Por: Márcio Lima Dantas.
Raimundo Dantas Godeiro nasceu em Patu (01.01.1943 – 11.06.2022); desde sempre, como Auditor Fiscal, chantou-se funcionário da Fazenda Estadual, foi casado com Maria do Socorro Dantas Godeiro (14.11.1946). Esse carinhoso apelido, partilhado por toda a cidade, se deu pelo fato de ser bastante ruivo; seus cabelos, na cor assemelhando-se ao anato ou pó de urucum, conhecido por seus arilos, sendo responsáveis por um condimento de forte cor vermelha, usado para tinturar carnes brancas e com inúmeras propriedades medicinais.
Do seu casamento, em 4 de setembro de 1966, houve três filhos: Raimundo Filho (4.10.1966), Shirley (4.11.1970) e Moacir Manoel (16.07.1974). Seus irmãos eram, por ordem de nascimento: Zé Tanguinha, Amuna, Tati, Tetê e Rita.
Como reaver certos sentimentos que habitam as áridas planícies do passado, assim como se fosse recompor um corpo delineando sua forma feito de duas partes que não são simétricas... A memória, ou não chega, ou quando resolve aportar imagens e discursos, unge-se com o capricho de algo que vale por si, assim como se fosse espécie de criatura detentora de uma sempiterna autonomia, fazendo-se passar por uma espécie de ser que não deve nada a ninguém.
Esse preâmbulo tem o objetivo de dizer o quão difícil é resgatar a vida de meu cunhado Raimundo Dantas Godeiro, pois, desde sempre, tínhamos uma harmoniosa amizade na qual o amor Philia fazia-se reconhecer na presentificação de um bem querer mútuo. A bem da verdade, ele parecia ser aquele tipo de gente que só dá atenção ou entabula uma conversa a quem bem entenda. Com o restante, era um silêncio de que ataviava todo o corpo, começando por uma eloquente indiferença que os olhos não deixavam esconder o que se passava nos recônditos da alma.
Era um homem de porte simples, silente e olhar um tanto ocluso, observador, porém, isento de malícia. A conversa, desde que simpatizasse com o interlocutor, era plena de hiatos, intercalando temas diferentes, em síncopes desprovidas de tédio; essas atmosferas de simpatia e cumplicidade entre homens, como todo mundo sabe.
Mesmo em ocasiões formais do convívio social, vestia-se de maneira despojada, como se trajasse de acordo com o que lhe apetecia, pouco ligando para o que o outro pensasse ou opinasse. Estava ancho no seu corpo, confortável dentro de si, para entrar e sair e das tantas cenas sociais.
Mesmo sendo uma pessoa discreta e cerrada para o mundo, nunca se negou a estar presente às necessidades de ambos os pais quando da chegada inexorável da velhice, custeando todas as despesas com os mantimentos necessários à casa.
Sua presença circunspecta como que remetia a desavisados que parecia alguém indiferente ao sofrimento dos que lhe eram próximos. Contudo, nunca circulou qualquer conversa de que tenha se omitido às sempre presentes responsabilidades que a vida nos coloca nas mãos sem agente pedir. E, sobretudo, aos da sua família que buscavam guarida, cobertor ou um adjutório para inteirar o dinheiro de alimento ou remédio.
O fato de ser reservado acabava por deixar transparecer como, assim, um jeito que poderia conduzir à uma leitura de que era alguém indiferente ao sofrimento ou necessidades dos que lhe eram próximos. O certo é que não circulou nenhuma conversa acerca da sua omissão quando procurado por parentes. Ninguém disse mal dele.
Amava à sua maneira, sem esperar gratidão de outrem, amava por gestos, compreendendo o amor como amparo, como anônima compaixão, sem discursos ou alegativas que pudessem humilhar aquele que fora ajudado.
Sempre se regia por uma educação rara: visitar enfermos, ir a velórios, amparar idosos. Não fazia estardalhaço do que, ao que parece, fosse um dever a ser cumprido.
Gostava de festas populares. Existem muitas fotos, guardadas por parentes, participando de ¨blocos de sujos¨. Animados grupos de amigos, cobertos de talco ou maizena, bebendo cerveja, em pequenos cortejos pelas ruas da pequena cidade do Oeste do Rio Grande do Norte. Havia um forte componente dionisíaco em sua personalidade, conduzindo-o aos altares cobertos de dádivas, remetendo ao carpe diem do deus Dionísio e suas demandas de aproveitar as possibilidades de efêmera vida, com sua pressa outorgada pelo deus do tempo: Cronos e sua ânsia de devorar os sencientes, quer seja por meio de enfermidades, quer seja pela abreviação de uma existência ainda com viço.
Sim, eis que o medo lança ao degredo a dúvida em vivenciar todo o fogo na carne do presente, abotoando todas as casas de uma vestimenta cujo nome é A Dúvida, costurando de indecisões o que seja a nossa frente, o que se nos aparece como território do amor, da amizade, dos laços familiares, de uma oportunidade de viagem, até mesmo o que é certeiro e não existe possibilidade de errar.
Esse homem de perfil longilíneo se recusara a ir fazer exames de rotina com os médicos para averiguar algumas das razões de um eventual achaque. Até penso que não comentava com ninguém alguma dor ou algum incômodo.
Eis o preço, a paga e a purga, seria correto falar assim ? Onde está escrito que os caminhos da existência seguem esse rumo? E quem tem os maiores cuidados, demoram-se em aguardos de médicos e laboratórios, perscrutam qualquer coisa que arranhem a pele? Esses são longevos e detém uma saúde permanente? De jeito qualidade, o dominó da vida tem sua autonomia nas suas regras do jogo. Somos marionetes dessa identidade nominada Vida. Só podemos aceitar com resignação, paciência, compaixão para com o outro. Nada mais a fazer.
Muito bem, a Vida, sem consultar o capitão da nau, lança às profundezas do mar suas pesadas âncoras definitivas, que vão chantar seu ferro no fundo do que ninguém tem acesso, enferrujando, sem perder a segurança fincada no fundo desse mar chamado eternidade.
E o sétimo anjo derramou a sua taça no ar, e saiu grande voz do templo do céu, do trono, dizendo: Está feito! (APOCALIPSE, 16-17).
Há cerca de seis meses iniciaram-se os anúncios do corpo, problemas na visão que o conduziram a fazer cirurgias nos dos olhos, mitigando um pouco a glaucoma, também aqui foi atestado os graves problemas do coração, tendo se recusado a efetivas cirurgias de ponte de safena e mamária. Não houve quem o convencesse a se submeter a tais procedimentos. Muito provavelmente tinha consciência dos riscos que corria, contudo, talvez se dera por vencido, avaliando sua vida como detentora de um sinal positivo, na medida em que escolhera ser o que seu íntimo e seus músculos demandaram. Por fim, logo que chegou ao hospital, testou positivo para Covid19. Os rins não mais obedeciam a nada, teve que ser intubado e, em menos de uma semana, faleceu.
E não há súplica capaz de amenizar a dor dos que amam aquele ser, não há penitências ou orações aos céus para evitar a catástrofe tida como certa. A hora é chegada. Isso basta. Há que aceitar. Proclamem à família e aos amigos, rufem os tambores do luto, sequem as ânforas de lágrimas, previnam os vizinhos para que se integrem às horas últimas de uma vigília íntima. Tudo é findado.
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