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sábado, 2 de abril de 2016

Especial: Recordando Severino Cruz Cardoso (Biró de Onofre) nos quarenta anos sem sua presença física no plano terrestre


Por José Romero Araújo Cardoso

Para Maria de Lourdes Araújo Cardoso (In memoriam), Jerônimo Vingt-un Rosado Maia (In memoriam), Benedito Vasconcelos Mendes, Ignácio Tavares de Araújo e a Wilson Bezerra de Moura
          Biró de Onofre veio ao mundo no dia das comemorações da proclamação da República do ano de 1926, falecendo em dois de agosto de 1976, ambos os fatos ocorridos em Pombal (Estado da Paraíba). Em 1961, ano que assinalou importantes comemorações a nível local no que tangem ao centenário de emancipação política da velha urbe sertaneja, conhecida como terra de Maringá, casou-se com Maria de Lourdes Araújo Cardoso, de quem era parente próximo, a qual namorou por mais de vinte anos.
          Era filho de Onofre Benigno Cardoso, descendente de judeus sefaraditas que saíram às pressas do litoral paraibano para o sertão, devido a chegada da Inquisição, depois da expulsão dos holandeses do Nordeste açucareiro em 1654, e de Francisca Martinha Cruz Cardoso, a qual fazia parte do ramo dos Rosado surgido através do casal Jerônimo Ribeiro Rosado – Francisca Freire de Andrade ( Cf. ROSADO, Vingt-un. Informações genealógicas sobre alguns Rosado. Mossoró/RN: Fundação Guimarães Duque, 1982 (Série C, Coleção Mossoroense, Vol. CCXXIII) ).   
          Coincidentemente, seu grande ídolo, Luiz Gonzaga, encantou-se para o plano espiritual no mesmo dia e mês do ano de 1989. O eterno sanfoneiro do riacho da Brígida foi, por toda existência de Biró de Onofre, a referência musical mais expressiva, na qual pautou seu imaginário enquanto fomento às noções de pertencimento à região Nordeste.
           Biró, bem como sua prima em segundo grau de nome Maria de Lourdes Araújo Cardoso, conhecida por Lia de Lourdes, tiveram pouca instrução, cursando apenas até o quinto ano do ensino primário. Naqueles tempos difíceis, era verdadeira odisseia conseguir evolução nos estudos. Somente pessoas bem situadas na estratificação social regional, ou alguns privilegiados pelo destino, caso de Josué de Castro, por exemplo, autor de célebres obras sobre o problema da nutrição, como Geografia da Fome: O dilema Brasileiro – Pão x aço, lançada em 1946, conseguiram esse feito.
          Lia de Lourdes ainda galgou alguns degraus no quesito instrução, pois dispôs de curso teórico e prático para técnica em enfermagem, no ano de 1949, em João Pessoa (Estado da Paraíba), cujo objetivo foi viabilizar exercício de funções empregatícias no Posto de Puericultura da Legião Brasileira de Assistência que o governo federal instalou em Pombal e que foi criminosamente fechado, quando do advento dos anos de chumbo da ditadura militar instalada no País em primeiro de abril de 1964.
          O grande sonho de Biró era um filho homem para poder compartilhar o que sabia sobre o sertão, seus segredos e mistérios, suas perspectivas, formas de contatos humanos, enfim, tudo que dissesse respeito às terras adustas ressequidas pelo sol escaldante e seu aliado incondicional, o vento alíseo nordeste.
          Dos três filhos que o casal Biró de Onofre – Lia de Lourdes teve, sobreviveu apenas o nascido em 28 de setembro de 1969. O primeiro, a esposa abortou em agosto de 1967. Uma “comemoração inusitada” em um casamento de um primo legítimo foi o estopim para a perda do primogênito. Aconteceu no sitio Lajedo, comunidade rural localizada em Pombal (Estado da Paraíba), pertencente à família Menandro da Cruz, herança do rico fazendeiro Sinhozinho Vieira, pai de Martinha Vieira da Cruz, esposa de Menandro José da Cruz. A companheira inseparável de Seu Menandro pertenceu a um ramo familiar que ainda hoje é conhecido em Pombal como os Maniçobas.
          Tratava-se de um bêbado que disparava a esmo. Biró foi tomar as providências. Desarmou-o, pois sabia perfeitamente todos os procedimentos a fim de neutralizar o atirador. Lia de Lourdes, infelizmente, não suportou o estresse.
