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terça-feira, 26 de setembro de 2023

Especial: E por isso nunca saí da escola.

 

Por Márcio de Lima Dantas.

Outrora, se bem me lembro, minha experiência na escola foi uma grande  descoberta, não apenas para ler e escrever, para contar, mas, sobretudo,  descobrindo quem eu era, quais as identificações, em que lugar me sentia  protegido, também algo que me acompanhou durante toda a vida: não  permitir que o convívio em sociedade ultrapassasse minhas expectativas e  domínio acerca do meu entorno. 

Ora, não posso deixar de reconhecer esse traço da minha personalidade como  um defeito, na medida em que logo me entendi por gente já foram dizendo o  quão eu era autoritário e mandão. Mas, leitor amigo e indulgente, podemos  tentar compreender esse ethos advindo de regiões pelágicas da minha  personalidade? 

Vou logo avisando, não me carimbem com apelidos delineadores de uma  caricatura da minha pessoa, na medida em que certas virtudes presentes em  algumas personalidades, se observadas na prática como gestos de entrega e  compaixão, proclamam um ser compreendendo as relações humanas como  espaço de produção e edificação de tudo o que faz fronteira com o Bem. Não  faço um autoelogio, pois nunca aconselhei ninguém a me comprar por santo.  Não é? Vai perder o dinheiro. Apenas quis falar de como se organiza um  comportamento. Creio que todos sabem disso. 

Isso posto, vamos falar da minha jornada na escola. Traçarei uma linha  cronológica, envergadura de significado e sentido com os nomes dos que  foram meus mestres. 

Élia era muito bonita, com seus longos cabelos, morava em frente da minha  casa, filha de João Camilo e Da. Fransquinha. Ela é meu mito fundacional  quando necessito tratar da escola. Aprendi as primeiras letras naquela antiga  Carta de ABC, bem como tirar as contas por meio das quatro operações, na  Carta da Tabuada. Meus amigos de brincadeiras de rua também eram seus  alunos. Havia que ter essa etapa, para desasnar a criança. 

Lourdes deu continuidade, em uma atitude pedagógica mais avançada, pois  já se conhecia, toscamente, reconhecer as letras, formar as sílabas e soletrar. Parece que soletrar não integra mais o currículo dos iniciantes. Lamentável, 

visto que o aluno capaz de soletrar, também dava um grande impulso a se  compreender o funcionamento da linguagem, por conseguinte, para os mais  sagazes, acessavam um conhecimento da gramática do mundo e da sintaxe  dos indivíduos. Lourdes lecionava em grande mesa de fornida madeira.  Havia um objeto que jamais tinha visto: um ábaco. Lembro de ter ficado  extremamente curioso. Era preso em um dos quatro extemos da mesa.  Cheguei a aprender a manusear, realizando com sucesso as quatro operações  matemáticas. Residia na casa de Seu André e Da. Luzia, e fora por um tempo  secretária do Ginásio Comercial de Patu, quando Petronilo Hemetério Filho  foi diretor, 

Nice de Rael, filha de Rael e Minervina, famosa por ser benzedeira, curava  crianças e enfermos. Será que havia maior prazer do que ser aluno de Da.  Nice? A sala de aula ficava encostada na casa de seus pais. Não havia uma  pessoa mais refinada em sua educação e amabilidade para com todos. Todo  mundo sabia que passar pelas mãos dessa mulher sempre contente com a  vida, dando sonoras gargalhadas, era imprescindível no processo de ler e  escrever. Chamava a atenção, vistas pela primeira vez, das carteiras escolares  de madeira, justapostas umas às outras. Era desnecessário reclamar ou falar  sério com os alunos, todos a respeitavam. Quem sabe, pela primeira vez,  estava consolidada em minha cabeça o quanto era importante o respeito em  um lugar dedicado ao conhecimento, ao livro como valor, aos que  partilhavam esse gosto, enfim, a uma espécie de espaço sagrado., 

Teresinha de Noemi, mãe de Silvanete, Gislaine e Sílvio Filho. Também era  separada do que fora esposo. Aqui também se encontrava a fileira de  carteiras, postas na sala de estar, pois ela residia junto com os filhos nessa  casa. Conhecida pelo rigor com relação à disciplina, desde o início, até o fim  da aula. Ao que parece, seus ensinamentos concerniam à primeira série  primária. Assim como se fosse uma antecipação, antes de chegar nos Grupos  Escolares. 

Quando fui matriculado para estudar no Grupo Escolar João Godeiro, não  entrei no primeiro ano. Estava adiantado, já conhecendo os conteúdos dessa  série. Fui considerado apto a ir direto para o segundo ano. Foi a minha  primeira escola formal, pois as demais inscreviam-se no que chamavam de  “particulares”. Findara um ciclo no qual havia uma interrelação maior com  a mestra. Agora era uma sala de aula completa de gentes de todas as formas  e jeitos. Como se um certo anonimato presentificava-se, lançando cada um,  menino ou menina, em uma possibilidade de selecionar aqueles com os quais  se identificava. Não havia a necessidade de conviver com todos. Creio que 

esse caráter de um tanto de anonimato na verdade fez com que uma liberdade  chegasse com seu prumo, deixando o indivíduo mais ancho de si, permitindo  uma saudável insolência, organizando através de uma determinação e livre  arbítrio uma identidade e graus de parentesco que não são os impostos pela  família, sopros de vento adentravam pelas janelas do estabelecimento,  separando as pertenças e apartando com discreto silêncio o que se quer, o  que interessa, o que se identifica. 

