lhe diz: ou é 10 ou  é 01.


sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Especial: Barbosa Lima Sobrinho e a Revolta de Princesa

Por: José Tavares de Araújo Neto.


Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho (1897–2000) foi um dos mais influentes jornalistas e intelectuais brasileiros do século XX. Pernambucano do Recife, advogado, escritor, historiador, professor e político, foi também uma das maiores vozes da imprensa nacional. Durante sua longa vida pública, presidiu a Associação Brasileira de Imprensa, foi deputado federal, governador de Pernambuco e membro da Academia Brasileira de Letras. Sua carreira na imprensa incluiu colaborações em periódicos como Diário de Pernambuco, Jornal do Comércio, Gazeta, Correio do Povo e Jornal do Brasil, onde escreveu por mais de setenta anos, até sua morte aos 103 anos. Mas, em 1930 — momento decisivo da história política nacional —, Barbosa não era apenas jornalista: era colunista de um dos jornais mais importantes de Pernambuco, o Jornal do Comércio, pertencente à família Pessoa de Queiroz, que figurava entre os principais incentivadores e financiadores do movimento armado de Princesa. Essa informação, longe de diminuir sua credibilidade, apenas revela o espaço político em que sua pena se movia: um lugar de combate, confronto e resistência. E é nesse contexto que surge sua crônica “Porque se sacrifica o sertão”, publicada no Jornal do Brasil, em 1º de abril de 1930. A crônica é uma peça de intervenção política. Barbosa Lima Sobrinho reage contra o que ele identifica como manipulação da opinião pública. Enquanto a imprensa urbana — especialmente a ligada a João Pessoa — pintava o presidente da Paraíba como herói civilizador, Barbosa expõe, com ironia cortante, o processo de demonização do coronel José Pereira Lima, líder da resistência sertaneja de Princesa. Ele abre o texto afirmando que ler as notícias sobre o conflito é “uma das coisas mais divertidas” daqueles dias. Não tarda em mostrar o motivo: de repente, João Pessoa vira um santo e José Pereira, um demônio. Antes da revolta, afirma Barbosa, ambos eram tratados como “anjos da mesma corte celestial”. A guerra os transformara — não a essência, mas a narrativa. “Somente naquele dia um se tornou o nefando e o outro, o herói.” Na crônica, o conflito não nasce de ideologias, mas de vaidades. José Pereira reivindica a inclusão do ex-governador João Suassuna como candidato a deputado federal. João Pessoa recusa e monta, sozinho, sua chapa política — um gesto que Barbosa qualifica de autoritário, sobretudo para alguém que se dizia liberal. Quando percebe que José Pereira mantém apoio popular e força eleitoral, João Pessoa aumenta a tensão: demite autoridades municipais de Princesa, ocupa militarmente Teixeira e ameaça fazer o mesmo em Princesa. Era o sertão encurralado. “Nesse momento, levantou-se o Sr. José Pereira, tomando a atitude que o presidente da Paraíba lhe impunha: a defesa armada.” Barbosa não suaviza os fatos. Ele assume posição. Na crônica, o sertão não inicia a guerra — ele resiste. A força de Barbosa Lima Sobrinho está no modo como ele transforma informação em denúncia. Ele acusa João Pessoa de tomar decisões sem consultar lideranças políticas locais; perseguir João Suassuna por rivalidades internas; sacrificar o sertão em nome de ambições pessoais e familiares.

“O Sr. João Pessoa [...] sacrificou o sertão.”

Essa frase não é argumento. É sentença. E Barbosa sabe o peso de cada palavra. É preciso destacar: Barbosa Lima escrevia em um jornal pertencente à família Pessoa de Queiroz, parte interessada no conflito e aliada de José Pereira. O cronista se torna assim uma voz do sertão dentro das páginas da grande imprensa urbana. Mas não é mero porta-voz de interesses: é um opositor consciente. Sua trajetória posterior — enfrentando Getúlio, a ditadura militar, Collor — prova que Barbosa não temeu contrariar poderes. Em 1930, sua trincheira era o sertão. “Porque se sacrifica o sertão” não é apenas uma crônica jornalística. É testemunho de época, visão de dentro, texto de combate. Barbosa Lima Sobrinho não se limita a narrar. Ele interpreta. Ele denuncia. Ele toma partido. E toma partido pelo sertão. Contra o discurso oficial, contra a ordem dominante, contra a narrativa cristalizada depois: Barbosa Lima Sobrinho ergueu a voz — e sua voz ecoou a voz de José Pereira. A crônica se torna, assim, documento fundamental para se compreender o movimento armado de Princesa não como aventura isolada, mas como reação política a um projeto de poder que excluía o sertão e negava sua representação. Barbosa enxergou antes de muitos: não se sacrificava apenas um homem — sacrificava-se o sertão. 

