Nem as coisas têm forma própria
mas a que lhes dá a mão, usando-as.
Henriqueta Lisboa
Etelânio (Uiraúna, 1960) radicou-se há quarenta anos em Pau dos Ferros (RN). Sempre trabalhou com vários tipos de técnicas, tais como grafite, carvão, acrílica, óleo e têmpera ovo. Pelo fato de deter o domínio de uma enormidade de modos picturais, isso possibilitou também se deter sobre múltiplas formas de atuar sobre os seus diversos suportes, configurando toda uma variedade de temas, desde o carvão, o grafite, até a acrílica sobre tela e a pintura a óleo.
Podemos iniciar através de uma série de cuja natureza saltam aves e outros animais. Seria como se fosse seu bestiário, todos ornamentados com estamparias várias, criando um efeito que nos conduz a se debruçar com um olhar anômalo, curioso, haja vista esse polimorfismo pictórico deixar os animais em situação de quietude, de silêncio e indiferença, face a quem contempla ou deixa inquirir o mais da conta, que não se conforma em aceitar essas belas estamparias. O certo é que outro tipo de pessoa deixa viver com indiferença, apenas quebrantando seu olhar sobre o colorido sarapintado dos corpos, seja dos humanos ou dos animais. Cada personagem anfitrião da tela denuncia-se pela clareza, pela limpidez, pelas cores justapostas, qual estampas coladas uma sobre a outra, como se fossem retalhos, não apenas de cores, em um processo de opulenta ornamentação, fazendo lembrar o que, de enfeite, o estilo Barroco sempre houve. É óbvio que o que chamei de enfeite não passa de uma forma de chamar atenção, pois, na verdade, havia uma ideologia subjacente: um apelo às subjetividades daqueles que adentravam pelas igrejas católicas, tocando o lado emocional de pessoas que se relacionavam com o sagrado. Por fim, era uma promessa de passar para outra dimensão ao se contemplar ou se deixar levar por tanto dourado, por tanto ouro, por um céu.
Ainda tratando do bestiário do artista. O plano de fundo tem como função personalizar o personagem da tela, deixando ver o que prima pela mais intensa beleza. Preenchendo todo o retângulo da tela com uma exuberância de cores e também pródigo as sobreposições do que podemos chamar de retalhos, com cada um individualmente detendo sua identidade, com pequenos desenhos parecidos com arabescos, cianinha ou bicos usados em vestimentas para ornamentar ou imprimir as indumentárias ou alfaias. Com efeito, toda essa coleção de animais que se dão em espetáculos nos terreiros, sob um sol de onde ofusca uma luz, tornando o trabalho de forma que a luz exalta não apenas os animais, mas todo o seu entorno, vindo a ser uma franca transparência que, por sua vez, nada esconde para si. É como se posassem para quem está com o pincel na mão, com a paleta, com a criatividade de costurar remendos, conformando em uma nitidez que mais se parece para si, nada escondendo da realidade. Ora, mesmo porque esses animais eivados de arabescos de todos os jeitos e cores são um acréscimo à realidade, no sentido de que o íntimo do artista não se encontra completo com a plêiade de objetos inertes ou em movimentos. Não foi por isso que ele, por uma necessidade interior, recebeu uma ordem das entranhas para demonstrar sua insatisfação, sua incompletude, sua vontade de criar um novo mundo, paralelo ao real que chamam de fato? Por isso, pelo fato de a realidade ser incompleta, o artista chafurda no seu lodo interno, nas suas regiões mais profundas ou abissais, fazendo vir à tona toda uma sorte de signos analógicos. Na verdade, são símbolos que mais nos dizem de si do que nós deles. Mas por que não permanecem lá, em suas grutas discretas e imotas? Talvez só possam emergir quando nós sentimos determinadas emoções que clamam por uma vontade de plasmar algo diferente. O que chamamos de necessidade intrínseca e tem a ver com algum momento de uma vicissitude qualquer, quem sabe alguma hora de alegria. O funcionamento do inconsciente detém sua própria gramática, não nos compete o saber de tudo como funciona. Pode ser que ele envie uma mensagem equívoca quando estamos desesperados. O Budismo fala a respeito dos oráculos: quando os homens os consultam em desespero, os deuses dizem de mentira.
Na verdade, uma grande parte desses desenhos são de suma beleza. Quero falar dos idosos: Paulo Zoroastro, Franklin, Mestre Fernando Rodrigues do Santos, João Preto, Dona Maria, Bosco de Batista, retratos de Vaqueiros. Quero dizer, principalmente, dos que resguardam no semblante uma lídima sabedoria e deixam entender que os personagens do tempo, vividos por muitas eras, o que nominam de velhice, esses não tiveram seu legado impune. A presença de Cronos é de um presente com tato e fúria: não escolhe a quem soprar seu hálito morno para todos os viventes. Estão intactos enquanto humanos, na gesticulação, na forma como entram ou saem de algum lugar ou mesmo no jeito como conversam ou contemplam, observando o seu entorno, a realidade ou o movimento dos relógios nos braços, nas paredes, qualquer que seja o lugar. Há de se indagar a assertiva que eu disse sobre a pressa de Cronos (O Tempo), feito fúria, frenético, passadas largas; também não se permite mensurar, apenas devora os humanos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário