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quarta-feira, 6 de março de 2024

Especial: Caroline Veríssimo: de uma beleza cujo avesso é o direito.

 


Por Márcio de Lima Dantas 

Porque, agora, vemos por espelho em  
enigma; mas, então, veremos face a face;  
agora, conheço em parte, mas, então,  
conhecerei como também sou conhecido. 

 Coríntios 13:12 

Caroline Veríssimo (Mossoró, 1997) é formada em Artes Visuais pela Universidade  Federal do Rio Grande do Norte. Logo cedo, interessou-se pelo bordado livre e pela  ilustração digital, vindo a aprender a bordar através de vídeos na Internet. Dessa maneira,  direcionava seu trabalho para dois vetores: valorizando a arte do desenho e resgatando a  mais conhecida forma de bordar: o bordado livre, usando a linha de meada de círculo.  Desde sempre conhecida nos bordados advindos da cultura popular. Mas é preciso  remarcar que essa artista detém uma pronúncia original, pois o bordado tradicional foi o  ponto de partida para que decalcasse sua gramática estética. A artista confessa que  aprendeu a bordar buscando sites que ensinam a bordar, é bom lembrar que aqui há uma  profusão de bordados, sugerindo tecidos, agulhas, linhas e estilos. 

Com efeito, podemos categorizar sua obra em duas vertentes, cujas técnicas são bastantes distintas. A primeira são os bordados, com releituras intervenções da artista. Depois,  temos um declive para onde escorrem desenhos resultados do uso de um programa de  computador: o Procreate no Ipad, fazendo uso do tablete e caneta. 

Vejamos os bordados. Não há muito segredo, visto que a artista manuseia procedimentos  de há muito empregados nos limites dos bastidores. Para além do que se encontra entre  bordadeiras de pequenas cidades ou cooperativas, buscando fomentar e resgatar a arte do  bordado, para não apenas engenhar um meio de vida, mas uma ocupação saudável, regada  a conversas e opiniões de uma sobre o trabalho da outra. 

Com efeito, há um trabalho da nossa artista cujo resultado pode ser aqui empregado como  capaz de organizar uma metáfora resumidora do conjunto da sua obra. Falo de uma  andorinha bordada com apenas duas cores e seus matizes. Aqui constatamos a habilidade  de bordar da autora. A simplicidade do desenho, coisa sempre difícil de se lograr êxito  em arte, delineia o pássaro em seu voo, sobre um céu constelado de miúdas estrelas.  Talvez o fato de resguardar menos recursos em sua feitura, seja justo o que torna a  andorinha uma espécie de síntese do bordado como releitura contemporânea, na medida  em que os procedimentos manuseados desde sempre no bordado são mantidos, o que faz  a diferença são as intervenções por meio de acréscimos, como, por exemplo, o uso de  canutilhos ou contas coloridas. 

Outra coisa, a maneira como a autora apresenta seus trabalhos por meio da fotografia,  desde já parece fazer parte da obra. Muito interessante é que não abre mão da moldura dos bastidores, pondo o trabalho com um fundo que ressalta a beleza das suas obras. Não  há como não dizer isso, pois seus bordados são realçados, assim como se fossem integrantes dos desenhos, conseguidos por meios de cores ou discretas texturas. Contudo,  o bordado no centro dos bastidores detém um valor em si, não por relação. Creio que essa  maneira de fotografar um trabalho se deve ao fato de uma busca de evidenciar as cores  empregadas no bordado. Com relação ao nosso segundo arranjo, logo que nos detemos  sobre eles, é assaz curioso o fato de nos intrigarmos, visto deter um diferencial do que  conhecíamos até então.  

Com relação aos trabalhos da segunda arrumação, não são mais bordados, mas frutos do  manuseio de um programa de computador, configurando uma série de obras deveras  interessantes. Dois trabalhos retratam lugares de diversão da cidade: um bar e um cinema.  A ausência de uma perspectiva mais ortodoxa, tão cara aos pintores acadêmicos, como se  fosse uma obrigação, conduz o artista, - que não fazem uso dela, como, por exemplo, Paul  Gauguin -, a se valer de outros meios, quando se trata do figurativo. Há que lembrar,  também Paul Cézanne, cuja ausência da perspectiva parecia ser de caráter deliberado,  alcançando uma dicção estética de rara originalidade, para sempre. 

Com efeito, o Bar da Saudade se define por uma fachada e um conjunto de cadeiras de  plástico, no qual há apenas uma figura. Duas árvores parecem velar o que fora um dia,  talvez, frequentado. Agora restando uma lembrança. Salta aos olhos a simetria bilateral,  permitindo que se divida a tela em duas partes iguais. A cor ocre vai se repetir nos outros  três trabalhos. Como o ocre se opõe ao azul, e está relacionado à terra, ao que fomos  acostumados a indigitar como realidade, eis que sucede nos quatro trabalhos a recorrência  dessa cor. 

