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sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Especial: Barbosa Lima Sobrinho e a Revolta de Princesa

Por: José Tavares de Araújo Neto.


Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho (1897–2000) foi um dos mais influentes jornalistas e intelectuais brasileiros do século XX. Pernambucano do Recife, advogado, escritor, historiador, professor e político, foi também uma das maiores vozes da imprensa nacional. Durante sua longa vida pública, presidiu a Associação Brasileira de Imprensa, foi deputado federal, governador de Pernambuco e membro da Academia Brasileira de Letras. Sua carreira na imprensa incluiu colaborações em periódicos como Diário de Pernambuco, Jornal do Comércio, Gazeta, Correio do Povo e Jornal do Brasil, onde escreveu por mais de setenta anos, até sua morte aos 103 anos. Mas, em 1930 — momento decisivo da história política nacional —, Barbosa não era apenas jornalista: era colunista de um dos jornais mais importantes de Pernambuco, o Jornal do Comércio, pertencente à família Pessoa de Queiroz, que figurava entre os principais incentivadores e financiadores do movimento armado de Princesa. Essa informação, longe de diminuir sua credibilidade, apenas revela o espaço político em que sua pena se movia: um lugar de combate, confronto e resistência. E é nesse contexto que surge sua crônica “Porque se sacrifica o sertão”, publicada no Jornal do Brasil, em 1º de abril de 1930. A crônica é uma peça de intervenção política. Barbosa Lima Sobrinho reage contra o que ele identifica como manipulação da opinião pública. Enquanto a imprensa urbana — especialmente a ligada a João Pessoa — pintava o presidente da Paraíba como herói civilizador, Barbosa expõe, com ironia cortante, o processo de demonização do coronel José Pereira Lima, líder da resistência sertaneja de Princesa. Ele abre o texto afirmando que ler as notícias sobre o conflito é “uma das coisas mais divertidas” daqueles dias. Não tarda em mostrar o motivo: de repente, João Pessoa vira um santo e José Pereira, um demônio. Antes da revolta, afirma Barbosa, ambos eram tratados como “anjos da mesma corte celestial”. A guerra os transformara — não a essência, mas a narrativa. “Somente naquele dia um se tornou o nefando e o outro, o herói.” Na crônica, o conflito não nasce de ideologias, mas de vaidades. José Pereira reivindica a inclusão do ex-governador João Suassuna como candidato a deputado federal. João Pessoa recusa e monta, sozinho, sua chapa política — um gesto que Barbosa qualifica de autoritário, sobretudo para alguém que se dizia liberal. Quando percebe que José Pereira mantém apoio popular e força eleitoral, João Pessoa aumenta a tensão: demite autoridades municipais de Princesa, ocupa militarmente Teixeira e ameaça fazer o mesmo em Princesa. Era o sertão encurralado. “Nesse momento, levantou-se o Sr. José Pereira, tomando a atitude que o presidente da Paraíba lhe impunha: a defesa armada.” Barbosa não suaviza os fatos. Ele assume posição. Na crônica, o sertão não inicia a guerra — ele resiste. A força de Barbosa Lima Sobrinho está no modo como ele transforma informação em denúncia. Ele acusa João Pessoa de tomar decisões sem consultar lideranças políticas locais; perseguir João Suassuna por rivalidades internas; sacrificar o sertão em nome de ambições pessoais e familiares.

“O Sr. João Pessoa [...] sacrificou o sertão.”

Essa frase não é argumento. É sentença. E Barbosa sabe o peso de cada palavra. É preciso destacar: Barbosa Lima escrevia em um jornal pertencente à família Pessoa de Queiroz, parte interessada no conflito e aliada de José Pereira. O cronista se torna assim uma voz do sertão dentro das páginas da grande imprensa urbana. Mas não é mero porta-voz de interesses: é um opositor consciente. Sua trajetória posterior — enfrentando Getúlio, a ditadura militar, Collor — prova que Barbosa não temeu contrariar poderes. Em 1930, sua trincheira era o sertão. “Porque se sacrifica o sertão” não é apenas uma crônica jornalística. É testemunho de época, visão de dentro, texto de combate. Barbosa Lima Sobrinho não se limita a narrar. Ele interpreta. Ele denuncia. Ele toma partido. E toma partido pelo sertão. Contra o discurso oficial, contra a ordem dominante, contra a narrativa cristalizada depois: Barbosa Lima Sobrinho ergueu a voz — e sua voz ecoou a voz de José Pereira. A crônica se torna, assim, documento fundamental para se compreender o movimento armado de Princesa não como aventura isolada, mas como reação política a um projeto de poder que excluía o sertão e negava sua representação. Barbosa enxergou antes de muitos: não se sacrificava apenas um homem — sacrificava-se o sertão. 

