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quinta-feira, 6 de março de 2025

Especial: Ivanise: a permanente alegria das cores.

Por Márcio de Lima Dantas. 

 Mais digno de ser escolhido é o bom nome do que  

as muitas riquezas; e a graça é melhor do que a  

riqueza e o ouro. 

Provérbios, 22:01 


 

Ivanise Lima do Vale (São José de Mipibu, RN, 1951) reside atualmente em  Parnamirim. Começou a pintar em 1985. É autodidata. É uma residência com muitos  pintores. Nivaldo Rocha do Vale, é seu esposo, também um naïf, nasceu em Santa Cruz  do Inharé, RN (25.08.1946). Começou a pintar no ano de 1964. Divaldo (01.01.1982),  seu filho, começou a pintar em 1999 e Lenivaldo (20.05.1977), também seu filho. Provavelmente, a tradição estética que mais dispõe de artistas de alto quilate, no  Rio Grande do Norte, seja a dos naïfs, haja vista a autenticidade encontrada quase na sua totalidade, revelando uma expressão espontânea advinda de uma pulsão que gesta  singularidades emanadas de qualquer lugar onde se encontram e vivem esses pintores.  Não é possível apelar para a geografia; talvez seja melhor remeter à história e suas linhas  de continuidade. Maria do Santíssimo é um excelente exemplo dessa forma de expressão. Se remetermos ao que essa deixou como influência, dificilmente alcançaríamos  explicar essa constelação brilhante, que se distingue pela originalidade. O que quero dizer  é o fato de quase nenhum desses artistas terem tido acesso às obras de Maria do  Santíssimo, não havendo solução alguma de continuidade. Maria do Santíssimo não tinha  a mínima consciência do fato de fazer pincéis com palitos de côco para pintar seus galos  e flores com anilina. Eram puramente funcionais e serviam para revestir os baús que seu  esposo vendia nas feiras.  Acredito que o Rio Grande do Norte, em termos de Brasil, detém uma plêiade de  naïfs de grande originalidade, haja vista participarem de exposições nacionais e  conseguirem prêmios. Pernambuco também é outro estado detentor de grandes expoentes  dos chamados ingênuos.  

Em se tratando de uma empreitada para analisar e interpretar determinado artista,  buscando compreender suas séries ou pinturas mais independentes, faz-se necessário  levar em consideração o cotejamento com outros artistas da mesma região ou do mesmo  país. De imediato, encontram-se imagens assemelhadas. Eis o que aparece: os mesmos  mitos, as mesmas narrativas, a arquitetura com suas pirâmides, as práticas religiosas,  deuses assemelhados, e por aí vai. Se é assim que funcionam as estruturas elementares,  talvez seja melhor buscarmos em outras disciplinas das Ciências Humanas, tais como a  Antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss. Para este, cada sociedade é constituída  de variados arquétipos simbólicos, sendo encontrados, quando de pesquisas mais  profundas, em suas tradições (cito de memória). Os arquétipos caminham para os mesmos arrabaldes onde existem agrupamentos  humanos, detendo eficácias bastante semelhantes, comprovando o que o antropólogo  francês descreveu. Com relação às artes visuais, essa tese se comprova bastante tangível;  é suficiente observar com atenção para reparar o quanto as diversas forças seguem em  direção a um vetor principal. Quero dizer que o fato de o Rio Grande do Norte deter tantos pintores naïfs,  mesmo cada um detendo sua individualidade e originalidade, é possível apontar aspectos  que não se filiam uns aos outros, pois a maioria nem se conhece entre si. É como se  houvesse uma necessidade intrínseca, formações das entranhas, que paira no espírito de  comunidades e acaba por determinar, inconscientemente, determinados comportamentos de representar, de ser ou parecer, conduzindo ações e discursos, disputas por alguns  papeis sociais. Mas não é de se espantar que outros países também detenham seu cabedal de  artistas sem nenhuma formação acadêmica e que seguem pintando como parentes  próximos dos naïfs. Explicitando, sem maiores explicações, um jugo que talvez, logo na  infância, instalou-se, conclamando à obediência de se expressar por meio de alguma  forma de arte. Como se fosse uma necessidade. Mesmo tendo certeza de que não era algo  funcional, não seria um meio de vida, um ofício, só se sentia aliviado, livre do  desassossego, se diante dele estivesse algo que foi plasmado com prazer, emanado de que  área da sua alma estivera adormecido. 

A paleta de cores presentes nas telas de Ivanise não exclui nenhuma cor,  configurando contrastes de formas e uma organização pictórica remetendo ao que parece  ser seu principal referente: a alegria de viver, seja no trabalho ou nas inúmeras  possibilidades de passar o tempo e se divertir. Esse caráter de concelebrar – como se fosse  possível – apenas um aspecto da existência, quer dizer, um bem-estar permanente, álacre,  só é possível na ficção (música, literatura, cinema, teatro, pintura). Parece ser o caso de  Ivanise, cujo trabalho exulta sem cessar essa adesão a compreender o cotidiano como  lugar onde não existe a atribulação, a ansiedade, enfermidade, envelhecer e a morte. Com efeito, suas telas organizam um propósito estético para eventuais fruidores  de arte, deixando-se impregnar durante o tempo que circulam em uma exposição,  admirando e deixando-se abismar em paisagens idílicas, onde a festa e seus  esquecimentos preenchem momentaneamente, como se fosse uma catarse. Não existe o  luto, a perda, as dores físicas, as lembranças teimosas, enfim, tudo o que não nos apetece,  do ponto de vista existencial. Ao se retirar dessa contemplação, resta tão-somente a  resignação ou a revolta, latejando o que o humano detém de possibilidade nos hiatos entre  uma vicissitude e outra, eis. 

