Por Márcio Lima Dantas.
Não apenas olhar mas ver ao infinito num segundo
certo rosto sofrido entre e ardente
boca cerrada entre dois vincos.
Henriqueta Lisboa.
Achei melhor começar este ensaio de maneira enviesada, ou seja, de um torto que muito tempo depois se fez reto. Aguardando algo que fui buscar no Shopping Cidade Verde (Unimed), permaneci em uma sala de espera. Observei na parede do lado esquerdo uma grande tela retratando um opulento vaso de flores, parecendo se reger por uma simetria bilateral. Como se estivesse sobre uma mesa marrom. A artista parece que tinha um horror vacui, no momento em que determinou edificar esta obra; queria distância do espaço vazado em algum hiato ou qualquer espécie de vazio em um quadro, distâncias em nacos que abrisse espaços em branco. Parece que eu estava diante de um fenômeno no qual eu discorria e sentia assim. Era o caso, pois com uma rigorosa simetria bilateral, repito, podia cortar a tela ao meio, fazendo de uma, duas. Essa forma de deixar a tela em simetria bilateral —diferente de uma simetria radial — imprime, no conjunto dos elementos que compõem a tela, uma harmonia de perfeito ser, de se permitir deixar uma liberdade, de deixar o espectador imoto em presença de uma silente forma; falo do sentido da maneira mais sensata de se contemplar uma obra de arte com muito valor e valia. Aqui, no caso, constatamos a presença de um minimalismo nas cores que estão arrumadas no vaso de cor verde. E com a presença de cores em parcimônias: basicamente ocorre o bege, o amarelo, o vermelho e o lilás. Um austero minimalismo que, de um parco, conquanto poucos elementos a contemplar, de um torto observado, vieram a ser um opulento arranjo de flores justapostas. Eis que temos tamanha beleza, poucas cores e folhagem de diversas formaturas. Não à toa, ocupa o lado esquerdo da porta, lugar de passagem dos que ali estão para resolver e, quem sabe, ao contemplar a magnífica tela, possam se deter um tanto de tempo e se deixar possuir pelo quebranto emanado de uma variedade de cores desenhadas e em franco equilíbrio. Se me faço compreender, estou evocando o valor terapêutico de quem “acredita” que a observação da arte pode redimir ou curar determinadas enfermidades da alma, sobretudo quando concerne a distúrbios afetivos ou também àqueles gestados em regiões cujo acesso não podemos alcançar, tampouco interferir. Falo de regiões abissais nossas, nas qual o líquido não detém transparência, mas, vez ou outra, explodem bolhas de significantes fazendo saber de uma ânsia de vir a ser coisas diferentes daquilo que é palpável e chamam de realidade. Vejamos o que podemos extrair desse imoto vaso de flores, qual vigilante da sala, onde pessoas de diversas classes sociais chegam para resolver assuntos relativos, sintomaticamente à saúde. Ficamos por aqui.
Ao contemplar o conjunto da obra figurativa e abstrata de Sônia Jácome, acrescida de outras técnicas como a xilogravura, faz-se mister deter uma mente aberta de peregrino que não se cansa de andar, como se fosse um mendicante, no melhor sentido, porém insiste no prazer em avistar novas paisagens, como se recebesse o frescor de um vento marítimo. Só assim, então, de maneira como adentra na mente, chega-se a tocar cada aura concernente ao que diz respeito às linhas sobrepostas plasmando triângulos ou outras figuras geométricas, contendo em seu interior uma ou mais cores, configurando uma beleza singular, consoante o tom sobreposto a outro. Estou falando dessa série ordenada por meio de triângulos retângulos justapostos em formação várias, em cores e nuances, sendo que a forma original permanece intacta. Contudo, as cores fazem nascer novos tons, originando uma beleza resultado de ângulos retos advindos de suas cores internas. Acontece que todas as figuras geométricas permanecem no seu riscado intactas; o que é alterado é a cor, em um processo interno ao justapor. Sem sombra de dúvida, uma das mais bonitas séries de Sônia Jácome. Esqueci de dizer que também há espécies de conjuntos nos quais os círculos é que fazem a justaposição. É como se quisessem arremedar coisas, peças ou produtos que povoam o mundo real, diferente dos primeiros aqui comentados. Nesses segundos, com linhas curvas, há um enlinhado de quadrados e círculos, basicamente.
Mas o primor das séries sugiro ser as mulheres com máscaras africanas, evocando fortemente os rostos de Pablo Picasso e o Cubismo, que, como é sabido, retratava de longe rostos e corpos da realidade, configurando uma alternativa de quem não se conforma com o que enxerga, toca ou imagina, preferindo, por meio da imaginação, engendrar uma alternativa a essa realidade que se movimenta ao nosso redor. Voltemos à noção de peregrinagem, no sentido de inquietude, de não ficar se repetindo, fazendo o mesmo. Com efeito, prefere um leque de diversas cores e formas. Podemos nos deter um pouco sobre essa ruma de mulheres em muitas e tantas poses. Assim como se fosse uma espécie de mapa, constando os diversos tipos de mulheres em formas várias. Mulheres solitárias ou apenas unidas pelo sexo com um parceiro. É interessante ressaltar que o homem e a mulher desnudos passam a ideia de um sexo quase que obrigatório, nunca fruto do prazer. Estão retratados com semblante de indiferença ou talvez pressão. As cores predominantes do quarto reforçam o que dissemos, bem como o semblante de ambos: nenhum júbilo perante o sexo.
A singularidade de Sônia Jácome se inscreve em algo simples e complexo ao mesmo tempo. No conjunto de séries ou obras isoladas, é possível encontrar de um tudo no que tange aos diversos estilos históricos da História da Arte. Assim como se fosse uma artista ao mesmo tempo ousada e “intrometida” (no melhor sentido). Sim, pois busca dar uma solução de continuidade sem ficar imitando estéticas várias presentes no decorrer das muitas formas que compõem o grande rio de estilos integrantes da arte e sua larga foz. Assim, podemos achar parecidos ou semelhantes, mas nunca copiados. O certo é que proclama uma resposta, como se fosse um poeta que cercou-se de uma tal originalidade, acabando por impor seu estilo e lançar aos pósteros quase que uma impossibilidade de ser ultrapassados. No caso da nossa artista, não parece ser essa pretensão, mas muito mais exercitar sua capacidade de ousar cumprir uma espécie de voto: “coloca a dor nas aras” (Fernando Pessoa), sem espalhafato, mas com extrema simplicidade, deita a obra no altar das musas. E sai silenciosamente.
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