Na verdade, quase que desponta uma monocromia, só não o é por conta das outras poucas  cores da paleta predileta da autora. A parte da tela que compete ao céu, encontra-se no  firmamento um azul límpido, contrastando e fundando uma harmonia com a cor ocre. O  azul é a cor da imaginação, do oposto ao real concreto, por oposição aos tons em terracota.  Aqui ocorre a boda entre céu e terra. Em núpcias de uma possibilidade que nos conduz a,  mesmo que seja difícil, operarmos tentativas de fundir essas duas partes em uma unidade  que nos conduza a compreender o humano e sua condição plena de obstáculos. Contudo,  nada é impossível, considerando que o que nos aparece como inimigo também é nosso  aliado, pois nos ensina a arte da paciência. 

Por fim, não há como discorrer acerca de dois trabalhos extremamente interessantes. A  tomada vista de cima de um banheiro bastante comum, não há a visão da totalidade,  apenas ressalta o box e os azulejos que revestem em cor ocre. Não há motivo algum de  demandar o motivo pelo qual a figura humana não se encontra no recinto. Se faz  necessário contemplar parte de um banheiro com seu desenho e os azulejos de cor ocre.  Não é um banheiro, mas uma obra de arte. 

O outro trabalho é um terraço com quadro cadeiras de plástico, as mais modestas, visto  que se tivessem mais valia seriam de madeira ou outro material. Sobre cada cadeira um  gato dorme. A cor ocre assoma com grande intensidade. Os ladrilhos do piso e o fundo  do lugar são de cor ocre, sendo que há uma retomada do que fora outrora matéria de valor,  esquecendo o cimento queimado das famílias mais humildes. Era encontrado nas igrejas, 

com geometrias de rara beleza, alagando o sentido da visão de um puro prazer de colocar  os pés e desatar o enlinhado sentido da visão comum. 

Há um forte pendor para o adorno, mesmo que seja com parcimônia. O que interessas é  preencher o enquadramento através de múltiplos elementos. No caso do piso, há ladrilhos  (mosaico), como os de antigamente, imprimindo beleza a ausência da figura humana. As  paisagens ou cenas internas são revestidas de um silêncio sobrepujando o que se  contempla. 

Caroline Veríssimo resgata uma técnica de adorno conhecida e apreciada desde sempre.  Consabido é a valia do bordado em diversas culturas. Quando se desejava imprimir a uma  peça de tecido a elegância, a excelência e a delicadeza, bastava ataviar com bordados,  seja qual fosse o tipo de riscado. Não precisa ir muito longe, haja vista o uso nas roupas  femininas ou vincular ao sagrado, adornando as alfaias da Igreja Católica e os vasos  manuseados na liturgia: toalhas de altares ou mesmo as pequenas coberturas do sacrário,  do cálix, da âmbula, do ostensório. É interessante observar que a escolha de bordados  remete ao que podemos evocar como um conteúdo que torna todos os elementos mais  valorizados, franqueando às sendas que dizem respeito ao sagrado. 

Em suma, o bordado reveste toda e qualquer indumentária com uma aura de beleza e  simplicidade, chamando atenção para uma tradição que outorga às peças o que é digno de  recobrir os vasos sagrados ou cobrir os altares. Quase sempre se selecionava as melhores  bordadeiras para fazer esse trabalho. Não nos custa ainda lembrar o primor dos bordados  que se faziam nos pálios, véus de ombro, para serem usados na procissão de Corpus  Christi.  

Acontece que a artista aqui tratada procede a toda uma sorte de releituras do bordado,  tanto semântica quanto na intervenção de bordar com canutilhos ou pequenas contas,  fazendo valer as cores e texturas. 

Contudo, permanece o que se encontra desde muito concernente à arte do bordado: tecido,  agulha e linha. O mais diz respeito à criatividade de quem busca resgatar uma forma de  arte quase sempre associada ao silêncio e à concentração, pois que bordar, antes de  qualquer coisa, ocupa a mente, afastando determinadas espécies de pensamentos,  deixando-se estar junto a si, contemplando o que se é, em uma incondicional quietude,  lançando para bem longe o que atribula nossa alma, revestindo de paciência o que o  destino outorga de bulir com nossos nervos, transformando em enfermidades aquilo que  é da natureza da alma, mas há de lembrar que alma e corpo não estão dissociados. 

O ato de bordar também serve para engendrar um outro panorama, e que seja para si ou  para outrem. Nos limites circulares dos bastidores, o artista imprime uma outra gramática,  distinta da realidade. Antes de qualquer coisa, há o domínio de um desenho, assim como  se fosse uma pessoa com uma rotina previamente determinada, sabendo de antemão o que  virá acontecer: manhã, tarde e noite. Eis que o Tempo borda com suas linhas algo bastante  interessante, quer dizer, muitas meadas de linhas, com atenta preocupação de nunca  esquecer se o avesso e o direito estão alinhados em um concubinato gratificante para  quem lavra no tecido, não importando se isso ou aquilo difere do que conhecemos como  o mundo que nos rodeia.

Para não dizerem que fui omisso em se tratando de bordado, digo o seguinte: quando for  comprar uma peça bordada, olhe primeiro o avesso, se estiver igual ao direito, então o  trabalho é bom.

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