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sexta-feira, 22 de março de 2024

Especial: Das tantas escrituras pictóricas de Ângela Almeida

 Por Márcio de Lima Dantas



Era assim que pondo ao meu alcance os mais sublimes segredos, sabíeis, Madre, dar à minha alma o alimento que lhe era necessário...

Santa Teresa de Lisieux, História de uma Alma, A 19v.

1. Ângela Almeida (Mossoró RN) é uma artista visual dotada de uma sempre presente inquietude, levando-a a engendrar toda uma sorte de séries, conduzidas quase sempre pelo domínio de um desenho evocador dos delineamentos do riscado acadêmico. Assim, estabelece uma distância e uma própria singularidade, na medida em que os desenhos esboçam formas concisas, apenas sugerindo quase sempre bustos, inscrevendo uma outra ordem de onde emanam intentos, ao que parece, advindos de uma espécie de busca interior. 

Como exímia observadora do comportamento humano, manifestando-se em uma incansável busca de retratar pessoas em situações de relacionamentos interpessoais ou tão-somente na solidão de um estar. Nosso corpus para efeito de análise restringe-se a quatro séries da artista.

Mesmo sabendo dessa impossibilidade, - acredito que todo artista tem consciência dessa luta contra o domínio apressado de Cronos, - mas persiste, soletrando um punhado de sílabas acumuladas no seu íntimo. Pode até ser que alguns conjuntos de vocábulos sejam resultados de leituras, visitas a museus e exposições, interação com outros artistas, mas há também o que integram as percepções individuais, habitando nosso ser, impulsionando à criação de um mundo que não diz muito daquele que nos rodeia, mas incorpora haveres dotados de um outro viés, assim como se fosse matéria de uma trajetória oblíqua, com o intendo de questionar o que nos rodeia.

Em suma, ao acrescentar objetos de arte aos contornos que nos cercam desde sempre, também se indaga acerca da gramática que move nossas vidas, concluindo que grandes nacos de acontecimentos refogem do nosso controle, ou seja, muita coisa se inscreve no que podemos nominar de surpresas. De um muito aparecem sem que procuremos ou possamos levar a “culpa” do que nos sucedeu ou bateu nossa porta. Resta a lição da sabedoria: resignação e conviver a chegada daquele elemento. Cada série: pintura, desenho, fotografia ou a simbiose de duas ou três dessas mídias, produzindo um belo objeto de arte, cujo proveito evoca o sentido da visão resguardando uma sintaxe extremamente singular, plena de diferenças com relação ao que conhecemos no conjunto das nossas artes plásticas. 

2. Ao que parece, a artista é habitada por uma inquietude nos seus músculos e sentidos que a conduzem a sempre inaugurar uma nova série, circunscrita ao conjunto da sua obra, com uma inequívoca maneira de soletrar seu idioma estético, nas compleições que circundam os seus trabalhos. É importante lembrar o raio, em uma amplitude bastante extensa, permitindo repousar novas séries, como se fosse uma cacimba de areia, no qual a artista retira o solo, nunca encontrando o fundo.


Sendo assim, tudo conduz a que a artista optou por insistir em uma permanente experimentação de traços, semânticas, cores, desenhando com maestria as séries cujos campos da estética favorecem os dotados de talento e de um feliz desassossego que opera uma espécie de cansaço, conduzindo a artista a dar com brevidade encerrada uma série, levando-a a contemplar outra seara, para saber se já é tempo de uma outra sega. Parece ser assim que funcionam os que lidam com a estética de maneira buliçosa. Para além do feito, eis que o ânimo se detém sobre um novo trabalho.

Sucede, na verdade, um precioso acervo plástico advindo de uma espécie de negação emanada do íntimo da artista. Que sorte de negação? Ora, isso é o que não falta na condição dos humanos quando se faz necessário nos relacionamentos interpessoais, no trabalho, na família ou em tudo o que diz respeito a resolver tarefas do cotidiano, com sua azáfama perpetrada pelo bulício que concerne a toda herdade ou mesmo lugar de trabalho.

