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segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Especial: O tipógrafo Meneleu: um trabalho que mescla funcionalidade e arte.

Márcio de Lima Dantas 

Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem herdade a  

herdade, até que não haja mais lugar, e fiquem  

como únicos moradores no meio da terra. 

Isaías, 5:8 



O cuidado e a responsabilidade do Sr. Henrique para com o seu ofício (Carimbos  Mossoró), o de administrar uma tipografia na cidade de Mossoró, nos legou um pequeno  e precioso álbum pleno de imagens advindas de xilógrafos anônimos e uma quantidade  razoável de rótulos e outros materiais oriundos do trabalho do tipógrafo Meneleu. A gente bem que podia situar o artista por meio de dados que o tornam mais  fascinante do que um tipógrafo nascido em Areia Branca. Nasceu em 1917, vindo a  falecer em 17.01.2008, com 90 anos. Filho de Antônio Caetano dos Santos e Aureliana  Leonísia dos Santos. Com efeito, Meneleu participou indiretamente da Insurreição Comunista de 1935  (23 a 27 de novembro). Tinha apenas 18 anos. Foi arrolado como um dos participantes  ativos por denúncia de seus amigos de trabalho, que, para se livrarem, puseram-no como  um dos principais atores do movimento. Na verdade, trabalhava no jornal A Ordem, tendo  sido, junto com os ditos colegas, conduzido para o jornal A Liberdade, que era o órgão  oficial dos que se organizavam para integrar o grupo responsável pela Revolta Comunista.  Fora levado não porque era militante comunista, mas porque era um dos melhores  tipógrafos da cidade (SANTOS, Francisco Meneleu dos.

Coisa julgada e cartas de  amigos. Mossoró: Queima-Bucha, 2006). Dessarte, editando o jornal A Liberdade, no qual eram difundidas as ideias do  Levante Comunista, não havia, por seu turno, uma convicção política militante. Era mais  um operário de grande qualidade no domínio da tipografia. Amando de verdade o seu  trabalho, é suficiente contemplar alguns rótulos de produtos a serem comercializados para  se ter uma ideia do seu esmero e capacidade com as formas e cores desses trabalhos. Por essa participação, foi conduzido aos cárceres de Mossoró e Natal, durante seis  anos e meio. Foi condenado à revelia, denunciado pelos seus colegas de trabalho,  extremamente covardes e canalhas, que, para tirar o corpo de fora, preferiram trilhar o caminho do mau-caratismo pondo um colega em uma situação extremamente injusta.  Com 21 anos já estava preso, colocado junto com condenados por roubo, assassinatos e  outros crimes. Como era um homem gentil e honesto, não teve problemas de  relacionamento com os chamados presos comuns, tanto na Cadeia Velha de Mossoró  quanto nas prisões de Natal. O certo foi dito no seu livro: “Só os mais fortes resistiam e  eu vejo hoje que eu era forte por ter enfrentado tudo aquilo”. Ao que tudo indica, sua fortaleza de espírito advinha de um caráter altivo,  provavelmente cultivado por seus pais, em uma casa no qual havia a honestidade e a  compreensão do trabalho como valores a serem considerados em todas as dimensões de  uma presença no mundo. Não à toa grande parte do seu livro é composto por cartas de  amigos. Meneleu sabia o quanto vale uma relação de amizade. Homem despido de  qualquer forma de preconceito, onde ia se dava bem com as pessoas, o melhor exemplo  foram os seis anos e meio nos cárceres, misturado com toda espécie de pessoa. Distraindo se com o xadrez, para matar o tempo. Antes de tudo, mesmo com pouca idade, já se definira como homem de atitude,  detendo uma personalidade empreendedora, vivedor e com criatividade, mesmo sendo  um prisioneiro do estado, fora capaz de organizar uma sapataria na prisão, favorecendo  ganhar algum dinheiro, bem como ocupando e gerando pequenas rendas para outros  prisioneiros. 

A injustiça de pagar o que não devia, como prisioneiro, maltratou, mas não  o derrubou, talvez por traços de personalidade que em todo homem faz com que de linhas  seja capaz de dispor de forma ordenada configurando um tecido, não apenas para se  aquecer, mas para reforçar seu penetrante comportamento em sociedade. Sair e entrar de  lugar qualquer, de cabeça erguida. 

Sim, também confeccionava artesanatos. Caixas de sapatos, broches personalizados (sob encomenda), maletas para viagens, pinturas aplicadas com decalque para azulejos etc. Espírito penetrante, era capaz de desenvolver ideias jacentes no seu íntimo. Tinha  que se virar, pois o dinheiro que recebia como presidiário não cobria nem sua alimentação  (SANTOS, 2006, p. 33). Havia de suportar, pois mesmo alguns parentes detendo algum  dinheiro, foram incapazes de ajudá-lo. Dizem que temos mais reservas de sofrimento do  que pensamos.  Muito cedo Meneleu provou da raiz amarga que é a crueldade e a perversidade  vindas muitas vezes de quem mais nos são próximos. Aqueles que nos nossos momentos  mais difíceis são incapazes de ajudar, com uma palavra de apoio ou algo mais vinculado  a uma atitude, esses são os piores, pois sabem ou têm a ajuda, mas se negam, por pura  covardia ou fazer a escolha de costumes e pessoas que não se coadunam com os que  destoam de determinados costumes sociais. É uma raça de víboras! Mesmo tendo passado todas essas vicissitudes, o tipógrafo ergueu-se, tal fênix que  renasce das cinzas. Faleceu com 90 anos. O humano surpreende. Do humano, espera-se  tudo e mais alguma coisa. Tem gente para tudo, ainda sobram 14. Meneleu escolheu o  caminho mais limpo, ou melhor, já estavam no seu interior os brotos e sementes de um  caráter bom e respeitador do que não lhe era semelhante. No seu livro há um vetor que singra todos os seus escritos: é o valor da amizade.  Cultivava seus amigos como companheiros e irmãos. A amizade (philia) entre homens é  um dos sustentáculos da existência, outorgando uma parecença do que somos como gente  ou como profissional. Esses laços de legítimo afeto nos tornam mais anchos de si mesmos,  permitindo o reconhecimento de uma presença no mundo, por consequência, vemos e  somos vistos, nessa herdade que é o Amor. “Em resumo: fui preso no dia 27 de novembro  de 1935, posto em liberdade no dia 31 de julho de 1937. 

Preso novamente em 24 de  novembro de 1938 e solto no dia 02 de outubro de 1943” (p. 35). Até onde se sabe, resignou-se à condição de prisioneiro, aceitando as  consequências de uma traição e uma condenação à revelia. Estava no lugar errado, na  hora errada. O oportunismo e a canalhice do humano vigoraram com força e fúria sobre  o rapaz de vinte e poucos anos. Quando faleceu, com 90 anos, a imprensa divulgou que  era “o último remanescente do Levante Comunista do país”. Foi elevado à categoria de  mito, sem compreender direito as razões pelas quais havera de representar um papel que,  talvez, não se reconhecesse, pois no seu único livro fala que não passava de um tipógrafo  que fazia tudo com esmero, como sói acontecer com todos aqueles que amam o seu  trabalho. Longe de compreender como um fardo pesado para conduzir a cada dia que  desperta o jovem homem sentia prazer em ocupar os dias da semana com algo edificante  e aplacador das forças latejantes no seu interior. Estranhamente o social, muitas vezes, não segue a gramática que o estrutura,  detentora de uma lógica um tanto previsível para os mais atentos e argutos. Eis Meneleu  transformado em um perigoso militante comunista. Assim foi encarcerado por colegas  que o deduraram, sem ter nada a ver com o Levante Comunista de 1935. 

