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terça-feira, 22 de agosto de 2023

Especial: Carta apócrifa de Francisco Solano de Moura a seus familiares.

Por: Márcio  de Lima Dantas.

Professor UFRN.



Região Amazônica, 1896.

Caros familiares,

Escrevo-lhes esta simples carta para dar minhas notícias e relatar um pouco o meu árduo percurso desde minha partida, naquela fria madrugada, aí de casa. Esta é minha segunda viagem aqui para a Amazônia. Permaneci alguns dias em Fortaleza, aguardando o navio. Como sabem, passei antes em Mossoró, para ver meu irmão José Leão, que caridosamente me deu 5 mil réis, dinheiro que somou com o que eu trazia a importância de 7 mil réis. Muitos me perguntaram se eu não tinha medo de vir aqui sozinho para esse fim de mundo. Primeiramente, vou logo querendo saber onde é mesmo o começo do mundo, pois que ninguém sabe direito os aceiros do seu próprio destino, ninguém entende o que é começo nem fim. De certeza, o que temos, é apenas a morte. A terra não é redonda? Depois, digo assim: medo de quê? Em todo canto não tem gente? E gente não é igual em todo lugar? O mundo é um só, o povo é que faz a besteira. Quem sabe um dia virá alguém para dizer que o sertão é o mundo, cheio de veredas. Tenho cá comigo que as pessoas sabem mais do que elas dizem ou têm consciência. Cavilação talvez seja a coisa que Deus distribuiu com mais generosidade para tudo o que é vivente na face da terra. Nunca vi bicho tão sonso quanto esse animal-gente.

Vim aqui atrás de fortuna. Nunca neguei e não nego a seu ninguém, pois nesse mundo de meu Deus, só vale quem tem. Um homem não se firma pelo que ele é, mas por aquilo que tenha e que possa vir a servir a algum interesse do outro. Essa é a lei da vida. Desconheço outra. A realidade de todos os sertões não passa disso que vou apontar agora: que o interesse pessoal é o que mobiliza as ações humanas. Cada um paga sua alta conta à vida. Quero dizer que ninguém tem nada a ver com a vida de ninguém, pois na vida não se compra fiado, nem em grandes partidas. Tudo é tico, a vista e caro. No máximo, o que o povo faz é trocar alguma espécie de interesse. Quem já viu se fazer nada de graça! Da outra vez que eu vim, há um ano atrás, consegui juntar 800 mil réis, dinheiro suficiente para arremedear mais ou menos minha família, já que deu para construir nossa casa no Sitio Recreio, acomodando toda minha enorme prole.

Mais tomar conhecimento do novo também faz parte da vida. Eu sei que no começo amedronta. Com o tempo a gente se acostuma e até gosta de coisas de gentes diferentes, com seus costumes e feitios. As coisas novas que se nos achegam, levam a abrir rachaduras nas lajes da nossa cabeça, obriga a pensar no que nunca havíamos tido tino nenhum, por isso que eu digo que é bom. Ficar parado defronte a espelhos nunca levou ninguém a ascender espiritualmente. Se fosse assim, Deus teria feito todas as gentes, assim como os bichos, tudo igual. Mais não foi não. Cada verônica imprime um


semblante diferente, cada um vinca o rosto de acordo com sua experiência de mundo. Tudo indica que nunca será diferente, pois quando constato diferença, encontro a hipocrisia estampada nas pestanas e nos vincos da boca.

E fiquem bem cientes de uma coisa: nunca passou qualidade nenhuma de arrependimento por minha cabeça. Sei muito bem o preço que estou pagando por essa empreitada que me bota na solidão e me atira num esquisito estado no qual encontro-me face a mim mesmo. Acontece que o homem, o indivíduo, se acostuma até com a morte, mas com a solidão, não. A natureza humana não é mutável, pelo menos nesses negócios quando diz respeito à solidão. Para completar, ela é teimosa. De toda maneira, acho bom logo acostumar-se com o fato de sermos mesmos uns enjeitados, que só podemos contar com nós mesmos, que a solidão é como um lajedo no qual estamos sentados. Sendo assim, é melhor ir logo habituando-se, tentando ficar o menos desconfortável possível. Bem assim, sofre-se menos.