Especial: A 3ª edição do romance Agonia na Tumba, de Tarcísio Pereira

Por: José Tavares de Araújo Neto


O escritor e dramaturgo paraibano Tarcísio Pereira, membro da Academia Paraibana de Letras (APL) e da Academia de Letras de Pombal, lança nesta quinta-feira, 15 de novembro, às 18 horas, na sede da Academia Paraibana de Letras, a 3ª edição do romance Agonia na Tumba. O relançamento celebra três décadas de produção literária e intelectual do autor pombalense que se tornou referência na ficção e no teatro paraibanos. Nesse percurso, Tarcísio reúne 27 livros publicados, além de expressiva atuação na dramaturgia, assinando peças, roteiros e direções teatrais que consolidam seu nome no cenário cultural do estado. Agonia na Tumba é um romance singular e ousado, que conquista o leitor desde a primeira página pelo impacto de sua ideia central. Um homem acorda dentro de um caixão, já enterrado, e precisa enfrentar, no absoluto breu da morte, a própria consciência em farrapos. A obra, narrada em primeira pessoa, transforma-se num mergulho angustiante na mente de alguém que desperta no limite entre a vida e a decomposição — e é dessa fronteira que Tarcísio Pereira faz surgir um texto intenso, visceral, quase alucinógeno. O enredo permanece inteiramente dentro do túmulo. Não há cenários externos, personagens em movimento ou grandes ações. Tudo se resume à memória do protagonista, aos seus pensamentos desconexos, aos delírios e à lenta reconstrução dos fatos que o conduziram àquele destino. Essa escolha extrema — sem flashbacks convencionais ou pausas — intensifica a claustrofobia da narrativa. O leitor é aprisionado junto ao narrador e respira o mesmo ar rarefeito. A prosa de Tarcísio se apoia na oralidade, em frases que seguem o ritmo do pensamento atropelado e em imagens fortes, muitas vezes brutais. O texto é profundamente sensorial. O calor do espaço fechado, a falta de ar, o suor, o desespero físico, os grilos, os estalos do caixão e a batida surda das tentativas de fuga fazem da leitura uma experiência quase física. A narrativa oscila entre lucidez, delírio, memória e fantasia, como uma mente que luta para organizar o caos. Entre recordações de infância, culpas, violências, bebedeiras, traições, vaidades e fraquezas, revela-se o retrato de um homem comum — imperfeito, às vezes mesquinho, mas profundamente humano. Os momentos finais antes da suposta morte surgem fragmentados, ganhando forma pouco a pouco, como se o leitor participasse da montagem de um quebra-cabeça emocional. O suspense não gira apenas em torno da possibilidade de escapar do túmulo, mas também da busca por compreender como ele chegou ali. O romance dialoga com o thriller psicológico, com o fantástico e até com o horror, sem perder o vínculo com a tradição literária do Nordeste. Em 1992, ao apresentar a obra, W. J. Solha destacou o ritmo cinematográfico, a atmosfera que lembra Stephen King e o afastamento da rigidez regional, qualidades que o livro realmente apresenta sem deixar de carregar marcas afetivas e culturais paraibanas. Agonia na Tumba é curto, mas densíssimo. Prende, sufoca e inquieta. Funciona como uma reflexão sobre a morte, o medo ancestral de ser enterrado vivo, os remorsos que perseguem qualquer vida e a fragilidade da memória humana. Ao final, o leitor tem a impressão de ter atravessado um pesadelo daqueles que permanecem mesmo depois de acordar. É uma obra marcante, madura e surpreendente, que confirma Tarcísio Pereira como um dos grandes nomes da ficção paraibana contemporânea.


Especial: Damião Costa: a pintura como morada do instante.

Por Márcio de Lima Dantas.