Ungido como  mito, talvez como um lugar necessitado de ser preenchido, repete o que poetas e  antropólogos disseram acerca do mito adentrar pela História (Gilbert Durand). Sendo assim, o que aprendemos e fomos acostumados a colocar em prática, ou  contemplar, é exatamente o contrário. A História lança seus fatos e retóricas em direção  ao mito. Assim a lenda se escorre /A entrar na realidade (Fernando Pessoa). Pensar dessa maneira nos conduz a ressignificar os chamados fatos históricos, compreendendo a  autonomia do discurso mítico com valia e passível de explicar determinados eventos  sucedidos na vida social. O melhor exemplo é que sucedeu com Meneleu, encarcerado  durante seis anos e meio, por algo que não praticou. Ocupou um lugar na Insurreição  Comunista. As classes dominantes precisavam de um indivíduo para punir e fazer valer  seu julgo e mando.  Vejamos Meneleu como tipógrafo. O Sr. Henrique Mendes deixou um pequeno  álbum ofertado ao poeta e ensaísta do Poema Processo, Anchieta Fernandes. Ao nos  depararmos com os rótulos de firmas comerciais ou produtos a serem expostos à venda,  nosso olhar naturalmente se detém sobre uma profusão de formas organizadas com as  cores vermelha, laranja ou verde. O fundo prima por uma precisa geometria de triângulos,  quadrados e retângulos, vincados por uma simetria bilateral. Essa economia de meios é  apanágio de alguns artistas (aqui também está relacionada às maneiras de compor  oferecidas pelas máquinas da tipografia, numa tentava de amealhar apenas determinadas  cores, diminuindo os gastos). Assim, podemos analisar com mais cuidado essa espécie de trabalho, não tão  simples, como pode parecer à primeira vista. Sucede um minimalismo em todos os planos  dos trabalhos, provavelmente por questões vinculadas ao manuseio das tintas e necessária  repetição das figuras geométricas. É como se fosse uma economia de meios para fazer  render mais o que dispunha o trabalho a ser submetido às máquinas de impressão da  tipografia. Só para se ter uma ideia, não encontramos uma rica paleta de cores nos trabalhos  de Meneleu. Basicamente o vermelho, o laranja e o verde. O branco, para separar espaços  ou salientar algum chamamento expressional e o preto para contornos ou contrastes. 
Mas  quem foi que disse que esse artista tipógrafo não fora capaz de uma grande versatilidade,  mesmo dispondo de um reduzido naipe de cores? O que determina a faculdade de criação  de um artista refrata geografias ou o tempo histórico. O material disponível diante dele  conflui para áreas internas onde se encontra uma subjetividade latejando de significantes,  erguendo-se em formas no qual a maneira de se expressar outorga o ímpar, em feitio de  originalidade. Por falar no uso de poucas cores, Meneleu talvez tenha sido, no Rio Grande do  Norte, um vanguardista do design gráfico contemporâneo, haja vista que este se rege por uma exígua gramática de cores e formas, em uma justaposição nominada minimalismo, uma corrente bem presente na arquitetura contemporânea. Assim sendo, o arquiteto minimalista opera uma série de modulações a partir do  cimento armado, do vidro e dos jardins, passando a imagem de uma construção límpida e com forte apelo à razão. Confirmando um antibarroquismo, haja vista suas linhas e  ângulos retos, erguendo-se como construção que refrata o decorativo e o excesso de meios  e linhas curvas do Barroco. Dessarte, alguns teóricos e críticos defendem a tese de que o Barroco enquanto  estilo não pode ser restrito ao final do século XVI e meados do século XVIII, tendo  atingido o seu fastígio na Península Ibérica, na qual Portugal e Espanha foram os dois  países, incluindo suas colônias na América, no qual essa forma de arte mais vigorou com  intensidade. Basta ver nossas igrejas antigas em Pernambuco ou na Bahia.  Tangenciando essa concepção do Barroco como estilo histórico vinculado a um  tempo, outros teóricos compreendem essa estética como invariante inerente ao homem  em sociedade, ele emerge e desperta sua vitalidade consoante o Espírito de época, quer  dizer, de acordo com os modos de pensar e agir de determinado tempo, haverá sempre  um modo de se fazer presente e realizar as justaposições com substratos do que existe, e  é entendido como “natural”. Há de compreender essa necessária síntese, pois não pode  negar o que é ou fora um estilo que vivificava esteticamente agrupamentos sociais,  submetidos ao ar do tempo. Sua magnum opus, considerando apenas o álbum deixado por seu Henrique, creio  que seja o rótulo da Aguardente Caxambu, totalmente estruturada na cor verde. O ponto  de partida é o convencionado retângulo, onde se encontram de ambos os lados robustos  colmos de cana-de-açúcar, elevando-se para o alto, como se fossem uma moldura, e ao  mesmo tempo evocando a planta da qual se extrai a aguardente.  O tipógrafo revela um acurado senso de ocupação do espaço, em uma rigorosa  simetria bilateral. Parece que o rótulo da aguardente do Sítio Baependi, de Luiz Gomes  (RN), pertencente ao Sr. Antônio Gurjão, adquiriu uma maior intensidade face ao  conjunto organizado por meio de um monocromatismo na cor verde.  Ora, há de lembrar o objetivo do design gráfico: imprimir uma forma  comunicativa. Assim também o que rege um rótulo feito em uma tipografia considera-se  como delinear uma forma que promova o máximo de comunicação. No nosso caso, tal objetivo foi alcançado através de poucos paradigmas, gerando um sintagma bastante  simples, capaz de despertar e interagir com aquele que se dispõe diante do objeto posto à  venda.  Com efeito, o espectador ou o freguês, buscando uma garrafa de aguardente, deixa-se conduzir por aquilo que se mostra em primeiro lugar: o rótulo de uma garrafa de  aguardente. Esse fenômeno mergulha em regiões as mais profundas de uma subjetividade  já propensa a consumir determinados produtos expostos nas prateleiras dos  estabelecimentos comerciais. Enfim, a empatia daquele que contempla conduz a adquirir  ou beber. Esperem, mas não é só isso.

