Por Márcio de Lima Dantas
Suave é viver só
Grande e nobre é sempre
viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses
Ricardo Reis
A fotógrafa Ana Canan (Natal, 1962) destingue-se pela singularidade de ressaltar o ethos das paisagens, flores, animais, ruínas, advindos de tomadas revestidas por uma ímpar simplicidade. Assim sendo, um olhar mais acurado acaba por nos revelar vestígios metafóricos de uma invariante antropológica inerente à condição humana: a solidão.
Com efeito, para comprovar nossa leitura, é suficiente constatar a ausência da figura humana em todas as fotos, deslocando a tomada para inusitados prismas no qual se ressalta a natureza, quer seja o que se apresenta ou a busca de organizações no qual o mundo natural conjuntamente com as intervenções humanas lançam seus vetores de sentidos para a compreensão de um dos mais importantes aspectos de uma presença no mundo: o humano e seus relacionamentos interpessoais, quer seja nas grandes cidades ou contemplando a natureza
Falamos do que nos concerne, falamos de um estado de ser e estar. Proclamamos, por meio desse naipe de fotografias de Ana Canan, a solidão ontológica habitante dos recônditos da psique O que provamos logo cedo e somos obrigados a dar uma resposta que só pode ser de questionamento, de refratar, de mudança de atitude da rotina ou acatar como nossa integrante, havendo uma convivência, de preferência saldável, e nos outorgando como philia aliada, numa pacífica aliança para enfrentar as vicissitudes, atribulações, enfermidades e estados do ser que nos atira para as fronteiras nos arredores de nós mesmos, fazendo saber da vasta solidão que nos habita, como se fosse uma sarça e seus espinhos, ardendo em fogo, com o intuito de nos dizer de uma presença atemporal, longe de ser solo sagrado, muito mais como espécie de silente estela, chantando um chamado para uma ordem de enigma a ser resolvido.
Em assim sendo a lâmpada ilumina, para uns a compreensão de ser trabalhado, por meio da paciência, da aceitação de si mesmo, numa íntima amizade por meio de uma boda cujas partes encontram-se ao alcance de toda e qualquer pessoa. Para outros, o camuflar através de subterfúgios vários, algo que prefere negar, labuzando-se no que a sociedade oferece: a escansão do calendário cívico e religioso, por meio de se fazer presente em algo circular, repetindo-se a cada ano, com suas fantasias diversas, obliterando o que causa dor, afinal as conversas são intermináveis, o som emana dos instrumentos como narcótico, a turba segue em transe, não se sabe o que é solidão. Na verdade, nem existe tempos ou espaços sociais para provar do travo amargo da solidão. Há que ludibriar, fazendo de conta que não sei disso.
As fotos de Ana Canan evocam de imediato tal condição. Pelas flores esguias avultando sob um enquadramento, em um eloquente discurso de fazer saber de uma existência que se destaca pelo singular das cores, mas sempre presente o enfático o fato de se erguerem sozinhas face ao entorno que as circunda.
Isso posto, retornamos ao que dizíamos. Ora, há que lembrar: não há outra solução. Resignar-se ao fato do que é inerente, do que não depende de nós, do que nos concerne dar uma resposta. Tudo conduz a sermos autênticos, primar pela verdade, contemplarmos o espelho. Vejamos como uma escritora organizou os arredores dessa experiência humana de solitude: “Ela estava só. Com a eternidade à sua frente e atrás dela. O humano é só” (Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Clarice Lispector).
O tema da solidão encontra-se ostensivamente presente no conjunto de fotografias. Bem claro que de forma metafórica, na medida em que um expectador mais atento ousa considerar o objeto de arte como matriz e nutriz de um enxame de possibilidades, tendo em vista o seu repertório ou familiaridade com a estética.
De outra parte, a solidão não pode ser compreendida como algo enfermiço ou digno de atroz sofrimento, como sói acontecer com a maioria. Mas ergue-se como como espécie de monólito, louvando o fato de alguém se encontrar sozinho, com a possibilidade maior de explorar de as regiões pelágicas do ser, fazendo emergir os contornos do que pode vir a ser sanativo, nos redimindo de nós mesmos, por meio de um silêncio que nos conduz, não apenas chafurdar no lodo, mas também acendendo lamparinas, para nos iluminar com os pavios que nosso afeto cultiva com diligente imanência.
Os diversos matizes das flores destacam-se em um primeiro plano, tendo como pano-de fundo um intenso verde, emoldurando o que pode ocupar metade da foto, um terço ou apenas uma nesga dessa cor no cume do enquadramento. Por vezes, as fotos acentuam um espelho d’água de uma recôndita natureza, mar, lago ou nascente. ngulos que talvez nenhum transeunte pudesse imaginar.
Ora, não é isso que a fotografia de viés artístico revela? Uma imagem fora das expectativas ou algo inusitado que nos cerca e passamos despercebido? Com efeito, Ana Canan logrou êxito, através de um olhar atento e vigilante, ao encontrar o ângulo que lhe doou a metáfora visual de extraordinária beleza, cultivando a seara de algo que nos habita, entretanto não podemos (nos) esquecer de saber o tempo da maturação, o tempo da sega nos quais as espigas demandam serem colhidas.
Penso que já adolescente devemos iniciar esse tenaz exercício, pois quando demora muito, pode ser que os frutos passem do ponto. Desse modo, fenece a coragem do que e achega sem aviso nem prêmio: os necessários embates conosco mesmo. Tal como Jacó enfrentou o anjo, em um combate que temos tudo para vencer. A solidão talvez seja algo mais simples do que imaginamos: aceitar-se, abrir a porta do nosso imo. Tolerarmos por meio de simples recursos: passearmos, sozinhos, ir a um café, bosque da cidade, leituras, filmes, música. E por último: contemplar fotografias eivadas de arte.
Marinhas ou nascentes de água doce, como sempre, desprovidas da presença humana. Até parece buscar uma tranquilidade que o homem contemporâneo a pouco e pouco abandona com as azáfamas domésticas ou com a dinâmica presente nas grandes cidades. Resta aderir ou edificar um jardim em sua casa.
Enfim, podemos inquirir a valia de tais metáforas visuais, cujo apanágio possibilita, por meio de um sentido figurado, aportar em um sítio com espaços nem sempre admitidos pelos humanos, preferindo se embriagar no ópio do calendário com suas inumeráveis festas, odores, cores, namoros, ou seja, tudo que nega os afluentes que conduzem a compreender, aceitar, a solidão como fenômeno natural. Creio que as fotografias de Ana Canan nos leva a uma reflexão da gramática do Ser face à solidão.
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