O artista Damião Costa (São Vicente, RN, 1987), desde a infância, quando  os olhos se detinham nos leilões televisivos de pintura, pressentia, ainda sem  nomear, o fulgor de uma vocação. Autodidata no desenho, guiado mais pela  intuição do que por método, haveria, contudo, de encontrar orientação nas  mãos de um mestre distante, João Rodrigo, de Santa Fé do Sul (SP), cuja  presença virtual lhe abriu as fendas do ofício e lhe revelou os artifícios secretos da cor e da forma. Por intermédio duas amigas generosas, Vera Lúcia Lobo e Sônia, que lhe  custearam o aprendizado, iniciou-se na pintura a óleo sobre tela, tendo como  instrumentos tintas Corfix e Acrilex e o pincel como extensão natural da  alma. Desde então, o gesto, antes hesitante, transformou-se em verbo visual,  e o simples ato de misturar pigmentos passou a equivaler a um modo de  compreender o mundo: corpo, mente e espírito alinhados no mesmo  compasso. Com efeito, é mister dizer que o universo pictórico de Damião Costa se  estrutura sobre a ausência da figura humana — uma ausência que não é  carência, mas plenitude. As suas telas são espaços onde o humano cede lugar  ao respiro da paisagem, à mudez eloquente das coisas simples: um copo e  um limão, uma casinha solitária, um barco à deriva, a luz de um amanhecer  rural. O que vibra nessas composições é a delicada liturgia do instante, o  reluzir de um reflexo na água, o brilho luzidio da fruta madura, a  transparência do copo que guarda o silêncio. Há ainda, em suas telas, um diálogo tácito com a própria ideia de tempo. O  tempo, em Damião, não corre. Suas telas parecem suspender Cronos, esse  deus apressado, e devolve-nos a lentidão de Kairós, o tempo da oportunidade  interior. Em cada Casinha à beira da estrada ou Vida no campo, sentimos  que o artista restitui à imagem o seu direito à duração. O instante, cristalizado na tela, converte-se em eternidade sensível. É o  mesmo gesto dos monges que, ao varrerem o chão de pedra, transformam o  ato banal em contemplação. Assim também o pintor: seu trabalho é uma  forma de meditação materializada em pigmento. E, cada cor aplicada, ora  densa, ora translúcida, é como um mantra visual, repetido até que a  tripartição corpo, mente e espírito se unam no mesmo compasso de luz. Ora, vivemos tempos em que a pressa é o novo dogma, um estilo de vida, a  nova liturgia. Tudo é instantâneo, volátil, substituível. Neste cenário, a  pintura de Damião Costa resiste como um gesto de lucidez. Ela nos ensina a  olhar novamente, a desacelerar o pensamento, a ouvir a respiração do mundo.  Com efeito, em um tempo que busca o espetáculo, ele escolhe o sossego. Em  uma sociedade que confunde valor com visibilidade, ele trabalha na  penumbra, no silêncio das horas no qual o espírito se faz mais nítido e queda se em necessário sossego. Por isso, suas obras não precisam de alarde,  bastam os murmúrios. Elas reluzem, mas com a luz suave das coisas que não  têm pressa de se mostrar. E, se há algo que atravessa a obra de Damião Costa, como um rio subterrâneo  a murmurar sob as cores, é a luz. Não aquela que cega, mas a que revela.  Não a luz do meio-dia, brutal e sem mistério, mas a da aurora e da tarde,  quando o mundo parece lembrar de si. É uma luz morna, que não incide,  envolve tudo ao seu redor. Ela se insinua nas dobras do horizonte, acaricia  os contornos das casas, toca o espelho das águas com o pudor de quem pede  licença. Portanto, a luz, em Damião, não é mero artifício técnico: é linguagem. E o  que ela diz é silêncio. Cada quadro parece sustentar uma respiração contida,  como se o mundo inteiro, por um breve instante, tivesse parado para ouvir o  próprio coração. A luz não ilumina o objeto, escuta-o. Ouve a dinâmica do campo: a palha, a pedra, a fruta, o azul rarefeito do céu. Perscruta até o que  já não soa. Há, nesse modo de pintar, algo que remete ao que Gaston Bachelard chamou  de “poética do repouso”. Esse instante no qual o olhar se recolhe para dentro  das coisas e descobre nelas uma morada. Em Amanhecer na roça, por  exemplo, o dia não começa: é anunciado pela deusa Eos (Aurora), como  quem abre lentamente uma janela sobre o passado. Em Casinha no sítio, a  luz parece vir de dentro das paredes, como se a casa tivesse alma. Entre as muitas paisagens do artista, há uma que se destaca não pela cor ou  pela técnica, mas pela densidade simbólica que nela habita. Estou falando de  Barco à deriva, a tela em que o artista parece condensar toda a sua metafísica  do silêncio, todo o rumor contido de sua poética. O barco, isolado sobre um  lençol de águas imóveis, sem vela, sem remos, sem tripulantes, é mais que  imagem: é emblema. Nesse sentido, nesse barco que flutua entre o céu e a água, podemos  reconhecer algo do destino humano: a consciência de estar lançado em um  espaço sem porto, conduzido por forças invisíveis. É o mesmo sentimento  que anima os versos de Fernando Pessoa quando escreve, em Mensagem:  “Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu”. Eis  