A festa detém muitas funções nos distritos onde os humanos se organizam; não é,  pura e simplesmente, alguma espécie de desregramento elevando-se ou afastando-se da  Realidade. Também é uma contribuição aos liames de pertencimento a um grupo social,  fortalecendo a coesão de que significamos bem mais do que pensamos. É possível identificar, nas telas de Ivanise, folguedos populares: reisados,  quadrilhas de São João, bandas de música, feiras populares. Ou eventos reforçadores da  socialização e da identidade dos grupos sociais de certas paragens: mulheres tecendo  bicos em almofadas de renda, lavando roupa junto com outras mulheres, recreio da escola. Há também uma outra função mais subliminar: a festa como potencialmente  detentora de criar uma memória relacionada aos familiares ou vizinhos, lançando  fragmentos de narrativas aos pósteros. Uma memória com forte conteúdo de afeto, bem querer, irmanada que se encontra na identificação de cambiar, por meio de uma ruptura  com o cotidiano, o festim que reitera a amizade, o amor ou o parentesco. 

Penso ser desnecessário se deter com maiores explicações acerca da gramática  pictórica da arte naïf, caracterizada pela ausência da perspectiva ou um maior esmero no  desenho dos corpos e dos semblantes resultantes do contorno dos olhos e da boca, não  que expressar determinado tipo de estado da alma leve só em conta esses dois itens. É a  observação do todo, no nosso caso, que vai circunscrever o estar contente, não apenas  retendo cada figura humana, mas o cintilar de um conjunto no qual as cores concorrem  para exultar o júbilo de se encontrar em uma festa. Há de compreender a arte naïf como uma tradição estética que segue paralela, ao  longo da História da Arte, com as chamadas Belas Artes, também conhecida como arte  acadêmica, durante muito tempo necessária como signo de bom gosto e signo de  diferenciação social, fomentada pela aristocracia e pela Igreja Católica. Hoje em dia, esse  paralelismo chegou ao fim, pois as tantas e múltiplas estéticas fundiram-se em mesclas  nas quais se torna difícil apontar a pureza de algum fenômeno relacionado às artes visuais,  por exemplo. Por isso, não há o que buscar em uma tela naïf. Provavelmente tudo já foi dito,  analisado e interpretado, não sendo difícil identificar uma obra ingênua. Malgrado, como  já disse, se houver hibridismo de estilos de época ou confusão entre as duas tradições com  a arte digital. Sendo assim, o afeto e a admiração causada por uma empatia de se deixar  conduzir pelo feixe de símbolos presentes, reiterando individualidades de pessoas  pertencentes a determinadas paragens, chantando um modo de ser e parecer. Esses símbolos organizam estruturas mentais partilhadas por contornos e  meandros geográficos ou reiteram narrativas de eventos históricos. Não posso deixar de  mencionar os muitos ritos já extintos ou em processo de desaparecimento. Alguns  exemplos: as quadrilhas estilizadas ou o uso do ritmo forró com extrema vulgaridade.  Tudo se move. Fecham-se ciclos. Transmuta-se a memória; ninguém lembra mais de  nada. A cultura e o conhecimento livresco são apresentado de maneira fragmentada.  Chegam ao absurdo de resumir um romance. 

É o que sucede com a pintura de Ivanise. Ao que parece, resulta de uma  permanente vontade de se expressar por meio de figuras resultantes de uma simplicidade  que beira, no bom sentido, o desenho de feitio infantil. Contudo, seus referentes  plenificam com uma forma de viver concernente a todas as faixas etárias, trazendo para o que tem valia e sustenta os rituais referentes à condição do que se acha agrupado,  inclusive adentrando pelos arredores quando há possibilidade de agregação. Uma coisa bastante interessante nessa pintora é a presença de um ethos (caráter)  narrativo, presente nas figuras que povoam os planos, quase sempre dividindo a tela em  um terço mais dois terços ou metade e metade. Há, subjacente, uma espécie de: os  presentes estão submetidos a um intervalo no qual a imobilidade presentifica uma ação.  Acontece que, quando nos afastamos do quadro, contemplando o todo, há um bulício do  conjunto, proporcionando uma dinâmica na qual o olhar se enche de uma alegria com seu  caráter popular. Um contentamento se deleita ao extrair de tão pouco ou mesmo quase nada vindo  de fora para outorgar regozijo e esquecer a inquietude, via de regra, ancorada nas  atribulações chegadas de chofre e sem pedir guarida ou bater à porta. E tem mais. O uso  de cores, sem buscar o simbolismo de cada uma ou se deter sobre a paleta acadêmica,  para saber o que combina ou não, imprime uma feição ornamental presente em todas as  telas. Tudo é contraste espontâneo e beleza, nas casas, águas, firmamento, árvores com  frutos, arbustos floridos. Com efeito, ornamental destituído da sinonímia do querer enfeitar gratuitamente,  empobrecendo a obra. Ornamental que resulta em grande harmonia do evento que  acontece em um recorte de agrupamento social, originando uma festa lançada ao  espectador por meio de uma legítima obra de arte: fazendo-o assuntar como a existência  funciona, de uma presença no mundo, de desistências e inimizades consigo mesmo, de  compreender os valores relacionados a cada tempo, de uma obrigatória necessidade de  julgar através de um relativismo, de ser compassivo. Enfim, de compreender e aceitar que  a festa, o bom humor, o ser espirituoso, são apenas cartas no baralho da existência;  compete a nós decodificar logo cedo qual a sintaxe desse jogo todo, para tentar caminhar  na vera vereda e considerar tudo como uma trajetória, uma sucessão de ciclos que se  fecham, para que outros se abram e nunca esquecendo o adágio latino: memento mori.

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