O tipógrafo Meneleu, consciente ou  inconscientemente, elegeu a cor verde sem nenhuma nuance; o verde pincela todos os  elementos no apresentar uma ideia através de recursos analógicos (desenhos) ou digitais  (as letras e as fontes empregadas). Essa justaposição logrou êxito no seu propósito: uma  identificação de eventuais compradores da Aguardente Caxambu, feita de pura cana-de açúcar. Singrando no preciso meio do arranjo, adentra um grande navio, com o nome de  Baependi. Sua presença evoca o poder do fabricante. Ao que parece, também é elaborada  para exportação. 

Verde que te quero verde. 

Verde vento. Verdes ramas. 

 Federico Garcia Lorca 

Todavia, há de citar alguns trabalhos do álbum. Tem um rótulo do Calçados  Arruda muito bem construído com apenas as cores preto e vermelho A alternância das  duas cores imprime ao conjunto um efeito de grande beleza, fazendo esquecer que é uma  simples propaganda de uma loja e se deixando levar pelo que aparenta. O nome Calçados Arruda está escrito em um espaço no centro, para onde convergem figuras geométricas,  espécie de falsos triângulos retângulos, cujo menor ângulo encontra-se como se fosse  debaixo das figuras geométricas, sendo alternadas em preto e vermelho. Há também um outro rótulo, o de Calçados de Ana. Este parece ser o que detém  o predomínio da linha curva. Organizado nas cores amarelo e vermelho, as letras têm um  apreço pelo rebuscamento de um desenho vermelho, em fundo branco, com grande  evocação do adorno. Não há como não parar e observar o gestual das letras D e A, plenas de curvas e uma linha que entra e sai, como se houvesse uma inquietude ou tônus nervosos nesses desenhos. Coincidentemente, a proprietária é uma mulher, indo ao encontro de  curvas que no imaginário remetem ao feminino. Calçados Amaral, com fundo totalmente verde e a cor amarela no interior. Calçados Luzete, com amarelo como pano de fundo. No centro, uma espécie de sol  amarelo irradiando a cor branca para todo o retângulo. O nome da casa comercial  encontra-se em vermelho, em um tipo maior, outras informações estão organizadas em  vermelho. 

Aguardente Alcatrão, estrutura-se a partir de figuras geométricas em amarelo e verde. Enfim, faço saber de propaganda de quatro casas comerciais em um mesmo  retângulo, fazendo valer uma economia quando da impressão, não perdendo nada do  espaço, provavelmente recortava manualmente depois de impresso. Falta só uma coisa. Quero dizer da importância do uso da cor verde. No  simbolismo das cores, podemos atestar o quanto essa cor verde puro, integrando os  elementos básicos dessa composição visual, pode contribuir para a riqueza imagética do  design gráfico. Por seu turno, contribui para uma empatia, gestada no contemplar os  elementos intrínsecos a todo e qualquer desenho apresentado como propaganda, no nosso  caso um rótulo de uma bebida bastante comum. Eis que temos forma, cor, tipo, espaço e  imagem, dispostos de uma maneira que a função estética das linguagens visuais, consegue  alcançar um nível de rara beleza, concedendo ao tipógrafo Meneleu uma capacidade de,  ao criar algo funcional, também arrastar consigo a dimensão estética, fazendo conviver  em um mesmo ícone o que é do prático com o estético. No livro Coisa julgada e cartas de amigos, é possível riscar contornos acerca da  personalidade de Meneleu. Ao que parece, levava tudo a sério e trabalhava onde quer que  fosse com enorme responsabilidade, fazendo valer o seu imenso talento para as artes  gráficas. Tanto é que de imediato podemos apreciar seus trabalhos e adivinhar de onde  emanou determinado trabalho, haja vista o manuseio dos elementos que são uma  constante numa tipografia, quer seja um número reduzido de cores ou as formas desenhadas no retângulo levado à impressão. Se para alguns isso funciona como “falta”,  para o nosso tipógrafo incitava a se virar, configurando um minimalismo. O pouco nada  dizia, pois fora capaz de se “virar” em um grande número de variações, pondo sua  assinatura ímpar na sua produção.









Especial: Sr. Henrique: primórdios da tipografia em Mossoró.


Márcio de Lima Dantas 

Ofereço este álbum de xilogravura ao amigo  

Raimundo Soares para fazer uso do que quiser.  

9/10/72 





Henrique Mendes (25.07.1925) era filho de Arcelino Mendes e Maria Augusta  Mendes, quando jovem, trabalhou na Gráfica Massilon (Massilon Pinheiro Costa,  06.09.1922 – 21.02.2014, casado com a Sra. Rita de Lima Costa, 13.02.1921 – 27.09.2014). Em seguida, vai trabalhar por sua própria conta, colocando uma pequena  tipografia: “Carimbos Mossoró”, na Rua Dr. Antônio de Souza, 55, Centro. Em pouco  tempo, ascendeu como uma das maiores instituições de serviços gráficos da cidade. Era  conhecido pelo esmero e bom acabamento das suas encomendas.  