          O segundo nasceu forte e saudável, também no mês de agosto, ano de 1968, mas foi vítima da falta de cuidados. No Hospital e Maternidade Sinhá Carneiro, uma garotinha de uns 13 anos tomava de conta do berçário. Uma queda e o bebê bateu forte com a cabeça no chão. Não resistiu e morreu. Assim como o primeiro, o casal havia decidido que deveriam colocar no segundo o nome de Severino Cruz Cardoso Filho. Sonharam em seus devaneios e confianças e já o chamavam carinhosamente de Birozinho.
          Adepto fervoroso de uma cachacinha, hábito que manteve desde quando trabalhava na pedreira de gesso das voçorocas da Espadilha, localizada no antigo termo de São Sebastião, hoje município de Governador Dix-sept Rosado (Estado do Rio Grande do Norte), época em que notabilizou-se a maior extração de rocha sedimentar gipsita no Brasil, talvez na América Latina, Biró entregou-se à boemia, tendo como símbolo maior a música Juazeiro, de autoria de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, não obstante gostar também das canções compostas e interpretadas por Nélson Gonçalves, Orlando Silva e Vicente Celestino.
          Não largou sua opção etílica de forma alguma, pois manteve-se incólume em sua sina até seu trágico desencarne, vitimado por fenomenal descarga elétrica, quando desafiava trifásica ameaçadora que tangenciava-se com as galhas de uma cajazeira. Tragar sofregamente fumo DuBom enrolado em papel-seda ou em palha de milho era outro vício que Biró tinha e que cultivou até o final de sua existência.
          Apesar de Juazeiro ter se transformado no hino oficial da pedreira de gesso, o qual fazia-lhe recordar momentos marcantes em São Sebastião, era com A Triste Partida que a emoção fluía por todos os poros. A magistral poesia matuta de Patativa do Assaré, narrando a saga, as desditas e os sofrimentos passados por uma família de retirantes tangida pela seca do Nordeste para o Sul, levava Biró de Onofre às lágrimas. Quando chegava no refrão sobre o meu pobre cachorro quem dá de comer, ele chorava compulsivamente. Lembro-me que em certa época chegamos a ter mais de dez cachorros em casa, cada um inseparável companheiro de caça de Biró de Onofre. Jolí e ligeiro foram os preferidos. Ele nunca levou-me para uma caçada, pois dizia sempre que era perigoso levar crianças e eu obedecia-o, não relutava, não pedia para acompanhá-lo, apenas ficava esperando-lhe, apreensivo, pois sabia muito bem quem era meu pai. Se desarmado era perigosíssimo, imaginem então com uma espingarda calibre 28 a tiracolo e dispondo de mais de quarenta cartuchos em um bornal?
          Nas festas do Rosário do mês de outubro, em Pombal, quando o profano, sem sombras de dúvidas, torna-se extremamente mais visível que o sagrado, Biró de Onofre entregava-se de corpo e alma à bebida. Inúmeras vezes saiu comigo pelas ruas de Pombal, completamente bêbado, pois, para desespero de dona Lia, tirava-me da rede onde dormia, colocava-me em seu pescoço e saia se equilibrando, orgulhoso em mostrar aos amigos, muitos, incontáveis, que finalmente realizara seu grande sonho de ter um filho homem para poder dividir o que sabia sobre a terra dos desafios, a grande e soberana nação sertaneja.
          Não vou dizer com absoluta certeza que ele era incapaz de fazer mal a alguém, pois era uma fera. Domá-lo, quando se enraivecia, era tarefa hercúlea. Diversas vezes eu o vi, quando dos pic-nics com os amigos e conhecidos, quebrar a cara de incautos e fazer riscos de faca em peçonhentos que ainda existem no sertão e que costumam exceder em certas práticas nocivas, como a falta de respeito para com os semelhantes.
          Eu o vi muitas vezes desarmar diversas pessoas, apetrechadas de faca ou com arma de fogo. Ele avançava sem medo, sem titubear, pois quando menos esperava-se ele estava em cima, irresoluto, sem pestanejar, dando o recado àqueles que não sabiam que desconhecia o significado do substantivo masculino medo. Tio legítimo de nome Romeu Menandro da Cruz, irmão de Francisca Martinha da Cruz Cardoso, era do mesmo jeito, tendo chegado ao ponto de desafiar Sabino Gório e seu bando sinistro no dia 28 de setembro de 1926, em Cajazeiras dos Rolins (Estado da Paraíba). Sabino foi chefe de subgrupo do bando de Lampião, tendo se destacado pela ferocidade e perversidade inauditas.
