Por Márcio de Lima Dantas
Quem há de completar a obra
que reguei com meu pranto e suor.
Henriqueta Lisboa
Arthur Rosa nasceu em 25.06.1984, em Natal. Atualmente, está radicado em Galway, uma cidade marítima e portuária da Irlanda. Ao se contemplar de longe, a paisagem que o cerca descortina-se em um casario multicolorido à beira de águas plácidas, cujo reflexo reverbera com nitidez o que se ergue de casas no limite das águas imotas. As edificações seguem um padrão verticalizado, pontilhado de inúmeras janelas, cujo efeito reforça essa imagem de apontar para o firmamento. Sendo um artista autodidata, obviamente se rege muito mais pela intuição do que pela razão. Os oráculos interiores não apenas são sempre consultados mas também expõem uma espécie de jugo causado por toda uma espécie de emoções habitantes das locas de pedras do seu interior. Tais emoções são capazes de, espontaneamente, pulsar vontades de potências, buscando emergir por meio de fumaças metafóricas, plasmando objetos, minérios, contornos, riscos agressivos e manuseio de cores como se estivesse com raiva. Enfim, há toda uma sorte daquilo que não é necessariamente ipsis litteris como se encontra no mundo real. O fato de se autorrepresentar como intuitivo inscreve Rosa no que livremente ousamos nominar Escola Basquiat, na medida em que muito se assemelha ao grande pintor, que hoje influencia toda uma gama de outros artistas, por tudo quanto é canto. Acontece que Arthur Rosa não somente copia o maior de todos mas também, por meio das suas emoções e de sentimentos vários, faz saber da sua gramática e usa os paradigmas de uma maneira inteiramente singular: o desenho do humano, as palavras, os símbolos e grafites.
Longe de querer ultrapassar sua referência maior – fazendo a gente lembrar de Harold Bloom e sua noção de “poeta forte” –, aqueles que fincaram estacas de madeira de lei na História da Poesia são influências impossíveis de ser ultrapassadas, tais como Fernando Pessoa, Marianne Moore, Arthur Rimbaud. O que Arthur Rosa tão somente imprimiu no contexto da pintura foi sua marca, seu número e sua singularidade, de forma despretensiosa e, à sombra e à fama de Jean-Michel Basquiat, ergueu sua continuidade nessa Escola. Ele demonstrou ser um aluno diligente e capaz de fazer uma enorme diferença face a outros que também ousaram dar sua própria solução. Era de uma persistência ao insistir que o construto Arte Expressionista detém tantas possibilidades a partir da deformação do real, de modo a vincular seu trabalho ao Expressionismo como vanguarda no início do século XX. Não que imite, mas retém o que vamos chamar de “teoria”, demonstrando que não está relacionado ao tempo e ao lugar.
Gostaria de deixar este apontamento para, talvez, esclarecer mais nosso projeto escritural. Como tantos escritores que fazem crítica de arte, ou mesmo erguem escritos de qualquer qualidade, pode ser que, muitas vezes, por seu estilo, comecem pelos últimos parágrafos, pelo que chamam de conclusão, pelos pequenos excertos que apenas dirão “enfim”, com uma
vírgula. Acontece que, alguns gêneros literários como os ensaios, como este ensaio, ainda insistem em encompridar conversa, pois estavam faltando alguns parágrafos, certas ideias não terminadas, ou o que estava no aguardo, esperando a porta abrir depois de algumas batidas, também insistindo na companhia, pois quem está em casa encontra-se nos fundos e não dá para escutar direito, devido ao ofício do proprietário, que elabora esculturas seja em madeira, seja em aço escovado. Com efeito, haverá sempre uma explicação para a inércia dos ouvidos e sua respectiva ausência de um ouvir por enquanto, assomando pela casa, a escutar o que dizem aos que chegam. Quase sempre é retirada a pele acumulada pelos dias e por seus trabalhos, possibilitando uma conversa que não traga, nem de leve, algo pesado ou que venha a pesar durante o séjour dos que permanecerão nacos de dias, lascas de horas, a fazer durar, a fazer um cansaço de quem hospeda, já nos dias intermináveis que têm o jugo dos ombros e das pernas.
