email atual aluisiodutra@gmail.com

segunda-feira, 31 de março de 2025

Especial: Etelânio: o sopro quente do tempo e as criaturas de retalhos

 

Nem as coisas têm forma própria 

mas a que lhes dá a mão, usando-as. 

Henriqueta Lisboa 



Etelânio (Uiraúna, 1960) radicou-se há quarenta anos em Pau dos Ferros (RN).  Sempre trabalhou com vários tipos de técnicas, tais como grafite, carvão, acrílica, óleo e  têmpera ovo. Pelo fato de deter o domínio de uma enormidade de modos picturais, isso  possibilitou também se deter sobre múltiplas formas de atuar sobre os seus diversos  suportes, configurando toda uma variedade de temas, desde o carvão, o grafite, até a  acrílica sobre tela e a pintura a óleo. 

Podemos iniciar através de uma série de cuja natureza saltam aves e outros  animais. Seria como se fosse seu bestiário, todos ornamentados com estamparias várias,  criando um efeito que nos conduz a se debruçar com um olhar anômalo, curioso, haja  vista esse polimorfismo pictórico deixar os animais em situação de quietude, de silêncio  e indiferença, face a quem contempla ou deixa inquirir o mais da conta, que não se  conforma em aceitar essas belas estamparias. O certo é que outro tipo de pessoa deixa viver com indiferença, apenas  quebrantando seu olhar sobre o colorido sarapintado dos corpos, seja dos humanos ou dos  animais. Cada personagem anfitrião da tela denuncia-se pela clareza, pela limpidez, pelas  cores justapostas, qual estampas coladas uma sobre a outra, como se fossem retalhos, não  apenas de cores, em um processo de opulenta ornamentação, fazendo lembrar o que, de  enfeite, o estilo Barroco sempre houve. É óbvio que o que chamei de enfeite não passa de uma forma de chamar atenção,  pois, na verdade, havia uma ideologia subjacente: um apelo às subjetividades daqueles  que adentravam pelas igrejas católicas, tocando o lado emocional de pessoas que se  relacionavam com o sagrado. Por fim, era uma promessa de passar para outra dimensão  ao se contemplar ou se deixar levar por tanto dourado, por tanto ouro, por um céu. 

Ainda tratando do bestiário do artista. O plano de fundo tem como função  personalizar o personagem da tela, deixando ver o que prima pela mais intensa beleza.  Preenchendo todo o retângulo da tela com uma exuberância de cores e também pródigo  as sobreposições do que podemos chamar de retalhos, com cada um individualmente  detendo sua identidade, com pequenos desenhos parecidos com arabescos, cianinha ou  bicos usados em vestimentas para ornamentar ou imprimir as indumentárias ou alfaias.  Com efeito, toda essa coleção de animais que se dão em espetáculos nos terreiros,  sob um sol de onde ofusca uma luz, tornando o trabalho de forma que a luz exalta não  apenas os animais, mas todo o seu entorno, vindo a ser uma franca transparência que, por  sua vez, nada esconde para si. É como se posassem para quem está com o pincel na mão,  com a paleta, com a criatividade de costurar remendos, conformando em uma nitidez que  mais se parece para si, nada escondendo da realidade. Ora, mesmo porque esses animais eivados de arabescos de todos os jeitos e cores  são um acréscimo à realidade, no sentido de que o íntimo do artista não se encontra  completo com a plêiade de objetos inertes ou em movimentos. Não foi por isso que ele,  por uma necessidade interior, recebeu uma ordem das entranhas para demonstrar sua  insatisfação, sua incompletude, sua vontade de criar um novo mundo, paralelo ao real que  chamam de fato? Por isso, pelo fato de a realidade ser incompleta, o artista chafurda no seu lodo  interno, nas suas regiões mais profundas ou abissais, fazendo vir à tona toda uma sorte de  signos analógicos. Na verdade, são símbolos que mais nos dizem de si do que nós deles. Mas por que não permanecem lá, em suas grutas discretas e imotas? Talvez só possam emergir quando nós sentimos determinadas emoções que clamam por uma vontade de  plasmar algo diferente. O que chamamos de necessidade intrínseca e tem a ver com algum  momento de uma vicissitude qualquer, quem sabe alguma hora de alegria. O  funcionamento do inconsciente detém sua própria gramática, não nos compete o saber de  tudo como funciona. Pode ser que ele envie uma mensagem equívoca quando estamos  desesperados. O Budismo fala a respeito dos oráculos: quando os homens os consultam  em desespero, os deuses dizem de mentira.