Para além dos serviços tipográficos, o Sr. Henrique também trabalhava com a  xilografia, cuja titulatura era a seguinte: Henrique Mendes e Filhos, Fátima Mendes e  Michel de Montaigne Mendes. Alguns indivíduos parecem impulsionados pelos dons da  deusa Mnemósine, resguardando a memória, individual ou coletiva, se não por meio da  eloquência ou retórica verbal, lançando aos pósteros obras que permanecem como recitações que um ou outro decora e reverbera, mas também pode ser por meio de escritos  ou imagens organizadas em cadernos ou álbuns. 


Tudo é impermanente, tudo muda, fecham-se ciclos, assim é o dentro, também o  fora está submetido às mesmas leis, contudo, parece haver alguns assinalados com a graça  de uma atração que vigora e os impulsiona a fazer dessa dádiva não um meio de vida,  mas conduzindo nacos de reflexão e prazer que integram sua permanência no mundo. 

Não é tão difícil identificar essas pessoas, quase sempre são capazes de memorizar  datas, relembrar costumes em extinção, conhecer sua genealogia, evocar os que se foram  longevos. Eu acho que é uma expressão de um afeto, de um amor que faz questão de não  esquecer os laços parentais, haja vista ter convivido e sido amado, permanecendo na  mente como sabedoria e no coração como o puro amor não sujeito a qualquer tipo de  condição. 

Era aqui que eu queria chegar. Desse seu empreendimento, o Sr. Henrique teve o  cuidado de organizar um pequeno álbum dividido em duas partes. Na primeira, são as xilogravuras oriundas de artesãos anônimos, provavelmente funcionários do  estabelecimento comercial, embora apareçam as assinaturas de uns poucos, tais como:  Silvan ou Jorge. Predomina o anonimato, muito provável que não atinavam para esses  desenhos serem obras de arte ou qualquer coisa que o valha. Interessante remarcar a  quantidade de assinaturas em forma de rubricas, provavelmente carimbos encomendados  para uso de firmas comerciais e quejandos. 


A xilogravura é uma forma de gravura bastante popular no Nordeste, esse  fenômeno da sua popularidade não restringiu-se às capas dos folhetos de cordel ou ilustrar  internamente algum folheto, mas houve quem trabalhasse para ilustrar uma matéria de  jornal. João da Escócia ficou conhecido como xilogravurista, pois ilustrava algum texto  do jornal O Mossoroense. Talvez tenha sido o melhor representante dessa forma de arte  em Mossoró. 

Teríamos que ver o motivo pelo qual houve uma unânime recepção dessa técnica  de gravura na madeira. Provavelmente havia no imaginário da região Nordeste, a parte  mais antiga do Brasil, signos familiarizados, no sentido de uma constelação de imagens.  


Ora, todo mundo sabe que o cordel diz respeito à Idade Média de Portugal, – assim  como outras invariantes estruturais (Gilbert Durand) –, foram trazidas com os que  primeiro habitaram o Nordeste. Esse traço de cultura encontrou terreno fértil em gentes  analfabetas ou pouco familiarizadas com os livros. Havia quem lesse nas feiras, para  chamar atenção e vender folhetos de cordel. Vale lembrar a quantidade de arcaísmos no  vocabulário ou na gramática da língua portuguesa sertões adentro (mangar, cachete,  morgado, afolozado, agoniado, invocado). Para finalizar, vou citar só um nome de um  mestre da xilogravura: o pernambucano Gilvan Samico, herdeiro da cultura do medievo. 

Na segunda parte, e a mais preciosa e fascinante do álbum, o organizador  esclarece: A seguir pertence a Francisco Meneleu (11.12.1972). É bom lembrar que tem outro ensaio acerca dessa segunda parte do álbum, detendo-me com mais vagar sobre os  trabalhos de Meneleu, demonstrando o quão era um grande artífice da tipografia, fazendo  valer a dimensão estética convivendo com os trabalhos meramente funcionais, como os  rótulos para produtos comerciais que iriam ser etiquetados em série, circulando em  Mossoró ou outras cidades próximas. Lucrécia, Pau dos Ferros, Luiz Gomes, Caraúbas,  Guarabira (PB), Aracati (CE). 