Fico, às vezes, pensando o que passaria pela cabeça de minha querida filha Luzia, se ela visse tudo isso que agora estou contemplando. Luzia com sua delicada paciência. Luzia que ainda aos 48 anos quis casar vestida de noiva, com um cunhado viúvo, pai de seis filhos. Luzia e seu medo de ficar sozinha, que gerou uma paciência infinita para conviver com cabeças tão diferentes, assomando numa família de forte tradição católica e extremamente conservadora. Sorte dela que adotou uma sobrinha órfã e que já demonstra ter boa índole. Tenho um palpite que aquela minha neta, Ana, cuidará bem da minha filha quando a velhice chegar com seus fardos pesados de enfermidades e desesperanças.

Aí quando bate a saudade, fico fantasiando que um dia completarei cem anos, junto da minha mulher, Maria Francelina de Moura, com quem casei, aos 19 anos, no feliz dia de 22 de outubro de 1885, concebendo nove filhos, e com a qual, com a graça do Sagrado Coração de Jesus, associação a que pertenço, desejaria festejar nossos 75 anos de vida matrimonial. E se isso tudo acontecer de verdade, baterei um retrato, ladeado por todos aqueles que amei e que me amaram, servindo de exemplo à posteridade, pela minha perseverança e vontade de vencer as vicissitudes dessa vida cangaceira, desse destino não escolhido por nós mesmos e que somos obrigados a cumprir, feito penitente, balbuciando seu rosário de lágrimas, sentindo a nuança do sal de cada uma que embaça a vista, tornando-nos, de acordo com o temperamento, mais melhores ou mais amargos. Sim, até parece que Deus escreve torto.

Pode até ser que Deus escreva certo por tortas linhas, mas o destino não brinca em serviço, pouco se importando para o que Ele escreve, e vai é entortando tudo, empenando o que custa, muitas vezes, deixar reto.

Quando voltar penso botar um negócio para mim, quem sabe possa trabalhar no comércio de compra de peles, manteiga, ovos e frutas, levando para Mossoró, mesmo que seja sacrificoso levantar tão de madrugada, quando passa o trem. Também posso participar de feiras em cidades próximas, como Almino Afonso e Umarizal. Sou homem saudável e disposto. Mas se um homem não ocupa seu tempo com o trabalho, o que ele


vai fazer, então? A falta do que fazer é assim como se fosse uma bacia em que se fica lavando as mãos com a mesma água, a imundície vai se acumulando, e tudo se turva. O trabalho entorpece a alma do homem, deixando-o menos propenso a perscrutar, a inquirir o porquê das coisas que açoitam a existência. E se não bastasse essas coisas de filosofias, o fato de se ter uma ocupação útil, só ter o cansaço para o sono, já era o bastante para justificar o trabalho. Como homem que sempre fui dedicado ao trabalho honesto, sei de certeza que meus estimados pais o prof. Aderaldo José de Moura e Francelina Joaquina de Moura, nunca tiveram queixas de mim, desde que nasci na cidade de Caraúbas.

Sim, já ia esquecendo, encontrei, por acaso, um rapaz muito jovem daí e que tem por nome Juvenal Antunes. É a primeira vez que faço amizade com um poeta. Tive, assim, uma impressão, que é como se ele enxergasse coisas que a gente não vê. Também poderia ser pensada assim: coisas que a gente não faz questão de ver, ou por distração e acostumamento com o que nos rodeia, ou por que acende algum pavio de dor que o dia a dia atira para longe da nossa consciência. Aí vem o homem das letras e, além de um olhar mais cuidadoso, também se compraz em dar nome aos objetos ou aqueles sentimentos esquisitos que ficam nas fronteiras do vocabulário. Muito tenho aprendido com esse meu conterrâneo. O poeta é um ser que estabeleceu um estranho pacto com a morte. Hoje morro-me menos contrariado, ciente que estou da brevidade dos dias dos homens.

Muitos falam que tudo o que faço é feito sem pressa. É que desde pequeno tenho a impressão de que viverei por muito tempo. Quem foi acostumado a ter pouco ou a sempre perder, tudo é ganho. Os antigos não diziam o que cabe ao vivente: doença, velhice, morte e esquecimento? Resta aceitar, ir atrás de meio de vida, criar família, ir à igreja. Tem mais o que se fazer, por acaso?

Fico por aqui. Não está distante o meu retorno. Recomendações a todos que por mim perguntarem.

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