O Grupo Escolar João Godeiro era a única escola pública da cidade, servindo  a todas as classes sociais. Detinha a particularidade, em sua arquitetura, de  todas as escolas edificadas naquele tempo. Do lado direito havia um longo  corredor, com três salas de aula. Seguindo o rumo dos dois banheiros  encontrava-se um grande pátio coberto. Aqui ficávamos sentados no chão,  alguns recreavam de outras maneiras. Logo na entrada, um balcão de  alvenaria, era o local de distribuição da merenda escolar. Consegui alcançar  um tempo da “Aliança para o progresso”. Conduzia conosco latas de  alumínio vazias, com tampa. As merendeiras enchiam com leite em pó. Para  as pessoas muito pobres, com bebês em casa, era um bom adjutório. Oposto  ao corredor, havia um pequeno apartamento no qual habitava a pessoa  responsável pela limpeza das instalações. Era um ambiente simpático: sala,  quarto, banheiro e cozinha. 

Como disse, fui matriculado na segunda série primária, cuja professora,  Adalzira Brilhante (separada de Raimundo Solano, irmão de Alvanir e Mário  Solano). Tinha uma filha adotada, Izonária. Residia em uma casa simples,  do lado direito de quem segue para o Alto. Estava sempre bem vestida,  indumentárias simples. Seu cabelo amarrado nas costas, e um par de óculos  de lentes grossas. Detentora de uma incomensurável paciência com seus  alunos, ficando na cabeceira da mesa, mas sem perder o rigor e a exigência  para com os deveres de casa. Sempre era possível encontrá-la nas missas. 

A minha professora da terceira série foi Neide de Quincola (apelido de  Joaquim Belarmino de Andrade, filho de Biia, irmão de Teteca). Por seu  turno, Neide era filha de Lídia Munguzá, renomada parteira, irmã da  bordadeira Anita de Chiquinho, esposa de João Munguzá. 

Além de deter um amplo conhecimento das matérias lecionadas, apelando  para a disciplina e cobrança dos conteúdos ministrados, era extremamente  espirituosa, sempre fazendo brincadeiras com o comportamento e o jeito de  ser de cada aluno. 

Finalmente, um professor para encerrar o chamado Ensino Primário, Sr.  Benício, oriundo do Crato, fora sacristão durante muito tempo do Santuário 

de Na. Sra. Das Dores, sabe-se que tivera vizinho à casa dos padres, uma  escolinha para os habitantes permanentes ou trabalhadores das obras da  igreja. Casado com Zulmira, pai de Betânia e Maria do Socorro. 

Detinha um temperamento de homem cordato e pronto a servir sua família  ou os amigos. Sua rotina se restringia a uma simplicidade franciscana: de  casa para o grupo, e vice-versa. Sempre estava na calçada, balançando-se em  uma cadeira de fitilho. Quando da sua presença na sala de aula, os alunos  compreendiam a obrigação de respeito para com o senhor de cabelos  brancos.  

Tudo transcorria naturalmente, através de uma fluência presentificada por  meio de algo tacitamente acordado entre as duas partes. Eu trago conteúdos  para vocês, ministro com todo afeto, estou cumprindo meu papel de  professor, sou pago para isso. Todos nós, em uníssono, amamos o senhor,  estamos aqui para aprender, exercemos o ofício de aprendizes, decantando  as ciências, a matemática e a gramática em um assoalho sólido, para conduzir  ao longo da vida, sua lembrança será rememorada como um dos pilares que  sustentam nossa presença no mundo. 

Para encerrar, penso que ficou bem claro o motivo pelo qual nunca saí da  escola. Adianto dizendo que me aposentei como professor da UFRN  (Professor de Literatura Portuguesa), carreira iniciada em 1993. Foi algo que  eu escolhi, pois tive que me reprofissionalizar, tendo antes feito um outro  curso, que nada tinha a ver comigo. Está tudo encerrado, pago, não devo  nada a coisa alguma, tampouco busquei o troco.  

Logo com dezoito anos, fui contratado pela Prefeitura de Mossoró, professor  de Ciências e Matemática, na Escola Municipal Joaquim Felício de Moura,  poucas vezes tinha sentido tanto prazer em estar em um lugar, cujos alunos  eram operários, pedreiros, padeiros, mulheres que trabalhavam na fábrica de  roupas. Eu só sei de uma coisa, fiz a minha parte e fui cúmplice dessas  pessoas lançadas para as linhas de pobreza e para o anonimato de uma  sociedade extremamente cruel para os menos favorecidos. 

Também fui professor de uma escola em uma pequena cidade nos arredores  de João Pessoa, chamava-se Cidade do Conde. Sim, eu ia esquecendo de uma  coisa. Antes dos dezoito anos, fui professor particular de reforço dos dois  filhos da minha prima Zenaide, sobrinha de papai. Como professor  particular, também ministrei aulas em Campina Grande, para os filhos de  uma senhora chamada Adma Timane, creio que era de ascendência libanesa.  Não me lembro dos dois rapazinhos.

Que forças do meu íntimo teriam me lançado ao encontro desse lugar onde  encontrei realização e prazer de viver? O que eu era enquanto menino que a  escola me outorgou segurança e equilíbrio para tornar os dias detendo um  componente que transcendia as atribulações ou o que não saia de acordo com  o planejado, quer fosse amizade, que dissesse respeito ao amor? Acho difícil  responder, eu só sei que lecionar, pesquisar, ler e publicar passaram a ser o  sal da minha vida. Exultate! Jubilate! E nada nem ninguém foi capaz de  extrair isso de mim, pois era uma espécie de tesouro que não somente me  continha, mas eu o continha. Qual a minha Magnum opus? E eu lá sei! Nada  em específico, muito mais o conjunto, a trajetória, o caminho, de cabeça  erguida. Pacem in terris.

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