Os “Carimbos Mossoró”, devido ao cuidado com o qual fazia suas encomendas,  logo ficou conhecido na cidade como a melhor empresa no ramo da xilogravura e  tipografia direcionada às casas comerciais e anúncios de seus produtos. Gostaria de citar 

outras tipografias que integram o patrimônio dos serviços demandados pelo comércio da  cidade. Tipografia Mossoró do Sr. Ossivaldo (Alto da Conceição), Tipografia Expressa  do Sr. Raimundo Nonato Luz (Rua Coronel Gurgel), Editora comercial (vizinho ao Cine  Caiçara), confeccionavam livros, pois detinham um linotipo. Papelaria e Tipografia “O  Nordeste”, fundador Martins de Vasconcelos. 

Por que será que a cidade de Mossoró detinha um parque gráfico de grande  variedade e envergadura? Ora, a cidade sempre foi o maior polo econômico da região  Oeste, notabilizando-se por sua autonomia com relação às duas capitais equidistantes:  Natal e Fortaleza. Ademais, as cidades pequenas e circunvizinhas tinham Mossoró como  referência no confeccionar serviços ou fornecimento de mercadorias. Deixe eu dizer uma  coisa, a cidade absorvia a produção de algodão dos sertões adentro, descaroçando e  organizando em fardos, sendo conduzidos para o refinamento e a separação de produtos  originiados do algodão, tais como, fibras para tecidos, óleo vegetal e o resíduo (torta) de  algodão para a alimentação dos animais.  


Havia uma grande fabricação de cera de carnaúba, advinda das palmeiras que  acompanhavam o Rio Mossoró, como matas ciliares, devido à fertilidade dos solos e às  aguas encharcadas pelo belo rio que banhava a cidade. Outrossim, a cidade era a maior  produtora de sal do país, com suas salinas, chantadas de um lado e de outro das estradas, refletindo um transparente sol, necessário para evaporar a lâmina de prata dos tanques.  Esses aliados do sol, os ventos advindos do litoral, apressavam esse processo de  finalmente reter só o sal cristalino nos tanques, onde depositara a água bombeada do mar. Não podemos esquecer de registrar o trabalho do Sr. Alfredo Fernandes, estabelecido na  cidade em 20.04.2020, com o intuito de beneficiar e comercializar o algodão. Funda a  firma Alfredo Fernandes & Companhia. Não se restringia ao algodão, mas também às  peles de ovinos, caprinos, bovinos, cera de carnaúba, sementes de oiticica óleos vegetais. 

Vale salientar que esse comércio lançava seus vetores para praças distantes: EUA e  Europa. 

Tudo o que foi acima dito, com datas, lugares, completos nomes, não passa de  uma forma de resguardar os traços dos que ousaram construir a municipalidade,  outorgando valor por meio de incensar o altar da deusa Mnemósine, evocando os dons  que nos torna capazes de reter em si, – mesmo numa época tão tardia, – uma história que  escorre pela oralidade, de colocar uma placa aos abolicionistas, de sentir o gosto pautado no que ainda resta de fachadas antigas, renomeadas ruas e praças. Enfim, como guardiões informais de uma cidade outrora próspera, movimentada pelo seu rico comércio baseado  em um rico extrativismo vegetal e consumidora do algodão vindo de sertões adentro. 

 

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Especial: Caminhando pelas adjacências da obra do pintor Varela

  

Márcio de Lima Dantas 

Para onde me irei do teu Espírito ou para onde  

fugirei da Tua face? Se subir ao céu, tu aí estás; se  

fizer no Seol a minha cama, eis que tu ali estás  

também. 

139: 7-8 

Luiz Varela Laurentino da Cunha (1941-2005) é um dos principais personagens  das artes visuais na cidade de Mossoró, integra, junto com outros colegas, uma  circunscrição temporal. Assim é que podemos arrolar os nomes de Boulier, Ney Morais,  Rogério Dias, Vicente Vitoriano e Toinho Silveira. Mesmo integrando um luxuoso naipe  de produtores de arte que por tempo muito ou tempo pouco passou pelo ateliê do grande  nome na pintura da cidade: Marieta Lima, por sua longevidade, em torno de 100 anos,  passaram pela estreita rua ao lado da ACEU, muitos do que hoje se destacam como a  prata das artes visuais no estado do Rio Grande do Norte. Também é bom lembrar que  não configuram uma geração uniforme tanto na forma quanto nas temáticas. Só para citar  um exemplo, é bastante distinta a obra de Vicente Vitoriano, com suas imagens  dialogando com o que de mais contemporâneo havia.

Comparando com Toinho Silveira, que optou por um traço naïf e desenhos de uma grande simplicidade estilística,  configurando uma espécie de arte ingênua dotada de uma elaborada feitura. 