o paradoxo que o pintor parece intuir com o pincel: o risco e a beleza  coexistem na mesma superfície. Em Barco à deriva, o horizonte é amplo, mas a travessia é íntima. Não há  vento, nem rota, nem promessa, apenas o flutuar. E é nesse flutuar que a tela  se torna espelho: o espectador vê-se ali não como passageiro, mas como o  próprio barco, entregue à correnteza do tempo. Assim, a pintura, mais do que  representar, experimenta o existir. É expressão do ser. Na verdade, não se trata de um naufrágio, mas de um estado. O barco não  está perdido, está em repouso. É uma imagem de suspensão, um instante  anterior ao verbo, quando o mundo ainda não precisara de nomes. Damião  pinta à deriva como quem compreende que o destino não é chegar, mas  permanecer em travessia, que o repouso é também um modo de seguir. A paleta é sóbria, quase ascética: azuis dissolvidos, ocres pálidos, brancos  que lembram o brilho do sal. Tudo ali parece conter uma luz que não vem do  sol, mas do próprio interior da água. A serenidade do quadro é quase  litúrgica. Por isso, Barco à deriva não é apenas paisagem, é quase uma  confissão. Há algo de litúrgico nessa imobilidade. Como se o pintor houvesse  percebido, à maneira dos antigos místicos, que a salvação talvez resida na  aceitação do fluxo. O barco, sem timoneiro, torna-se figura do abandono  fecundo no instante em que o homem, cansado de querer governar o mar,  entrega-se à deriva e encontra, enfim, o centro do círculo. Dessarte, o que há nesse quadro é uma ética da contemplação. O artista não  pretende narrar a aventura do homem sobre o mar, mas o instante em que o  mar o contempla de volta. E nesse olhar recíproco, nesse encontro mudo  entre água e consciência, a pintura realiza o que a filosofia apenas ensaia: a  reconciliação entre o visível e o invisível, o finito e o eterno. Portanto, a opus magnum de Damião Costa é também sua metáfora  definitiva: a arte como deriva, o pincel como leme entregue ao vento, o olhar  como vela aberta ao acaso da luz. O artista não conduz, é conduzido. E talvez  seja por isso que suas telas nos devolvem ao essencial: o sossego de quem, habitando o tempo de Kairós, compreendeu que não há porto mais seguro  que o instante presente. Vale a pena ressaltar também que o universo pictórico do pintor nos conduz a um espaço onde a presença se faz sentir justamente pela ausência. Suas  telas não precisam de figuras humanas para transmitir emoção, pelo  contrário, é no silêncio que se revela a densidade de sua arte. Cada plano de  luz e sombra atua como uma respiração pausada, um instante suspenso em  que o tempo parece desacelerar, como se Cronos tivesse interrompido suas  largas passadas para nos permitir habitar, ainda que por momentos, o ritmo  próprio do olhar do artista. A ausência de figuras humanas não é vazio estéril: é convite à reflexão,  espaço para que o espectador projete memórias, sentimentos e reflexões. As  cores, densas ou translúcidas, funcionam como ponte entre o visível e o  invisível, entre o real e o imaginário. Há nas suas paisagens e composições  uma espécie de arquitetura silenciosa, em que cada elemento dialoga com o  outro e com o espaço que os rodeia, estabelecendo uma comunicação íntima,  empática e quase secreta para quem observa. O silêncio de Damião é também presença: ele nos força a ouvir o que não é  dito, a perceber a matéria em sua própria essência, a perceber a luz não  apenas como instrumento de visibilidade, mas como matéria sensível capaz  de tocar e transformar o olhar. Nessa dimensão, a pintura se aproxima da  poesia e da filosofia, transformando cada tela em reflexão sobre o tempo, a  memória e a percepção do mundo. Em última instância, a obra de Damião Costa nos lembra que a arte é também  experiência, tanto quanto representação. A ausência é presença, mais do que  vazio. E, no diálogo entre luz, sombra e silêncio, encontramos um convite a  assuntar não apenas o mundo que vemos, mas também o mundo que  sentimos e imaginamos. É nesse limiar, entre o visível e o invisível, que sua  pintura nos revela a plenitude de uma sensibilidade profunda, capaz de  transformar o simples ato de olhar em experiência de imersão e descoberta. Eis o sentido maior de sua obra: ser um abrigo contra a azáfama  contemporânea, cujo Ar do Tempo não nos deixa enganar, haja vista  presenciarmos uma realidade com toda espécie de invenção, ilusões,  simulacros, felicidade artificial. Uma lembrança de que o humano só  reencontra a si mesmo quando silencia. Suas telas não apenas representam o  mundo, elas o regeneram. São convites à quietude, exercícios de presença,  lampejos de eternidade. Em tempos de pressa e desatenção, Damião Costa  nos devolve o dom de ver. E ver, em sua pintura, é um ato de fé, a crença silenciosa de que a luz ainda é capaz de revelar o sentido oculto das coisas.  Suas telas parecem confirmar a lição de Heráclito: “tudo flui”, mas há fluxos  que só a quietude é capaz de perceber.