Com efeito, aqui é um desassossego criativo, recebendo o timbre indelével e o monograma notável da artista, que há décadas não restringe seu trabalho às inúmeras series eivadas de um phatos cuja mescla denota uma responsabilidade para com seu fazer artístico. Quero dizer,

Não apenas no sentido de uma consciência com rasgos plenos de implícitos históricos, que qualquer intérprete/expectador consegue estabelecer as conexões com a tradição, sem maiores esforços. A artista também ateve-se a escrever livros resgatando muitos de nossos artistas esquecidos.

3.Vejamos quatro séries de Ângela Almeida. A primeira (1) é de extrema beleza. Imperam flores miúdas, fulgindo formas, flores, texturas e um background que pode ser monocromático ou de um matiz indeciso, tão- somente para efeito de contraste, ressaltando as flores. Por vezes, aparecem discretamente arabescos em espiral, como ornamentos foliáceos, imprimindo um efeito decorativo, sem que se perca o foco principal, ou seja, as flores em uma placidez dotada de extrema simplicidade, quase sempre de cinco pétalas.


Com efeito, não há uma evocação que possa remeter a prados com flores silvestres; o que parece mesmo, - tanto na disposição espacial das flores, quanto nos matizes empregados com o propósito de almejar uma harmonia,

- enquadradas nos limites da tela. Quero dizer, de uma espécie de pintura eivada de contrastes, tanto na seleção do matiz da cor hegemônica, quanto em monocromatismos.

Talvez a beleza repouse justo em uma variação sobre o mesmo tema. Ia esquecendo de um elemento sobremaneira importante. Há uma luz procedendo de algum lugar dos requintados arranjos de flores, constituídos de massa acrílica sobre tela. Essa luz, como sói acontecer, teoricamente haveria de proceder de uma fonte exterior ao quadro. Contudo, isso não pode ser constatado, pois a luz irradia de dentro para fora, revelando a maestria da artista. 

Sendo assim, não parece que as flores sejam “de mesmo mesmo”, mas muito mais como resultado da vontade deliberada da artista, comemorando na opção de viver / a graça de viver (Carlos Drummond de Andrade), por meio de algo que não pode ser fruído por relação ao que eventualmente poderia se encontrar na realidade. As telas detém um valor por si, não por relação. A arte, desde sempre, não foi considerada uma maneira de se esquivar do mundo real, incorporando formas advindas de passionalidades, de inquietudes de um artista, que, por sua vez, conduz formas e imagens para uma consciência refratadora da realidade? A arte existe para que a realidade não nos destrua (Friedrich Nietzsche).


Creio que essa série, talvez possa ser eleita como uma opus magnum dos últimos tempos da artista, detém um ethos metalinguístico, na medida em que as formas, as cores a luz e a disposição espacial, remetem ao que se encontra representado, ou seja, o código se compraz em se voltar sobre si mesmo, como se fosse uma espécie de oferenda ao ato de pintar, sem ao menos precisar de um pretexto fora do comprimento e da largura do substrato onde foi pintado. Vibra determinada por leis próprias, estabelecidas, provavelmente, por um assuntar como ficaria melhor e distinta de outros artistas visuais. Ora, o que nos faz apontar esse caráter metalinguístico? É a função dominante (Roman Jakobson), tendo em vista que a mensagem utiliza o próprio código. O código é o meio pelo qual a mensagem é enviada. A metalinguagem discorre acerca da linguagem a qual se detém, chamando atenção para si.

Pode haver uma consciência no ato de criar, como parece ser o caso da nossa artista. Mas é possível arrolar alguns exemplos advindos de outros meios, sendo que todos detém em comum o fato da literatura falar da literatura ou a pintura falar da própria pintura: A hora da estrela, Clarice Lispector, As meninas, de Velazquez.

Por fim, há que não esquecer o pendor, em se tratando da linguagem verbal, para o próprio código lexical de uma determinada língua. Isso os linguístas fizeram uso desde sempre, os etnógrafos também. Essa teoria da comunicação é suficientemente dúctil para que estendamos seu esquema principal em direção à análise e interpretação de outros meios; aqui, na pintura.

Com efeito, essa apropriação de esquemas organizados pelo linguista russo- americano, Roman Jakobson, não é indevida. Permitindo que tenhamos em vista outros códigos. Aqui, fizemos uso da pintura e do desenho, tomando como ponto de partida o trabalho de uma artista madura e consciente do que está fazendo. O corpus, para efeito de análise, é o recorte de uma obra que não nega advir de uma mulher madura e detentora da habilidade de manusear os meios para inaugurar a cada trabalho uma espécie de sega que vai sendo formada e maturada, necessitando de um ceifador hábil, dotado de mestria teórica e prática.