          Não posso esquecer ainda da participação de Lourenço Cruz, enquanto sinônimo de bravura, como defensor de Mossoró, postado de forma estoica e abnegada nas trincheiras de Saboinha, ou seja, na estação da estrada de ferro, em 13 de junho de 1927, quando Lampião e seus cabras invadiram a terra de Santa Luzia, sendo rechaçados por parte da população local e pelos poucos policiais que guarneciam a ameaçada cidade potiguar.
          Eu, criança que não entendia muito bem o que estava acontecendo, ficava distante, temendo pela vida do meu genitor, mas ele sabia se safar bem, pois impor respeito através dos velhos métodos sertanejos era uma das especialidades de Biró de Onofre. Tem horas, no presente, que parece até que um filme está voltando em minha mente, com certas atitudes do meu filho mais velho. Romero Júnior tem muitas coisas do avô.  Jerônimo Vingt-un Menandro, calmo e dócil, até o presente momento, parece ser o contrário do irmão afobado e afoito.
          Bruto ao extremo, papai certa vez despertou toda rua Benigno Cardoso devido aos desdobramentos de uma caçada de tatu. Ligeiro, cachorro de sua predileção, destemido e brabo como ele só, não dava espaço para que Biró de Onofre cavasse o local onde se encontrava o pobre animalzinho acuado. Com raiva, pegou o facão e rolou o rabo do desditado cachorro. Desesperado, ligeiro desceu os lajedos do riacho do bode em desabalada carreira, deixando rastros de sangue por onde passava. Papai conservou em casa, até sua morte, o pedaço que ele arrancou do rabo do cachorro ligeiro.
          Outro amuleto que guardava a sete chaves, o qual conservo comigo, é uma velha fotografia do Vasco da Gama que ele trouxe quando foi trabalhar na Mineração Jerônimo Rosado S. A., em São Paulo. Quando dos deslocamentos para o Rio de Janeiro, aproveitou para adquirir souvenirs do time do coração, tendo aumentado significativamente sua coleção de lembranças referentes à associação desportiva nucleada em São Januário.
          O restante da coleção sobre o Vasco da Gama que possuía não consegui localizar. Nem preciso dizer que a opção futebolística do meu pai influenciou de forma basilar na minha decisão referente para qual time torcer.
          Na década de setenta do século passado, provavelmente no ano de 1974, protagonizou feito inaudito e, creio, talvez inédito para um sertão desacostumado a um certo tipo de fauna exótica, pois, na companhia do inseparável amigo Curinha de Dr. Lourival, deram caça a um jacaré no rio Piancó, conseguindo capturar o animal que havia sido retirado do seu habitat natural na região norte ou no Maranhão e levado para Pombal, sendo jogado nas águas do velho rio, tendo crescido consideravelmente, passando a impor medo nas lavadeiras e frequentadores do balneário natural.
          O rio Piancó foi um dos relicários sagrados da minha convivência com Biró de Onofre, pois nos tradicionais banhos fui batizado perante as inclemências da terra do sol, sendo uma das garantias de pertencimento ao velho chão sertanejo.
          Sob pretexto de que eu tinha que me virar, Biró praticava certo tipo de “esporte” por demais perigoso para uma criança, pois atirar-me em locais profundos do curso d´água sertanejo consistia em verdadeiro divertimento para ele.  Conforme Dedé Espalha, de saudosa memória, amigo pessoal de Biró de Onofre, o argumento de papai para tal prática era que eu deveria saber como me virar perante os segredos e mistérios do rio Piancó.
          Dona Lia, concentrada em seus trabalhos no Hospital Distrital de Pombal, confiava-lhe para que tomasse-me de conta, ficando comigo em casa, pois, conforme dona Lourdes, minha avó materna, “boa romaria faz, quem em sua casa está em paz”.
          Ledo engano. Papai aproveitava que a vigília materna não estava próxima e tomava comigo o rumo das águas tortuosas do rio Piancó, levando-me de madrugada para conhecer de perto as coisas do nosso sertão.
          Ele improvisava pescarias noturnas, bem como diurnas, com tarrafas, com anzol, com landuá, bem como com as mãos. A facilidade que tinha para pescar era fantástica. Logo tínhamos peixes em grande quantidade. Tratá-los, temperá-los, principalmente com manjericão, essência nativa do semiárido, e cozinhá-los, também eram tarefas fáceis, pois Biró de Onofre sabia muito bem como aproveitar os frutos de sua aptidão natural como pescador. Era comum naquela época encontrarmos panelas de barro enterradas ao longo do leito do rio Piancó. Existia um local que margeava o curso d´água que era conhecido por panela, justamente por encontrarmos esses utensílios artesanais enterrados para que houvesse viabilidade no cozimento de espécies da fauna aquática que eram pescadas, bem como para o preparo do tradicional arrubacão à beira do rio.
