email atual aluisiodutra@gmail.com

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Especial: Caminhando pelas adjacências da obra do pintor Varela

  

Márcio de Lima Dantas 

Para onde me irei do teu Espírito ou para onde  

fugirei da Tua face? Se subir ao céu, tu aí estás; se  

fizer no Seol a minha cama, eis que tu ali estás  

também. 

139: 7-8 

Luiz Varela Laurentino da Cunha (1941-2005) é um dos principais personagens  das artes visuais na cidade de Mossoró, integra, junto com outros colegas, uma  circunscrição temporal. Assim é que podemos arrolar os nomes de Boulier, Ney Morais,  Rogério Dias, Vicente Vitoriano e Toinho Silveira. Mesmo integrando um luxuoso naipe  de produtores de arte que por tempo muito ou tempo pouco passou pelo ateliê do grande  nome na pintura da cidade: Marieta Lima, por sua longevidade, em torno de 100 anos,  passaram pela estreita rua ao lado da ACEU, muitos do que hoje se destacam como a  prata das artes visuais no estado do Rio Grande do Norte. Também é bom lembrar que  não configuram uma geração uniforme tanto na forma quanto nas temáticas. Só para citar  um exemplo, é bastante distinta a obra de Vicente Vitoriano, com suas imagens  dialogando com o que de mais contemporâneo havia.

Comparando com Toinho Silveira, que optou por um traço naïf e desenhos de uma grande simplicidade estilística,  configurando uma espécie de arte ingênua dotada de uma elaborada feitura. 

Assim sendo, o constelado céu da arte, com suas plêiades de variegadas estrelas,  pulsando cada uma a seu gênero e modo, nos faz atestar por meio dessa comparação a  diversidade de uma cidade ainda um tanto provinciana, o quão havia toda uma sorte de  maneiras de se expressar ou de ousar uma resposta ao que havia no mundo da arte, quer  seja buscando os meios de pintar evocando a herança deixada na tradição (Academicismo  ou Classicismo), ou estabelecendo leituras com o que havia de mais contemporâneo, das  vanguardas em evidência ou aquilo que imprimira seu número na sequência cronológica periodológica da marcha inelutável da arte em sua inquietude de bulir no íntimo de alguns indivíduos, mas que jaz, nos amplos espaços internos, necessidades de expressões bem  diferentes dos paradigmas que conformam a realidade. 

Acontece que a singularidade artística não fala tão-somente por si, para si, mas  organiza discursos contidos nas ruas e esquinas do Espírito do Tempo, haja vista a  complexidade deste com sua “obrigação” de falar por meio de um vocabulário  concernente a cada etnia, a cada povo, a cada distrito, trazendo dos confins além da fala  as expressividades de vanguardas da arte ou as formas e desenhos da cultura popular. 

Dentre as inúmeras naturezas-mortas deixadas pelo artista, destaca-se um  conjunto de três melancias; três abertas e duas tendo a função, ao que parece, de compor  uma inusitada e harmoniosa temática com um fruto de uma mesma espécie, sendo o lugar  no qual as frutas estão postas, ao fundo, e riscando um contorno, divisamos um negro  retinto. Com efeito, essa tisna negra não somente parece funcionar como uma sorte de  moldura não muito comum, na medida de não ser corrente o monocromatismo como  fundo, - e ademais o fato dessa cor preta em uma tela cuja figuração engendrou uma obra  tendo tão-somente a cor verde, o branco e o vermelho, cores da fruta melancia, - que aqui  estão ressaltadas, ao que tudo indica, com o objetivo de fazer sobressair as cinco frutas quedadas sobre um suporte que parece ser uma mesa. Quero dizer do não memorar  frequentemente no universo das artes, sobremodo nas indigitadas telas conhecidas como  naturezas-mortas, que tratamos aqui. Ainda mais quando se trata de uma fruta pouco  comum. 

Poucos chegaram ao patamar de Varela, em Mossoró, no trabalho do entalhe em  cimento fresco, desenhando figuras em alto-relevo, riscando sua arte nos muros, igrejas,  jardins e praças públicas os belos painéis. Visivelmente influenciado pelo antológico  Manxa (cuja obra-prima é o painel do prédio da reitoria da UFRN). Sendo assim, Varela,  com propriedade, imprime uma solução de continuidade ao nosso grande artífice em  entalhes de madeira vazada ou cimento sem a mistura de tintas. Tornando os painéis de  uma grande elegância, mostrando seu parentesco com as obras de cimento armado do  modernismo.
Evoco aqui Oscar Niemeyer, em estruturas maiores, tais como grandes edificações, ou Lina Bo Bardi, em obras com estruturas menores, como os suportes de  cimento e vidro para expor as telas do MASP. 

Quando o artista compromete sua arte por meio de determinados artifícios que nos  fazem reconhecer eventos, passagens ou fatos históricos sucedidos na polis, tais  elementos nos conduzem naturalmente a compreender que alguns mitos estão sendo  retomados e ritualizados de maneira explícita ou sutil. Essa evocação de certos  acontecimentos confere um valor da arte com uma dimensão de engajada, no sentido de  que para além do valor estético, vigora um discurso concedendo um encerramento extraído do cotidiano. Relembrando à posteridade pontos importantes de uma trajetória  coletiva. 

Contudo, há de ter uma medida dos mitos reelaborados em todas as formas da arte  na cidade, senão adentra pelo lugar-comum e pela banalização, lançando imagens  beirando a caricatura e a tediosa mesmice, como se não tivesse outra coisa para a criação  artística.  