Assim sendo, o constelado céu da arte, com suas plêiades de variegadas estrelas,  pulsando cada uma a seu gênero e modo, nos faz atestar por meio dessa comparação a  diversidade de uma cidade ainda um tanto provinciana, o quão havia toda uma sorte de  maneiras de se expressar ou de ousar uma resposta ao que havia no mundo da arte, quer  seja buscando os meios de pintar evocando a herança deixada na tradição (Academicismo  ou Classicismo), ou estabelecendo leituras com o que havia de mais contemporâneo, das  vanguardas em evidência ou aquilo que imprimira seu número na sequência cronológica periodológica da marcha inelutável da arte em sua inquietude de bulir no íntimo de alguns indivíduos, mas que jaz, nos amplos espaços internos, necessidades de expressões bem  diferentes dos paradigmas que conformam a realidade. 

Acontece que a singularidade artística não fala tão-somente por si, para si, mas  organiza discursos contidos nas ruas e esquinas do Espírito do Tempo, haja vista a  complexidade deste com sua “obrigação” de falar por meio de um vocabulário  concernente a cada etnia, a cada povo, a cada distrito, trazendo dos confins além da fala  as expressividades de vanguardas da arte ou as formas e desenhos da cultura popular. 

Dentre as inúmeras naturezas-mortas deixadas pelo artista, destaca-se um  conjunto de três melancias; três abertas e duas tendo a função, ao que parece, de compor  uma inusitada e harmoniosa temática com um fruto de uma mesma espécie, sendo o lugar  no qual as frutas estão postas, ao fundo, e riscando um contorno, divisamos um negro  retinto. Com efeito, essa tisna negra não somente parece funcionar como uma sorte de  moldura não muito comum, na medida de não ser corrente o monocromatismo como  fundo, - e ademais o fato dessa cor preta em uma tela cuja figuração engendrou uma obra  tendo tão-somente a cor verde, o branco e o vermelho, cores da fruta melancia, - que aqui  estão ressaltadas, ao que tudo indica, com o objetivo de fazer sobressair as cinco frutas quedadas sobre um suporte que parece ser uma mesa. Quero dizer do não memorar  frequentemente no universo das artes, sobremodo nas indigitadas telas conhecidas como  naturezas-mortas, que tratamos aqui. Ainda mais quando se trata de uma fruta pouco  comum. 

Poucos chegaram ao patamar de Varela, em Mossoró, no trabalho do entalhe em  cimento fresco, desenhando figuras em alto-relevo, riscando sua arte nos muros, igrejas,  jardins e praças públicas os belos painéis. Visivelmente influenciado pelo antológico  Manxa (cuja obra-prima é o painel do prédio da reitoria da UFRN). Sendo assim, Varela,  com propriedade, imprime uma solução de continuidade ao nosso grande artífice em  entalhes de madeira vazada ou cimento sem a mistura de tintas. Tornando os painéis de  uma grande elegância, mostrando seu parentesco com as obras de cimento armado do  modernismo.
Evoco aqui Oscar Niemeyer, em estruturas maiores, tais como grandes edificações, ou Lina Bo Bardi, em obras com estruturas menores, como os suportes de  cimento e vidro para expor as telas do MASP. 

Quando o artista compromete sua arte por meio de determinados artifícios que nos  fazem reconhecer eventos, passagens ou fatos históricos sucedidos na polis, tais  elementos nos conduzem naturalmente a compreender que alguns mitos estão sendo  retomados e ritualizados de maneira explícita ou sutil. Essa evocação de certos  acontecimentos confere um valor da arte com uma dimensão de engajada, no sentido de  que para além do valor estético, vigora um discurso concedendo um encerramento extraído do cotidiano. Relembrando à posteridade pontos importantes de uma trajetória  coletiva. 

Contudo, há de ter uma medida dos mitos reelaborados em todas as formas da arte  na cidade, senão adentra pelo lugar-comum e pela banalização, lançando imagens  beirando a caricatura e a tediosa mesmice, como se não tivesse outra coisa para a criação  artística.  

Esses eventos históricos estão arraigados para sempre, já que não apenas riscam  suas narrativas na História, detendo um ethos mitológico na sua necessidade de ser  ritualizado nos eventos cívicos. Mesmo assim, há de recompor de maneira vívida, não em  uma composição tíbia. Um dos mais importantes painéis de Varela é o que se encontra na  Travessa Martins de Vasconcelos. Aqui, encontramos fatos concernentes a uma espécie  de superfície no qual repousam três eventos históricos: Professora Celina Guimarães, em  5 de abril de 1928; Lampião, 13 de junho de 1883; 30 de setembro de 1883, Libertação  dos escravos, cinco anos antes da Lei Áurea. 