          Obter fogo através da fricção de paus era algo simples também para ele. A farra de madrugada estava garantida. Eu me concentrava nos saborosos peixes e ele tanto saboreava o que cozinhava como aproveitava para dar um gole na garrafa de pinga que nunca esquecia quando “roubava-me” para fazer parte de suas aventuras pela madrugada.
          Não sei como, talvez atraídos pelo cheiro dos peixes sendo cozidos na panela de barro deixada por “solidários boêmios”, bem como pelo odor, para mim insuportável, da cachaça que não faltava quando papai estava por perto, principalmente no rio Piancó e na bodega de Severino Pedro, logo o improvisado acampamento estava repleto de apreciadores de uma peixada com pinga, sendo a maioria moradora das redondezas que conheciam por demais Biró de Onofre. Confesso com franqueza que ainda não conheci alguém mais conhecido do que ele em seu torrão natal.
         Depois de saciada a fome, geralmente vinha uma das partes que mais gostava. Papai preparava uma cama com folhas de jitirana, tendo seu ombro como travesseiro, momento que ele aproveitava para ensinar-me sobre o sertão, dizendo-me de quem eram os cantos dos passarinhos que pululavam pela madrugada, bem como cada uivo dos animais, apontando ainda, sem pestanejar, denominações vulgares das espécies vegetais próximas.
          Biró conhecia como poucos cada entoação do canto da mãe da lua, das corujas, das peiticas, da temida rasga-mortalha de canto considerado fúnebre no sertão, do bacurau, etc.
          A variedade de peixes encontrados no rio Piancó, na época, era tão impressionante, que vislumbrava a todos, enchendo os olhos a diversidade fantástica. Era grande a quantidade de piaus, tucunarés, traíras imensas, curimatãs, cascudos, piranhas, etc., que faziam a felicidade dos pescadores e boêmios.
          Essa riqueza piscícola era garantia de suplemento alimentar à população de baixa renda que dependia bastante do que o rio Piancó oferecia. Essa profusão de peixes também era verificada no rio Piranhas, o qual recebe o Piancó logo além da forquilha das Junqueiras, seguindo seu curso para o vizinho Estado do Rio Grande do Norte.
          Certa vez, quando de uma pescaria noturna com amigos, da qual não participei, Biró chegou em casa com o polegar direito quase partido ao meio. Sangrava bastante. Em um gesto inopinado, resolveu desalojar com as mãos imensa piranhas preta que escondera-se em uma afloração granítica localizada, na época, ao longo do leito do rio Piancó. A piranha preta, feroz e perigosa, levou a melhor na pescaria, terminando-a de forma tragicômica.
          Biró conhecia ainda cada espécie de nossa flora tão ameaçada de extinção. Não apenas fazia uma catalogação mental referente a cada árvore e a cada arbusto, como sabia também a serventia de cada um para manter saudável a saúde do sertanejo ou de quem quer que fosse.
          Luiz Gonzaga foi muito feliz quando gravou extraordinária e belíssima canção, a qual enfatiza de forma sublime que: “como é bonito a gente ver, em plena mata o amanhecer”. Biró de Onofre mostrou-me o sertão de corpo e alma, através de suas essências mais marcantes.
          Parece até que ele se inspirava nesse hino sertanejo quando me levava para conhecer a natureza que rodeia nossa nação, nosso espaço, hoje, infelizmente, tão ameaçado pela intensiva ação antrópica.
          É no amanhecer que o sertão se torna mais sertão, pois o cheiro inigualável das árvores nativas e das águas dos rios é percebido pelo olfato mais sensível daqueles que amam a região.
          Quando das tradicionais vaquejadas ocorridas no mês de julho no Parque Manuel Arnaud, em Pombal, Biró transformava-me em um vaqueiro-mirim, pois fazia questão que eu ostentasse chapéu de couro, luvas, chibatinha e outros adereços integrantes da indumentária do grande herói do sertão.