terça-feira, 11 de novembro de 2025

Especial: Santana: variações em torno do mesmo dramático Cristo Crucificado

Por: Márcio de Lima Dantas.

O que contamina o homem não é o que entra na  

boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina  

o homem. 

Mateus 15:11 

1. 

Antônio Santana de Lima (1964) nasceu em Pedro Velho, RN. Com seis  meses, foi residir no Ceará. Hoje mora na cidade de Ceará-Mirim. Menino  precoce, aos dez anos iniciou os trabalhos de esculpir a madeira. Suas  esculturas quase sempre são de natureza religiosa, tendo Jesus Cristo  crucificado como o referente que mais se repete. 

Essas variações em torno do mesmo tema acabam por imprimir uma vontade,  por parte do espectador, de inquirir com atenção e de observar o que  distingue uma escultura da outra. Dito isto, não há como não buscar as razões  dessa ideia fixa do escultor, como se cada peça expressasse uma tentativa de  plasmar algo que se encontra no seu íntimo. Talvez uma forma que se recusa  a emergir, seus traços e sua forma, de uma maneira que satisfaça o artista. 

Na verdade, essa constante demanda um esforço de uma espécie de  obrigação de elaborar um Cristo (o messias) cuja forma encontra-se  resguardada em íntimos recônditos. Embora não logre êxito, ele teima em  entalhar na imburana ou no cedro esse que o mito diz que foi crucificado. 

Um personagem cuja retórica acerca da sua provável existência já dura mais  de dois mil anos. 

Com efeito, não temos onde ordenar nossa procura, mesmo que seja uma  pequena fração, a não ser na experiência de vida de Santana. A fração nos  possibilitaria especular esse jeito dramático e essa singularidade das  esculturas. Podemos lançar luz, por tabela, em prováveis respostas de uma  vida na qual esteve banhado em uma busca etérea, para quem vê de fora,  mas, para ele, bastante diferente, com valia e já com um termo de quase todo  trabalho de arte: a titulatura. 

Resta intentar. Não com o prazer completo, mas, de todo modo, insculpe a  possibilidade de uma sensação de alívio, um brilho no olhar, ao dar por  encerrada a madeira escavada, tendo gerado um personagem que mais o atrai  e diz de si mesmo.

2. 

As esculturas de Santana nos conduzem e nos incitam a classificá-lo em  características inerentes a um determinado estilo histórico da trajetória da  arte. Inicialmente, evocamos o Expressionismo e seus objetivos de, ao invés  de buscar harmonia estética ou empatia, lançar-se para os lados nos quais  habitam os sentimentos. Por isso, o caráter dramático presente em todas as  peças. Essa fisionomia recorrente de um Cristo crucificado de maneira  cênica não está limitada às inúmeras esculturas, mas também se estendeu a  um belo São Sebastião, flechado com mais de três setas, como costuma ser  representado. 

Na verdade, a busca por expressar o que se passa (ou que habita) no seu  interior conduz por caminhos em que a ênfase se revela nas feições do rosto:  a cabeça exageradamente reclinada, o corpo esticado, os braços e o tronco  em queda. 

Como se não bastasse o que permaneceu como emblema principal da Igreja  Católica, também carrega no modo de esculpir um jeito como se a peça  estivesse inacabada. Apresenta-se nua e crua na madeira, sem a preocupação  de polir ou de dar acabamento. Essa aparência não refinada é, na verdade,  uma proposital distorção para ampliar todas as linhas com um aspecto  sombrio de dor e o sofrimento. 