Esses eventos históricos estão arraigados para sempre, já que não apenas riscam  suas narrativas na História, detendo um ethos mitológico na sua necessidade de ser  ritualizado nos eventos cívicos. Mesmo assim, há de recompor de maneira vívida, não em  uma composição tíbia. Um dos mais importantes painéis de Varela é o que se encontra na  Travessa Martins de Vasconcelos. Aqui, encontramos fatos concernentes a uma espécie  de superfície no qual repousam três eventos históricos: Professora Celina Guimarães, em  5 de abril de 1928; Lampião, 13 de junho de 1883; 30 de setembro de 1883, Libertação  dos escravos, cinco anos antes da Lei Áurea. 

Para que não sejam essas datas absorvidas pelo assomar dos bafejos acres de  Cronos, devorador de tudo o que é vivo, pulsando látegos nos quais nem consultados  fomos para receber e outorgar uma eventual solução. Apenas evocamos às forças que  gerem os céus e as estrelas para que nos imprimam no espírito o dom da fortaleza, cujo  perímetro alcança o que diz respeito à comarca das datas da cabeça e sua sempre presente  somatização, nos fazendo suportar com resignação as tantas vicissitudes.  

Há uma outra faceta de Varela. Quero falar da sua intervenção em espaços  vinculados ao coletivo, sobretudo aquilo que vai valer pela contemplação do todo, de  partes interdependentes, ou seja, não é uma tela que vai valer por si, mas por relação ao todo seu derredor, portanto vigora a necessidade de observar o cenário como junção de  elementos, deixando-se possuir pelo ambiente, perfumes e gentes muitas de todas as  qualidades, para, enfim, extrair uma beleza que só esse momento pode proporcionar. 

Estou me referindo à arte de decorar eventos ou datas comemorativas,  ornamentando bailes de Carnaval (como se sabe, outrora acontecia nos grandes clubes da  cidade, além dos pequenos cortejos nas ruas). Também era contratado para ornamentar  casamentos ou eventos de 15 anos, fazendo valer seu domínio de conceber um conjunto  de formas e cores com um só mesmo tema. Seríamos injustos se não citássemos o nome  do seu amigo Boulier. Ao que parece, Varela teria recebido influência do também amigo  e discípulo de Marieta Lima. 

Por muito tempo, Joseph Boulier foi um insuperável artista no ornamentar  ambientes para sediar bailes de carnaval. Até hoje se fala do seu talento e maestria quando  convidado para delinear texturas e cores de determinados Bailes de Máscaras, dominando  com destreza, e ficando conhecido por deter uma grande rapidez em ornamentar um  ambiente a partir de uma ideia primeva, para a consecução das ornamentações que  sediariam essas aglomerações em homenagem ao deus Dionísio. Era como se fosse o  cenário de uma ópera viva, na qual os foliões eram os personagens de uma noite de gala. 

Como observamos ao longo deste escrito, há de reconhecer no artista Varela  inúmeras capacidades de lidar com diversos materiais, configurando um talento artístico  inquieto ao dar forma ao que lateja em seu íntimo. Em síntese, eis o óleo sobre tela, do  figurativo ao abstrato, mas também busca sair de casa em uma procura de partes outras  para, em uma tentativa, assim como todo vivente. 

Se for para escolher o melhor trabalho, o Magnum opus, desse exíguo corpus de  trabalhos de Varela, a que tive acesso para elaborar este ensaio, ficaria com a imponente  tela que representa uma salina, paisagem bastante comum nas terras do entorno da cidade  de Mossoró, tais como Areia Branca, Macau e Grossos. Quando se desloca para essas  cidades, é mister caminhar devagar, para não perder o espetáculo das brancas salinas  ladeando os dois lados por onde avança o automóvel, esplendendo sob um transparente  sol. 

Por isso nos deteremos com mais vagar sobre a tela que representa uma salina, e  reputamos como a mais bem acabada, por um feitio possibilitador de revelar o domínio do desenho, da forma, dos traços e ângulos; enfim, da perspectiva, da cor e seu manuseio,  obtendo pleno conhecimento profundo e seguro da luz e sua transparência, permitindo  que os espaços internos sobressaiam seus ângulos em 90º. Ademais, a preferência por  cores esmaecidas, predominando o azul, tanto no firmamento quanto nas águas  represadas, para evaporar e mais tarde terem o sal. 

É bom repetir o fato de podermos observar o que chamamos pleno domínio do  desenho, como se trata de uma justaposição de quadrados (tanques), quase que esses  meios empregados necessitam da perspectiva para assentar as partes em uma totalidade. Com efeito, houve uma deliberação de justapor elementos para organizar os espaços do  quadro. Do lado direito, há um grande catavento, estrutura para trazer água do lençol  freático. Do lado esquerdo, há uma casa, opondo-se ao cata-vento. No centro, temos  muitos tanques de águas represadas, homens trabalhando e grandes rumas de sal em  formas quadráticas, preparadas para serem levados aos armazéns nos quais serão  processados para a comercialização. 

Difícil é a maestria de pintar uma tela conseguindo apreender um sol tão  transparente quanto o que foi assentado nessa composição. Consabido é, também  admirado pelos visitantes que aqui chegam, o salientar desse sol muito claro e capaz de  fazer com que os contempladores observem que cada cor se defina e apareça em  plenitude, que se faça presente na sua diferença, que albergue contrastes com outras cores  ou matizes. Por fim, outorgue a essa tela o valor de chef-d’oeuvre da obra múltipla do  pintor Varela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário