Márcio de Lima Dantas
Para onde me irei do teu Espírito ou para onde
fugirei da Tua face? Se subir ao céu, tu aí estás; se
fizer no Seol a minha cama, eis que tu ali estás
também.
139: 7-8
Luiz Varela Laurentino da Cunha (1941-2005) é um dos principais personagens das artes visuais na cidade de Mossoró, integra, junto com outros colegas, uma circunscrição temporal. Assim é que podemos arrolar os nomes de Boulier, Ney Morais, Rogério Dias, Vicente Vitoriano e Toinho Silveira. Mesmo integrando um luxuoso naipe de produtores de arte que por tempo muito ou tempo pouco passou pelo ateliê do grande nome na pintura da cidade: Marieta Lima, por sua longevidade, em torno de 100 anos, passaram pela estreita rua ao lado da ACEU, muitos do que hoje se destacam como a prata das artes visuais no estado do Rio Grande do Norte. Também é bom lembrar que não configuram uma geração uniforme tanto na forma quanto nas temáticas. Só para citar um exemplo, é bastante distinta a obra de Vicente Vitoriano, com suas imagens dialogando com o que de mais contemporâneo havia.
Comparando com Toinho Silveira, que optou por um traço naïf e desenhos de uma grande simplicidade estilística, configurando uma espécie de arte ingênua dotada de uma elaborada feitura.Assim sendo, o constelado céu da arte, com suas plêiades de variegadas estrelas, pulsando cada uma a seu gênero e modo, nos faz atestar por meio dessa comparação a diversidade de uma cidade ainda um tanto provinciana, o quão havia toda uma sorte de maneiras de se expressar ou de ousar uma resposta ao que havia no mundo da arte, quer seja buscando os meios de pintar evocando a herança deixada na tradição (Academicismo ou Classicismo), ou estabelecendo leituras com o que havia de mais contemporâneo, das vanguardas em evidência ou aquilo que imprimira seu número na sequência cronológica periodológica da marcha inelutável da arte em sua inquietude de bulir no íntimo de alguns indivíduos, mas que jaz, nos amplos espaços internos, necessidades de expressões bem diferentes dos paradigmas que conformam a realidade.
Acontece que a singularidade artística não fala tão-somente por si, para si, mas organiza discursos contidos nas ruas e esquinas do Espírito do Tempo, haja vista a complexidade deste com sua “obrigação” de falar por meio de um vocabulário concernente a cada etnia, a cada povo, a cada distrito, trazendo dos confins além da fala as expressividades de vanguardas da arte ou as formas e desenhos da cultura popular.
Dentre as inúmeras naturezas-mortas deixadas pelo artista, destaca-se um conjunto de três melancias; três abertas e duas tendo a função, ao que parece, de compor uma inusitada e harmoniosa temática com um fruto de uma mesma espécie, sendo o lugar no qual as frutas estão postas, ao fundo, e riscando um contorno, divisamos um negro retinto. Com efeito, essa tisna negra não somente parece funcionar como uma sorte de moldura não muito comum, na medida de não ser corrente o monocromatismo como fundo, - e ademais o fato dessa cor preta em uma tela cuja figuração engendrou uma obra tendo tão-somente a cor verde, o branco e o vermelho, cores da fruta melancia, - que aqui estão ressaltadas, ao que tudo indica, com o objetivo de fazer sobressair as cinco frutas quedadas sobre um suporte que parece ser uma mesa. Quero dizer do não memorar frequentemente no universo das artes, sobremodo nas indigitadas telas conhecidas como naturezas-mortas, que tratamos aqui. Ainda mais quando se trata de uma fruta pouco comum.
Poucos chegaram ao patamar de Varela, em Mossoró, no trabalho do entalhe em cimento fresco, desenhando figuras em alto-relevo, riscando sua arte nos muros, igrejas, jardins e praças públicas os belos painéis. Visivelmente influenciado pelo antológico Manxa (cuja obra-prima é o painel do prédio da reitoria da UFRN). Sendo assim, Varela, com propriedade, imprime uma solução de continuidade ao nosso grande artífice em entalhes de madeira vazada ou cimento sem a mistura de tintas. Tornando os painéis de uma grande elegância, mostrando seu parentesco com as obras de cimento armado do modernismo.
Evoco aqui Oscar Niemeyer, em estruturas maiores, tais como grandes edificações, ou Lina Bo Bardi, em obras com estruturas menores, como os suportes de cimento e vidro para expor as telas do MASP.
Quando o artista compromete sua arte por meio de determinados artifícios que nos fazem reconhecer eventos, passagens ou fatos históricos sucedidos na polis, tais elementos nos conduzem naturalmente a compreender que alguns mitos estão sendo retomados e ritualizados de maneira explícita ou sutil. Essa evocação de certos acontecimentos confere um valor da arte com uma dimensão de engajada, no sentido de que para além do valor estético, vigora um discurso concedendo um encerramento extraído do cotidiano. Relembrando à posteridade pontos importantes de uma trajetória coletiva.
Contudo, há de ter uma medida dos mitos reelaborados em todas as formas da arte na cidade, senão adentra pelo lugar-comum e pela banalização, lançando imagens beirando a caricatura e a tediosa mesmice, como se não tivesse outra coisa para a criação artística.
Esses eventos históricos estão arraigados para sempre, já que não apenas riscam suas narrativas na História, detendo um ethos mitológico na sua necessidade de ser ritualizado nos eventos cívicos. Mesmo assim, há de recompor de maneira vívida, não em uma composição tíbia. Um dos mais importantes painéis de Varela é o que se encontra na Travessa Martins de Vasconcelos. Aqui, encontramos fatos concernentes a uma espécie de superfície no qual repousam três eventos históricos: Professora Celina Guimarães, em 5 de abril de 1928; Lampião, 13 de junho de 1883; 30 de setembro de 1883, Libertação dos escravos, cinco anos antes da Lei Áurea.
Para que não sejam essas datas absorvidas pelo assomar dos bafejos acres de Cronos, devorador de tudo o que é vivo, pulsando látegos nos quais nem consultados fomos para receber e outorgar uma eventual solução. Apenas evocamos às forças que gerem os céus e as estrelas para que nos imprimam no espírito o dom da fortaleza, cujo perímetro alcança o que diz respeito à comarca das datas da cabeça e sua sempre presente somatização, nos fazendo suportar com resignação as tantas vicissitudes.
Há uma outra faceta de Varela. Quero falar da sua intervenção em espaços vinculados ao coletivo, sobretudo aquilo que vai valer pela contemplação do todo, de partes interdependentes, ou seja, não é uma tela que vai valer por si, mas por relação ao todo seu derredor, portanto vigora a necessidade de observar o cenário como junção de elementos, deixando-se possuir pelo ambiente, perfumes e gentes muitas de todas as qualidades, para, enfim, extrair uma beleza que só esse momento pode proporcionar.
Estou me referindo à arte de decorar eventos ou datas comemorativas, ornamentando bailes de Carnaval (como se sabe, outrora acontecia nos grandes clubes da cidade, além dos pequenos cortejos nas ruas). Também era contratado para ornamentar casamentos ou eventos de 15 anos, fazendo valer seu domínio de conceber um conjunto de formas e cores com um só mesmo tema. Seríamos injustos se não citássemos o nome do seu amigo Boulier. Ao que parece, Varela teria recebido influência do também amigo e discípulo de Marieta Lima.
Por muito tempo, Joseph Boulier foi um insuperável artista no ornamentar ambientes para sediar bailes de carnaval. Até hoje se fala do seu talento e maestria quando convidado para delinear texturas e cores de determinados Bailes de Máscaras, dominando com destreza, e ficando conhecido por deter uma grande rapidez em ornamentar um ambiente a partir de uma ideia primeva, para a consecução das ornamentações que sediariam essas aglomerações em homenagem ao deus Dionísio. Era como se fosse o cenário de uma ópera viva, na qual os foliões eram os personagens de uma noite de gala.
Como observamos ao longo deste escrito, há de reconhecer no artista Varela inúmeras capacidades de lidar com diversos materiais, configurando um talento artístico inquieto ao dar forma ao que lateja em seu íntimo. Em síntese, eis o óleo sobre tela, do figurativo ao abstrato, mas também busca sair de casa em uma procura de partes outras para, em uma tentativa, assim como todo vivente.
Se for para escolher o melhor trabalho, o Magnum opus, desse exíguo corpus de trabalhos de Varela, a que tive acesso para elaborar este ensaio, ficaria com a imponente tela que representa uma salina, paisagem bastante comum nas terras do entorno da cidade de Mossoró, tais como Areia Branca, Macau e Grossos. Quando se desloca para essas cidades, é mister caminhar devagar, para não perder o espetáculo das brancas salinas ladeando os dois lados por onde avança o automóvel, esplendendo sob um transparente sol.
Por isso nos deteremos com mais vagar sobre a tela que representa uma salina, e reputamos como a mais bem acabada, por um feitio possibilitador de revelar o domínio do desenho, da forma, dos traços e ângulos; enfim, da perspectiva, da cor e seu manuseio, obtendo pleno conhecimento profundo e seguro da luz e sua transparência, permitindo que os espaços internos sobressaiam seus ângulos em 90º. Ademais, a preferência por cores esmaecidas, predominando o azul, tanto no firmamento quanto nas águas represadas, para evaporar e mais tarde terem o sal.
É bom repetir o fato de podermos observar o que chamamos pleno domínio do desenho, como se trata de uma justaposição de quadrados (tanques), quase que esses meios empregados necessitam da perspectiva para assentar as partes em uma totalidade. Com efeito, houve uma deliberação de justapor elementos para organizar os espaços do quadro. Do lado direito, há um grande catavento, estrutura para trazer água do lençol freático. Do lado esquerdo, há uma casa, opondo-se ao cata-vento. No centro, temos muitos tanques de águas represadas, homens trabalhando e grandes rumas de sal em formas quadráticas, preparadas para serem levados aos armazéns nos quais serão processados para a comercialização.
Difícil é a maestria de pintar uma tela conseguindo apreender um sol tão transparente quanto o que foi assentado nessa composição. Consabido é, também admirado pelos visitantes que aqui chegam, o salientar desse sol muito claro e capaz de fazer com que os contempladores observem que cada cor se defina e apareça em plenitude, que se faça presente na sua diferença, que albergue contrastes com outras cores ou matizes. Por fim, outorgue a essa tela o valor de chef-d’oeuvre da obra múltipla do pintor Varela.
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