4. Vamos a segunda série (2). Inaugura-se a presença humana por meio de expressões faciais. Podendo ser corpos masculinos com flores que emanam de ambos os lados ou apenas da direita ou esquerda. Todos os rostos parecem propor um olhar voltado para quem os engendrou: estão firmes na sua natureza de “posados”. Tais como retratos em preto e branco.

Nesse sentido, podemos ver toda uma sorte de figuras com seus rostos coloridos. Bustos, com frases. Por vezes, é possível detectar um hieratismo, visto que não há gente em sorrisos. No início da série ocorre a retratação de homens, com flores. Estão em pé.


Esse mapeamento de feições nos conduzem a compreender as séries como se fosse uma cartografia provisória de semblantes e posturas. Falo no sentido de que não perfazem um caráter permanente, nem se pretendem dar conta das janelas da alma, sobretudo quase sempre relacionados ao deslocamento dos olhos e ao movimento da boca. Os conhecidos cinco sentidos, mais a intuição, cingem o rosto de reflexos emanados da experimentação deles quando do contato com sabores, texturas, quenturas, odores, presentes no entorno do que nos cerca.

Entretanto, qualquer que seja a espécie de desenho, ensaiando alcançar a medida do que um semblante pode proporcionar, se constitui como válido, se o intento do artista for remeter para uma individualidade um aspecto facial; depois, circunscrevendo a determinado arranjo capaz de elaborar variações sobre o mesmo tema.

5. A terceira série (3) apresenta-se com rostos masculinos e femininos pintados qual soldados que estão no front de uma guerra. Borrados em tons negros, azulados, verdes e roxos. Contudo, há o contorno da boca e dos olhos sobressaindo das manchas, límpidos, sem borrões, talvez deixando entrever o que é mais importante para a compreensão de um olhar externo, em um ensaio de retratos alcançados através de inúmeras técnicas, uma tentativa de que pretende, através de uma enorme gama de retratos de pessoas, captar semblantes. Parece buscar circunscrever, por meio de um mito obsessional, três séries, com inúmeras possiblidades de caras, captar sentimentos emanados das vastas regiões interiores que nem sempre podemos ter acesso nos nossos semelhantes. Ora, se não conseguimos nem palmilhar nossas pradarias interiores que, por vezes, nos movem e nos colocam em certas situações, quantas vezes nos perguntamos: Que quer isto dizer? (Atos, 2:12).

Ao que parece, para a artista Ângela Almeida, a arte se assemelha a uma espécie de lagar, não apenas com o sentido de purificação, mas, sobretudo, com a intenção de adentrar por uma distinção entre o que se constitui como supérfluo e o que é essencial. Há que lembrar que a verdadeira arte se reveste de uma essência, lançando seus vetores de formas, texturas e cores para o futuro. Dificilmente um artista trabalha buscando aprovação de quem quer que seja. Sim, trabalha por apelos íntimos da sua alma. Assim como se fosse uma necessidade de se esquivar do mundo, com suas amálgamas de toda uma sorte do que há de mais superficial, e de poucos apelos que possam atrair determinados tipos de pessoas.

É inegável compreender desde sempre que o artista ama a rotina de sua casa, os dias sempre iguais e sem novidades, a impaciência de tolerar determinadas presenças de visitas. Quero dizer o que se passa na cabeça da maioria, onde tudo isso causa estranheza (em uma sociedade de consumo, ostentação e disputas entre as pessoas), todavia para o artista a rotina com suas aras edificadas por ele mesmo, ao longo de um trajeto definido por seus pendores, habitantes de regiões abissais, nas quais sempre há depósitos de ex-votos.

Seria descuido meu lembrar que a deusa Mnemósyne (Memória) é irmã do deus Cronos (Tempo)? Esse grau de parentesco serve para refletirmos o quanto a memória tem a ver com o tempo. Há que lembrar, na sociedade contemporânea, o pouco caso conferido à deusa Mnemosyne. Malgrado essa situação do ar do tempo, atestada por tudo e todos, os mais atentos. O artista permanece como alguém representante de uma pequena parcela da população. Bem claro que tal fato não resguarda uma consciência, pode muito bem ser inconsciente, imprimindo uma assinatura com enorme desdém para com uma sociedade do consumo e do esquecimento.