Chega a impressionar os seus desenhos feitos a partir de fotografias. Retratos de  um realismo que não tem quem duvide que não são desenhos do artista (carvão, grafite).  Ademais, alguns foram elaborados puramente por recreação, como os de crianças ou  mocinhas. Sucede que nada é perdido daquele que fora a cópia e que chamam de  realidade: tudo permanece intacto, as curvas de um rosto, os olhos e a boca. 

Na verdade, uma grande parte desses desenhos são de suma beleza. Quero falar  dos idosos: Paulo Zoroastro, Franklin, Mestre Fernando Rodrigues do Santos, João Preto,  Dona Maria, Bosco de Batista, retratos de Vaqueiros. Quero dizer, principalmente, dos  que resguardam no semblante uma lídima sabedoria e deixam entender que os  personagens do tempo, vividos por muitas eras, o que nominam de velhice, esses não  tiveram seu legado impune. A presença de Cronos é de um presente com tato e fúria: não  escolhe a quem soprar seu hálito morno para todos os viventes. Estão intactos enquanto  humanos, na gesticulação, na forma como entram ou saem de algum lugar ou mesmo no  jeito como conversam ou contemplam, observando o seu entorno, a realidade ou o  movimento dos relógios nos braços, nas paredes, qualquer que seja o lugar. Há de se indagar a assertiva que eu disse sobre a pressa de Cronos (O Tempo),  feito fúria, frenético, passadas largas; também não se permite mensurar, apenas devora os  humanos.

De toda maneira, qual a fita métrica usada para medir tais elementos? Não  existe uma trena para isso. Não há como outorgar a tanto de sol e lua que passaram.  Outrossim, é melhor se deixar ao relento das horas, deixando que tudo passe, sem buscar  as razões pelas quais o tempo detém sua gramática permanentemente em sopro,  introduzindo algo de novidade. Cronos não se interessa pela placidez dos humanos,  sempre está em movimento e devorando os ponteiros dos relógios, nada respeitando ou  escrevendo linhas com ambiguidade. Com efeito, ninguém pode se escusar a ser diferente. Há de aceitar o sopro dos  que nascem, erguem-se homens, elevam-se maduros; chega a doença, a velhice e a morte.  Nada há de se fazer diante dessa lógica perversa e cruel. No conjunto de desenhos em preto e branco, qualquer que seja a técnica, Etelânio  logra êxito em ser dotado, e tem o dom de um artífice, de uma mão capaz de desenhar  com grande maestria e naturalidade, essa tradição de desenhar por meio de algo como um risco preto e uma folha de papel. Enfim, quero dizer do total vigor, causando  estranhamento, pois não é muito comum encontrar alguém que tenha essa capacidade.
Ainda mais quando existe uma tipologia de personas selecionadas. E são esses  rostos, com seus vincos; essas barbas crescidas pelo tempo, sem medida; esses olhos  franzidos de alguns; essas bocas cujas feições não negam o silêncio e seus motivos; enfim,  uma sorte de pessoas que não enganam pela aparência. São esses sencientes que  estampam no rosto as vicissitudes, os dissabores, o trabalho como necessidade. Ora, não  conseguem esconder o que passaram no decorrer da sua existência. Mas, muito mais a dizer, é que o artista consegue, através de um retrato, imprimir  archotes a iluminar os semblantes e deixar transparentes o que foi vivenciado por uma  senhora ou por um senhor. O certo é que precisa ser muito ingênuo para se deixar enganar.  Há quem diga que a máscara mortuária (o rosto do morto, como ficou) é justo a maneira  como a pessoa faleceu.


Nenhum comentário:

Postar um comentário