Para que não sejam essas datas absorvidas pelo assomar dos bafejos acres de  Cronos, devorador de tudo o que é vivo, pulsando látegos nos quais nem consultados  fomos para receber e outorgar uma eventual solução. Apenas evocamos às forças que  gerem os céus e as estrelas para que nos imprimam no espírito o dom da fortaleza, cujo  perímetro alcança o que diz respeito à comarca das datas da cabeça e sua sempre presente  somatização, nos fazendo suportar com resignação as tantas vicissitudes.  

Há uma outra faceta de Varela. Quero falar da sua intervenção em espaços  vinculados ao coletivo, sobretudo aquilo que vai valer pela contemplação do todo, de  partes interdependentes, ou seja, não é uma tela que vai valer por si, mas por relação ao todo seu derredor, portanto vigora a necessidade de observar o cenário como junção de  elementos, deixando-se possuir pelo ambiente, perfumes e gentes muitas de todas as  qualidades, para, enfim, extrair uma beleza que só esse momento pode proporcionar. 

Estou me referindo à arte de decorar eventos ou datas comemorativas,  ornamentando bailes de Carnaval (como se sabe, outrora acontecia nos grandes clubes da  cidade, além dos pequenos cortejos nas ruas). Também era contratado para ornamentar  casamentos ou eventos de 15 anos, fazendo valer seu domínio de conceber um conjunto  de formas e cores com um só mesmo tema. Seríamos injustos se não citássemos o nome  do seu amigo Boulier. Ao que parece, Varela teria recebido influência do também amigo  e discípulo de Marieta Lima. 

Por muito tempo, Joseph Boulier foi um insuperável artista no ornamentar  ambientes para sediar bailes de carnaval. Até hoje se fala do seu talento e maestria quando  convidado para delinear texturas e cores de determinados Bailes de Máscaras, dominando  com destreza, e ficando conhecido por deter uma grande rapidez em ornamentar um  ambiente a partir de uma ideia primeva, para a consecução das ornamentações que  sediariam essas aglomerações em homenagem ao deus Dionísio. Era como se fosse o  cenário de uma ópera viva, na qual os foliões eram os personagens de uma noite de gala. 

Como observamos ao longo deste escrito, há de reconhecer no artista Varela  inúmeras capacidades de lidar com diversos materiais, configurando um talento artístico  inquieto ao dar forma ao que lateja em seu íntimo. Em síntese, eis o óleo sobre tela, do  figurativo ao abstrato, mas também busca sair de casa em uma procura de partes outras  para, em uma tentativa, assim como todo vivente. 

Se for para escolher o melhor trabalho, o Magnum opus, desse exíguo corpus de  trabalhos de Varela, a que tive acesso para elaborar este ensaio, ficaria com a imponente  tela que representa uma salina, paisagem bastante comum nas terras do entorno da cidade  de Mossoró, tais como Areia Branca, Macau e Grossos. Quando se desloca para essas  cidades, é mister caminhar devagar, para não perder o espetáculo das brancas salinas  ladeando os dois lados por onde avança o automóvel, esplendendo sob um transparente  sol. 

Por isso nos deteremos com mais vagar sobre a tela que representa uma salina, e  reputamos como a mais bem acabada, por um feitio possibilitador de revelar o domínio do desenho, da forma, dos traços e ângulos; enfim, da perspectiva, da cor e seu manuseio,  obtendo pleno conhecimento profundo e seguro da luz e sua transparência, permitindo  que os espaços internos sobressaiam seus ângulos em 90º. Ademais, a preferência por  cores esmaecidas, predominando o azul, tanto no firmamento quanto nas águas  represadas, para evaporar e mais tarde terem o sal. 

É bom repetir o fato de podermos observar o que chamamos pleno domínio do  desenho, como se trata de uma justaposição de quadrados (tanques), quase que esses  meios empregados necessitam da perspectiva para assentar as partes em uma totalidade. Com efeito, houve uma deliberação de justapor elementos para organizar os espaços do  quadro. Do lado direito, há um grande catavento, estrutura para trazer água do lençol  freático. Do lado esquerdo, há uma casa, opondo-se ao cata-vento. No centro, temos  muitos tanques de águas represadas, homens trabalhando e grandes rumas de sal em  formas quadráticas, preparadas para serem levados aos armazéns nos quais serão  processados para a comercialização. 

Difícil é a maestria de pintar uma tela conseguindo apreender um sol tão  transparente quanto o que foi assentado nessa composição. Consabido é, também  admirado pelos visitantes que aqui chegam, o salientar desse sol muito claro e capaz de  fazer com que os contempladores observem que cada cor se defina e apareça em  plenitude, que se faça presente na sua diferença, que albergue contrastes com outras cores  ou matizes. Por fim, outorgue a essa tela o valor de chef-d’oeuvre da obra múltipla do  pintor Varela.