6. A quarta e última série (4), por serem os retratos delineados graças a uma deliberada economia de meios, distinta das demais, nas quais foram usadas cores, formas, volumes, adornos, em uma empreitada de, ao variar por meio de uma compleição que nunca havera de interar, acaba por denunciar um desassossego de espírito da autora com essas quatro séries. Benfazejo sentimento! Capaz de adicionar à nossa tradição pictórica modulações que poucos artistas foram capazes de alcançar. Por certo, há que compreender esses rostos e retratados de homens e mulheres, animais e plantas, em um despojamento cotidiano por meio de olhares quebrantados de rotinas, como uma espécie de mapeamento em busca de fixar as tantas possíveis feições do humano quando em evidência.

Não há o instantâneo, mas há que observar um silêncio para posar diante das mãos da artista. Usanças estão mais predispostas a, de chofre, se darem a entender, através, como já dissemos, dos deslocamentos de olhares e do estuário da boca, capaz de não apenas de denunciar, junto com o timbre da voz, alguns tiques previsíveis, mas também detentora de uma capacidade de imprimir torneios nas falas, vindo a ser dissimulação.

Parecem ter sido decalcados de nichos onde o humano desenha seus ritos. Em uma ausência de pudor, na medida em que não se permitiram o manuseio da inautenticidade ou retirar alguma carta da manga, em primoroso gesto simulando o ganhar sempre sobre o outro. Mas também há que remarcar os retratos de pessoas em dar-se natural, como duas mulheres sentados uma ao lado da outra, homem de bicicleta, mulher com o gato nos braços.

Esses desenhos de pessoas, mesmo as que estão sozinhas, subentende-se o ser-em-relação, quase sempre plenos de um phatos (sendo que aqui o termo é usado livremente, não estimula o sentimento de piedade ou tristeza). O que os faz dignos de uma detida contemplação, assim como fora uma identificação de usanças desde sempre conhecidas, reconhecidas em outrem ou manuseadas nas práticas cotidianas de ser ou de estar

7. A arte existe porque a vida não basta.

(Ferreira Gullar)

Segundo me disse a artista, não acontece um planejamento anterior ao ato da pintura ou desenho. Ao que parece, deixa acontecer. Porém, essa atitude não invalida o domínio sobre os meios (tinta acrílica, caneta à prova d’água, lápis museu aquarelle carandache, tinta guache muito diluída, assemelhando-se à aquarela). A artista parece se garantir. Consabido é que quando o artista domina os meios nos quais trabalha, ele se põe à prova, como se tateasse seu corpo ou sua alma na busca incessante de outras formas, de muitas, de diferentes formas, das tantas que já experimentou, das muitas séries que vieram a lume, outorgando às formas do real, cujo substrato é a impermanência, uma nova gramática calcada em novos vocábulos não dicionarizados, possibilitando adentrar pelas sendas De vera, o que a artista está procurando, nesse fértil leito no qual repousam uma infinidade de fisionomias?

E como alguém apressado em se desvencilhar de utensílios manuseados, com as marcas do presente, por já ter feito o bom uso, lança para um passado próximo essas engenharias, que foi extrair dos desenhos em contornos das feições do humano, em evidência de movimento, virilidade e pausas provisionais, “cheios de passado” (Clarice Lispector). Compete ao artista fincar firme uma estela com seu nome e número, para que o futuro outorgue, (ou não), as sílabas de Mnemosyne, espanando a poeira negra da morte, ameaça sempiterna para todos os morituros. Assim como disse Fiama Hasse Pais Brandão: o tempo faz e desfaz.

Assim dizendo, doravante, quem plasmou arte, há que incensar oferendas votivas às sentinelas das portas bem aferrolhadas do futuro, acreditando em si e no valor do seu trabalho. Isto é, as mãos da artista, no qual uma disciplina diária logrou domar o desassossego de uma potência presente no seu temperamento, história de vida e forças que foram se agregando, por fim, obtendo guarida nas mãos dessa mulher: Ângela Almeida.

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