Especial: A 3ª edição do romance Agonia na Tumba, de Tarcísio Pereira

Por: José Tavares de Araújo Neto


O escritor e dramaturgo paraibano Tarcísio Pereira, membro da Academia Paraibana de Letras (APL) e da Academia de Letras de Pombal, lança nesta quinta-feira, 15 de novembro, às 18 horas, na sede da Academia Paraibana de Letras, a 3ª edição do romance Agonia na Tumba. O relançamento celebra três décadas de produção literária e intelectual do autor pombalense que se tornou referência na ficção e no teatro paraibanos. Nesse percurso, Tarcísio reúne 27 livros publicados, além de expressiva atuação na dramaturgia, assinando peças, roteiros e direções teatrais que consolidam seu nome no cenário cultural do estado. Agonia na Tumba é um romance singular e ousado, que conquista o leitor desde a primeira página pelo impacto de sua ideia central. Um homem acorda dentro de um caixão, já enterrado, e precisa enfrentar, no absoluto breu da morte, a própria consciência em farrapos. A obra, narrada em primeira pessoa, transforma-se num mergulho angustiante na mente de alguém que desperta no limite entre a vida e a decomposição — e é dessa fronteira que Tarcísio Pereira faz surgir um texto intenso, visceral, quase alucinógeno. O enredo permanece inteiramente dentro do túmulo. Não há cenários externos, personagens em movimento ou grandes ações. Tudo se resume à memória do protagonista, aos seus pensamentos desconexos, aos delírios e à lenta reconstrução dos fatos que o conduziram àquele destino. Essa escolha extrema — sem flashbacks convencionais ou pausas — intensifica a claustrofobia da narrativa. O leitor é aprisionado junto ao narrador e respira o mesmo ar rarefeito. A prosa de Tarcísio se apoia na oralidade, em frases que seguem o ritmo do pensamento atropelado e em imagens fortes, muitas vezes brutais. O texto é profundamente sensorial. O calor do espaço fechado, a falta de ar, o suor, o desespero físico, os grilos, os estalos do caixão e a batida surda das tentativas de fuga fazem da leitura uma experiência quase física. A narrativa oscila entre lucidez, delírio, memória e fantasia, como uma mente que luta para organizar o caos. Entre recordações de infância, culpas, violências, bebedeiras, traições, vaidades e fraquezas, revela-se o retrato de um homem comum — imperfeito, às vezes mesquinho, mas profundamente humano. Os momentos finais antes da suposta morte surgem fragmentados, ganhando forma pouco a pouco, como se o leitor participasse da montagem de um quebra-cabeça emocional. O suspense não gira apenas em torno da possibilidade de escapar do túmulo, mas também da busca por compreender como ele chegou ali. O romance dialoga com o thriller psicológico, com o fantástico e até com o horror, sem perder o vínculo com a tradição literária do Nordeste. Em 1992, ao apresentar a obra, W. J. Solha destacou o ritmo cinematográfico, a atmosfera que lembra Stephen King e o afastamento da rigidez regional, qualidades que o livro realmente apresenta sem deixar de carregar marcas afetivas e culturais paraibanas. Agonia na Tumba é curto, mas densíssimo. Prende, sufoca e inquieta. Funciona como uma reflexão sobre a morte, o medo ancestral de ser enterrado vivo, os remorsos que perseguem qualquer vida e a fragilidade da memória humana. Ao final, o leitor tem a impressão de ter atravessado um pesadelo daqueles que permanecem mesmo depois de acordar. É uma obra marcante, madura e surpreendente, que confirma Tarcísio Pereira como um dos grandes nomes da ficção paraibana contemporânea.