3. 

Essa pegada de esculturas que não parecem finalizadas, somente escavadas,  com um aspecto de incompletude, resguarda uma atmosfera sombria e eivada  de luto e melancolia. Apesar desse traço, como se estivesse disposto a não  finalizar a escultura, em uma espécie de capricho satisfazendo traços de uma  personalidade introspectiva. Ora, é exatamente aí onde repousa uma alta  voltagem emocional, produzindo em quem contempla um desconcerto na  alma. 

De fato, basta ter acesso ou contemplar com atenção a maneira como  representou a crucifixão de dois discípulos de Jesus Cristo: Pedro, com a  cruz invertida, de cabeça para baixo, e André, com a cruz em formato de X,  também conhecida como cruz decussata ou santor. 

Ambos foram martirizados de maneira diferente do rabi. Essa atitude expôs  a humildade face à tradicional estaca ou poste vertical. A tradição diz que  Jesus foi obrigado a carregar a trave horizontal, chamada patíbulo, uma barra 

onde seria crucificado. Também os discursos em torno da Via Dolorosa  fazem referência a duas das mais dramáticas passagens: a ajuda de Simão  Cireneu, que pegou a cruz e a carregou nos ombros, e o encontro com as  mulheres de Jerusalém. Chorais todos comigo (Carmina Burana, “Fortuna”). 4. 

Faço saber que a presença de traços muito fortes do Expressionismo,  confirmados primeiro pelo artifício de desgastar a madeira de maneira rude  e pela escultura com aspecto de inacabado, reforça, provavelmente concerne  ao o desejo daquele que é considerado o primeiro passo em direção às  entranhas, aos esconderijos residentes na nossa psiqué. 

Quer dizer, a figura adentra regiões internas referentes à dimensão  emocional. Mesmo refletindo com a razão, distancia-se um tanto — um movimento mais complexo de alcançar, caso considere uma obra de arte e decline sua adesão. 

Onde queremos chegar? Apontar um outro estilo artístico presente nas  esculturas de Santana: o Barroco, com seus apelos à emoção, cultuando um  exagero de formas, evocando, em esculturas, pinturas e afrescos, um intenso  convite à contemplação de um eventual outro mundo, no qual havia muito  de dramático, de teatro. 

A bem da verdade, precisava ser muito ingênuo para se deixar levar por essas  motivações sem nenhum decoro, apelando para o adorno, para o exagero, buscando chafurdar na subjetividade e na emoção dos que contemplavam,  mormente as igrejas. 

As esculturas de um Jesus Cristo crucificado lembram muito as que se  encontram presentes nas igrejas barrocas espanholas, sobretudo quando se  trata das peças do Senhor Morto. O caráter dramático geralmente tem sua  origem na fisionomia de um homem lacerado, visivelmente submetido a  excessos no decorrer da Via Dolorosa. 

Com efeito, é um homem magro, com pouca musculatura, sangue por todos  os lados, como se estivesse buscando piedade e identificação. Nunca tinha  visto uma representação tão dramática do mártir de São Sebastião:  panejamento bege, com riscos dourados paralelos, e muito sangue  derramando, causado pelo excesso de setas no jovem corpo, submetido a  uma etapa de sua futura morte.

5. 

Santana capricha nas tintas fortes, manuseando uma mínima paleta, na qual  predominam o dourado, o vermelho e um bege fosco para o corpo. É mister  dizer que sua obra não se limita aos santos e mártires da Igreja Católica, há  também muitas peças que podemos indigitar como profanas, considerando a  tradicional dicotomia sagrado-profano. 

De fato, eis o que podemos citar: Rezadeira, Homem acendendo cigarro,  Lampião, Maria Bonita, Anjo com seios, Homem no barco, Homem bebendo  em um pequeno copo, além de entidades pertencentes ao Candomblé. 

Por fim, a obra do escultor Santana é uma das mais originais produzidas  atualmente na comarca das artes visuais do Rio Grande do Norte. Isso se  prova por um domínio pleno em desgastar a madeira, fazendo emergir  personagens conhecidos, plasmados por um viés diferente, cuja dicção tem  traços que conduzem para o que for mais dramático possível, em se tratando  das coisas religiosas. “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e  tome cada dia a sua cruz, e siga-me”. (Lucas 9:23)