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sábado, 8 de agosto de 2015

Carta Apócrifa de Márcio Dantas.

Tia Maria: o privilégio do amor

¡Cuántas veces te esperó!
¡Cuántas veces te esperara
Federico Garcia Lorca

Durante muito tempo, costumava frequentar o apartamento da minha Tia Maria, lá no Tirol. Ia visitá-la quase quinzenalmente. Sua fisionomia se impregnava, para essa visitação, de uma tal espécie de véspera, que o corpo se ungia de uma discreta solenidade, denunciada na maneira como me abraçava e beijava com benfazejo carinho.
Era o que se podia chamar de “velha dama digna”, no melhor sentido da expressão. Cabelos grisalhos e curtos, – como se tivessem sido cortados em casa - , voz rouca, cheia de corpo e um certo modo aristocrático de, ao sentar, dispor as pernas e as mãos. Pronunciava as palavras com brandura, denunciando um requinte adquirido, entretanto não tinha a vergonha de esconder a mulher sertaneja, mesmo porque muitas vezes admitiu sua origem, quando, uma vez, por exemplo, disse-me que “nunca havia esquecido a casa modesta em que nascera”, atrás da serra do Patu, lugar assim chamado: Patu-de-fora. Para alguém do sertão, não era difícil identificar nos seus hábitos e vocabulário a origem de expressões como “folgo em saber que você está bem”, ou o uso freqüente do diminutivo para os nomes de pessoas da família: Ritinha, Taninha, Badinha, Deinha.
Diferente de outras senhoras da sua geração, que apenas serviram a homens e pariram filhos, fora feliz no casamento, tendo apenas uma filha da qual muito se orgulhava. Também pudera, minha tia havia casado com um gentleman. Homem alto e refinado que gostava de cinema e se vestia como um inglês : calças com pregas, ajustadas acima da cintura por um impecável cinto de couro; para completar a figura de aristocrata, apenas faltava-lhe pitar um cachimbo ou charuto. Suas camisas, quase sempre de linho, bem passadas em irreprocháveis camadas de goma.
Foi uma das poucas pessoas católicas que conheci praticante de um catolicismo calcado na generosidade e no respeito ao sofrimento alheio. Certa vez, avaliando aquilo que o destino lhe tinha proporcionado, disse de maneira resignada: « eu nem merecia isso, nem sou tão boa ». Palavras que traziam uma enorme sinceridade nos olhos e no tom de voz. Essa atitude de sublime e comportado amor diante de alvíssaras doadas pela vida denunciava a exata consciência de que outros não houveram a mesma chance, a mesma oportunidade de gozar uma tranquilidade, um bem estar social. De outra feita, contou-me que fora ao Santuário de Na. Sra. dos Impossíveis, localizado num dos contrafortes da serra do Patu, e encontrou o nicho da santa completamente largado, cheio de poeira, insetos secos e flores murchas. Declarou-me com enorme piedade: “eu tive tanta pena de Nossa Senhora, abandonada...se eu morasse perto, eu arrumaria bem direitinho. Primeiro forraria com papel crepom azul, franzido, depois aplicaria estrelinhas de prata, assim como se fosse o céu”. Também me confidenciou que quase enlouquecera quando da morte do esposo, ainda uma jovem mulher, então buscou consolo junto a um misericordioso frade já idoso, que lhe convenceu da necessidade de superar a perda de quem ela mais amava, e continuar vivendo, pois tinha uma filha para assistir.
Como disse, havia como que uma espera da minha visita. Agora, me vem à mente o avô de Dodote, personagem de Cornélio Pena no romance Repouso, esperando-a no quarto, quando todos os dias a neta vinha tratar dele. Confesso que muitas vezes a visita se estendeu por horas, não por que dispusesse de tempo, mas por que sabia do enorme prazer que lhe provocava minha presença. O gesto amoroso sempre é um crédito em nosso favor. Nada se perde, nem coisas de tempo, nem muito menos de espaço. Por quê? Bem, por que sendo todos morituros, é como se tivéssemos a obrigação de arrastar conosco, enquanto viventes, a lembrança de outros que nos marcam, dando-nos, esse cabedal de recuerdos. Quanto mais léguas acumularmos nessa área, mais aumentam nossas chances de redenção, quero dizer, de nos justificarmos no segmento estreito entre nascer e morrer. Sendo assim, quem morre por último é sempre muito mais agraciado, pois tem o supremo luxo de dizer que foi amado por outrem. Independente de ser um prazer amargo, é uma consciência a mais que colabora para aplacar o sentido trágico da existência.
Sempre pedia ao porteiro para comunicar que eu estava subindo. Era então que a porta já estava aberta, e ela, cerimoniosamente, aguardando-me com seus robes estampados com ramagens de flores, o corpo trescalando a talco. Abraçava-me e beijava-me. Gostava, ela, que eu tomasse a bença e que a chamasse de Tia Maria (mesmo sendo minha prima em segundo grau, porquanto sua mãe, Luzia Almeida, casada com Manoel Joaquim, era irmã da minha avó materna, Lina de Lima), pois conservava o ancestral habito de se considerar as primas-velhas como Tias. Havia uma espécie de formalidade desejada por ela. Penso que isso advinha de um requinte aristocrático adquirido nas antigas fazendas do Açu, lugar onde fora criada, embora tenha morado durante um tempo na cidade de Pendências.
Eu bem intuía suas parcas áreas de dor. Jamais toquei em qualquer assunto. Nosso bem querer e amizade nos era suficiente. Nossas presenças acenavam adeuses à morte. O necessário amor triunfava durante algumas horas. Os carros de Apolo traziam o benéfico brilho da redenção. A luz era só de alegria, pois seu anverso, a lucidez, banhava-se momentaneamente no Letes. Renovávamo-nos após a visita com a energia vital que pulsa dos corações enternecidos pela verdadeira amizade, pelo bem-querer gratuito e edificante.
E era tão nosso aquele momento que todos da casa tacitamente sabiam. Ninguém se aproximava. A visita era para ela. Salomão visitando a rainha de Sabá. Uma suave aura de isolamento nos circundava, assim como um homem e uma mulher que muito se amam e não prescindem de nada nem de ninguém. O amor tem dessas coisas. Ao mesmo tempo que nos abranda, também nos atira numa esquisita solidão. Éramos interrompidos apenas pela frágil voz de Bíblia, anunciando a chegada de um pontual café.
Trazia-lhe histórias engraçadas de uma nossa prima em comum. Ela só faltava morrer de rir com as loucuras e brincadeiras da nossa parenta Amélia, lá do alto sertão. Comentávamos assuntos de conhecidos distantes. Antes de partir, sabia que ela ainda estava na janela, era então que, do automóvel, levantava a cabeça e acenava um último sorriso.
Soube do seu falecimento uns três meses depois, por telefone. Mamãe que me disse, delicadamente. Sabia muito bem o quanto essa perda (eu tão distante) me causaria.
Hoje há um retrato em preto e branco numa das mesinhas da minha sala. Não a tia Maria que eu conheci, sim, aquela que me pedia a mão para que a puxasse da cadeira onde estava pesadamente sentada, auxiliando-a a ficar de pé, mas uma jovem de olhar forte e terno, vestida com um paletó preto sobre uma blusa branca de rendas, com botões também pretos, dois a dois. Retratando a robusta altivez de uma matriarca do sertão, anunciando a minha velha e boa tia, cujo privilegiado amor tive a chance de vivenciá-lo por uns tempos.

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