          Exímio aboiador, resultado de suas lidas no trato com o gado no Carro Quebrado, denominação toponímica da propriedade de Onofre Benigno Cardoso, herança do velho ourives Benigno Ignácio Cardoso D’ Arão, Biró desfilava comigo pelo chão de terra batida do Parque de Vaquejada pombalense, como troféu, entoando a sonoridade laborial do vaqueiro sertanejo.
          Entusiasta da nossa cultura popular, levava-me à tradicional feira dos sábados em Pombal para ouvir cantadores e repentistas declamarem versos do Pavão Misterioso e de outros clássicos da literatura de bolso nordestina. Os folhetos de cordel foram despertando-me a atenção em razão da forma como viabiliza a produção poética do autêntico literato regional, pois a maioria é composta por seres humanos desprovidos de recursos, sem condições de publicar livros refinados.
          A feira foi sendo-me revelada espetacularmente, pois tudo que havia da produção artesanal sertaneja encontrávamos com facilidade naquela época. Selas impecavelmente trabalhadas, arreios, botas e chapéus de couro, bem como de palha, chocalhos, feitos cuidadosamente por hábeis ferreiros, panelas de barro, jarras para colocar água, aguidares, lamparinas, quartinhas, bornais e peias de couro, etc. eram comercializados na feira de Pombal. Hoje, a globalização mudou muito o rumo das coisas, modificando os produtos que encontramos à disposição, não obstante ainda encontrarmos muito da cultura popular de nossa região sendo vendido no lócus livre da comercialização pombalense.
          Incontáveis vezes fizemos o trajeto Sousa – Governador Dix-sept Rosado – Mossoró e vice-versa, nos vagões das composições férreas da saudosa estrada de ferro inaugurada em 1915. A velha terra do alho, do gesso e da cal era, geralmente, o destino mais procurado, pois marcas indeléveis estão fincadas por lá de forma mais efetiva e proeminente, não obstante ser batizado em Mossoró e na capital do oeste potiguar estarem fixados inúmeros familiares, tendo em vista que após a fragmentação e a marginalização das explorações de gesso e da cultura do alho e da cebola às margens do rio Apodi-Mossoró a migração de inúmeros dix-septienses para a segunda aglomeração urbana potiguar tenha se efetivado de forma intensa.
          Festas de São Sebastião em Governador Dix-sept Rosado constituíram-se em um dos motivos de deslocamentos da Paraíba para o Rio Grande do Norte nas companhias de Biró de Onofre, de dona Lia e de dona Cora, sendo que essa última era minha tia paterna e mãe de criação.  
          Todas as noites, depois que dona Lia dava-me banho, ficava sentado em seu colo para esperarmos a chegada do vento refrescante de Aracati. Pedia-lhe para contar-me histórias do tempo da pedreira. Lembro-me bem de uma, referente a uma ema que apareceu nas imediações da exploração de gesso.
          Disse-me que chamou um conhecido, compadre Bevenuto, para abater a imponente ave, conhecida como avestruz das Américas. Conforme relatou-me, era tão grande que foi preciso ser transportada nas costas de um burro.
          Naquela época era comum bandos de emas e varas de porcos-do-mato serem vistos na chapada do Apodi. Hoje, infelizmente, não existem nem rastros desses animais nos seus habitats naturais. Foram extintos pela irresponsabilidade humana.
          Naquele fatídico dia dois de agosto de 1976 eu parei, atônito, pois foi-se para sempre meu herói, meu ídolo, meu bandido, meu pai amado de quem nunca esquecerei.    Hoje, quarenta anos sem a presença física de Biró de Onofre no plano terrestre, as transformações são intensas e visíveis no espaço que tanto amou.
          O rio Piancó continua poluído, imundo, cheio de dejetos de toda espécie. Os peixes não existem mais em tamanha profusão como naquela época e os pássaros migraram para longe ou simplesmente desapareceram por que, entre outros motivos, a mata ciliar nativa foi derrubada para servir a fins diversos.
          O que não muda é a saudade de abraçar novamente meu pai e dizer-lhe o quanto o amo e o quanto sou agradecido por todos os momentos que passamos juntos, pois foram importantíssimo para que meu fascínio pelo sertão se efetivasse da forma mais proeminente possível.
 José Romero Araújo Cardoso. Geógrafo. Escritor. Professor-Adjunto IV do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Especialista em Geografia e Gestão Territorial e em Organização de Arquivos. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Sócio da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC) e do Instituto Cultural do Oeste Potiguar (ICOP). Filho único de Severino Cruz Cardoso (Biró de Onofre) e de Maria de Lourdes Araújo Cardoso (Lia de Lourdes).

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