Não há como adentrar os meandros da obra de Arthur Rosa sem antes fazer uma devida persignação na ara cujo orago é Jean-Michel Basquiat (22.12.1960–12.08.1988) – considerado por críticos, colecionadores e curadores como o maior nome da arte moderna. Seria fugir do nosso foco se ficássemos a arrolar detalhes de um jovem rapaz, morto aos 27 anos devido a uma opioid overdose. É desnecessária uma busca mais aprofundada para explicar a maneira desse conjunto de vetores psicológicos que o conduziu à autodestruição. Estava escrito que as Parcas teceriam rapidamente para cortar o fio da Fortuna, encerrando uma vida na qual o quebra-cabeça detinha todas as peças, encaixando o desenho de uma vida plena de riscos e sem medo do desregramento (hybris). Eram tantos elementos, desde muito cedo, com contornos de uma película de Tânatos, que não precisava ser adivinho para franzir os olhos e dizer o que iria acontecer não muito tarde. O quanto lhe coube de naco de uma existência breve pode ser comparado a um vergado arco no qual estavam inclusos diversos paradigmas. Era coisa demais misturada. Estava incluso ser de etnia negra, orientação sexual multicromática, artista marginal, dependente químico, ou seja, uma errância que provou de tudo o que é espécie no que diz respeito ao corpo, ao amor eros, ao amor philia, na sua amizade com Andy Warohl. O que estou dizendo bate em cheio no que consta de muita emoção e de sentimentos vários nas suas telas. Também não poderia deixar de aparecer o que se formara como artista plástico. Filiou-se a um gênero híbrido, não podia ser outro. Eis o Expressionismo, o Simbolismo e o Surrealismo. Desse modo, não poderia deixar de ser o mito fundante de uma escola cujo substrato detinha semelhanças morfológicas, cerzida de uma ancestralidade revestida de alguns paradigmas, a partir de uma originalidade assinalada desde sempre sobre aquele ungido a se dar em mente e corpo em um ser e suas possibilidades de provar tudo o que aparecesse à sua frente, sem medir as contas e os riscos.
Com efeito, não se definiria sua inquietude tão somente como uma aptidão para a arte mas também para se lançar nos riscos que estão no livre arbítrio. Quanto custa? Pouco importa. Cronos escorre na ampulheta dos dedos, sendo suficiente esfregar um dedo no outro. Sua trajetória estética explica o lado da encruzilhada que entrou (escolheu?): começou como grafiteiro no centro de Manhattan e depois como pintor neoexpressionista. Esteve fora das ruas, depois, dentro das casas. O expressionismo busca alcançar, de modo bem distinto do realismo, uma deformação da realidade, do nosso entorno, do que se apresenta aos nossos olhos. Assim, é necessário o que suplanta no íntimo do artista, ou seja, a subjetividade como permanente plano de fundo e o que vem a ser tema da tela, embora usar o termo “tema” esteja muito distante do que Basquiat plasmou em suas telas plenas de hibridismo. Na sua paleta, constava toda uma sorte de cores, permitindo manusear um lastro pictórico que tornou seus trabalhos cheios de uma riqueza cromática, riscando ou justapondo símbolos, palavras, pessoas. Não havia limites de códigos para ocupar o todo da tela. O mais interessante, talvez, seja o signo linguístico mesclado ao signo imagético; nada respeitando. Do jeito que era dentro, também o fora reverberava sua beleza.
No que concerne a Arthur Rosa e sua profusa obra, vamos isolar algumas telas e tecer alguns comentários que talvez possam dizer da sua sintaxe e do seu vocabulário imagético como artista plástico. Entre tantas telas articuladas por meio de pinceladas cruas, em uma expressividade que parece estar pouco ligando para o que se convencionou por “harmonia”, ergueu uma série cujo substrato é a cor vermelha e suas nuances. Alguns quadros são dípticos, trípticos ou divididos em quatro partes. Todos são autônomos, ou seja, podem mudar a ordem na qual estão justapostos. A parcimônia no uso do vermelho não apenas apresentou uma sobriedade às telas – ao refratar o contraste com outras cores, como sucedeu com grande número de outros trabalhos – como também fez valer sugestões de corpos humanos riscados. A garatuja permanece. Há uma sugestão de uma busca de o objeto retratado ser visto como eivado de emoção, sentimento, de como é enxergado através do íntimo. Quero dizer que interpreta à revelia do que se encontra no entorno, de seus contornos, de seus semblantes ou do que foi convencionado como belo ou encontra-se na moda. Assim, faz imperar a subjetividade de um qualquer homem, que não passa de uma mescla de formas de sentir, representar, ser em um tempo, diferente em outro. Enfim, o excesso dessas bipolaridades deságua em um rio (um humano), em um estuário largo e, talvez, difícil de conviver. O uso da cor primária vermelha não poderia deixar de ser a que mais representa uma sensibilidade contempladora do mundo a partir de suas idiossincrasias, de sua experiência de vida, de como se fez homem, de como isola e vê sem olhar, retendo o que lhe interessa, da maneira como pulsares interiores fazem sair pelos olhos. Vermelho não poderia deixar de ser o melhor para expressar um espírito como o de Arthur Rosa.Dias rudes, noites insones testemunharam minha fé. Henriqueta Lisboa.
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