Por: Márcio de Lima Dantas
Quem as fauces de antros, abismos e desfiladeiros ousara desafiar com o próprio peso?
Henriqueta Lisboa
Thomé Filgueira (05.12.1938 –14. 02.2008), pintor e professor de inglês, residiu nos EUA. Oriundo do Vale do Açu e de Ceará-Mirim, suas telas parecem uma variação sobre os mesmos temas: os engenhos de açúcar, o gado pastando no campo, os plácidos pequenos casarios, as marinhas com o sol refletindo nos espelhos das águas. Seu quilate estético é pesado a partir do momento no qual essas terras acima citadas passam a ter um valor de grande universalidade, lançando contornos capazes de despertar o efeito estético em alguém que contemple de qualquer lugar do planeta. Podendo não apenas avaliar as tintas ou texturas, mas despertar uma empatia no sentido de que aquilo que mira com curiosidade também mergulha no íntimo, buscando desvendar enigmas, oráculos ou iluminando áreas escuras da alma. A arte de representar na obra de Thomé Filgueira, quase sempre, é uma vista panorâmica de um determinado conjunto, integrando partes dos planos temáticos, ou seja, é uma espécie que se compraz em avistar o longe, estando o olhar do pintor em um lugar no qual a paisagem esplende sob um sol. O humano dificilmente aparece, congregando e levando aos inícios do Movimento Impressionista, cuja paisagem prima pelo embaçado, evocando a tela de Claude Monet (Impressão. Nascer do sol, 1872) que é considerada como a primeira tela fundadora da revolução que adentrara as portas lacradas de uma tradição da arte acadêmica. Inscrevendo-se na segunda geração do Modernismo no Rio Grande do Norte, o artista rememora um estilo francês, o Impressionismo, conseguindo desenvolver com maestria uma dicção bastante peculiar, que ninguém consegue identificar como não sendo sua determinada tela. Assim, afastando-se dos seus antecessores de outrora do século XX, numa mirada das paisagens de sua terra, sem contudo afastar-se de uma necessidade de tornar universal o que vivenciara, o que era sua identificação, o que tinha a caligrafia da sua alma. Por fim, eis aqui um dos três maiores pintores do Rio Grande do Norte, sendo este o mais simples em recursos, bem diferentes de Dorian Gray e Newton Navarro. Thomé foi chamar à memória um estilo do século XIX, reelaborando o feitio e trazendo para si tão-somente algumas técnicas para manusear suas poucas obsessões pictóricas. Bem diferente de Manet, com sua louvação à alegria de viver, o prazer de estar junto à natureza, como se fosse um locus amoenus. Quando se trata de Monet, chama a atenção o quedar-se calado diante dos jardins floridos em exuberância de cores, há uma estaticidade que lança o olhar em direção ao silêncio, como se fosse um chamado à meditação.
A estrutura das telas de Thomé segue uma mesma gramática pictórica. O quadro é dividido em planos paralelos sobrepostos, com uma bem clara definição dos elementos que compõem a paisagem em foco. Há uma economia de meios, tanto no nível da quantidade de informações presentes quanto no manuseio de cores e texturas. O que salta aos olhos é um rigor de planos paralelos, cabendo a cada um determinado significante que, por sua vez, irá gerar significados sem propor nenhum enigma a quem contempla. A simplicidade queda-se silente, remetendo aos significados que, como dissemos, são elementares, visto fazerem parte do cotidiano dessas terras. Sendo assim, são quase sempre os mesmos, contudo não se debruçam sobre o tédio e uma parecença com o que pintou outrora. Isso ocorre por meio de pinceladas um tanto “cheias” de tinta levada com naturalidade para o suporte e tal técnica conduz o artista a fazer pouco caso do uso da perspectiva, haja vista que o desenho só aparece quando da necessidade de separar os planos, que iniciam no chão e vão até o firmamento. Com efeito, há o esquecimento do rigor do desenho. Apenas para efeito de comparação e melhor esclarecimento do que quero dizer, muitos artistas naïf também fazem vasto uso dessa técnica de pintar, por exemplo, o gado no pasto, visto à distância, apenas com um pequeno volume de tinta, sem que a rês apareça em sua totalidade. De todo modo, não poderia ser delineada com os olhos, pois o lugar onde se encontra o pintor é deveras distante. Ainda com relação ao paralelismo, constando cada um algo diferente no plano temático, proporciona-se deixar a tela em uma clara limpidez do transparente sol da região, assim também com uma ausência de movimento, como se fosse uma fotografia em cores, captando o instantâneo, paralisada, tais como na tela “Bois dormindo”, que pertenceu a Zila Mamede.
Podemos discorrer um pouco acerca do olhar do artista Thomé Filgueira, caudatário do Impressionismo. A maneira como o artista observa seu entorno intensifica-se por deter mais profundidade no seu espírito, pois a tela busca captar através de uma subjetividade o que está refletindo no seu íntimo, de forma intensa na medida em que busca manusear os pinceis de acordo com os primeiros impressionistas por meio de pinceladas um tanto curtas e revestidas de uma rapidez, revelando um domínio sobre o que quer pintar e a maneira como busca proceder determinada temática na tela. A bem da verdade, o artista levou essa assertiva às últimas consequências, ao se distanciar da paisagem, colocando-se, parece, quase sempre em um lugar alto, que favorecia o que chamamos de distância. Ao se encontrar longe do objeto, faz com que adquira uma liberdade de retratar por meio de contornos imprecisos, apenas sugerindo, a casa, o gado, a chaminé e a árvore. Não é necessário dizer da sua rejeição às convenções acadêmicas, presas à História da pintura ocidental. Não é preciso ir muito longe, nosso grande pintor Moura Rabello (1895-1979), adentrou pelo século XX, mas não largou o desenho e a pintura acadêmica. Malgrado isso, conseguiu se destacar como um dos pintores fundantes da arte da pintura no Rio Grande do Norte, tendo seu valor e seu lugar, não apenas como retratista, mas como um arguto artífice, dominando as técnicas de conseguir por meio do desenho acadêmico retratar como sua tradição fez desde o Renascimento. Por fim, apenas como um modo de compreender como se organizaram as artes no estado, ousamos destacar Moura Rabello como antípoda de Thomé Filgueira, não no sentido de superior e ou inferior, haja vista que ambos são tardios em seus trabalhos, quero dizer da distância no tempo do Impressionismo e o Academicismo. Porém, os dois lograram êxito em beber de uma sempre água límpida do passado, coisa não muito difícil de encontrar na trajetória da arte. O que importa, no final das contas, é ser e não ser, distanciando-se do estilo histórico a que deseja pertencer. Evitando imitar um pintor ou selecionar algum e engendrar algo que não passa de pura caricatura. Posso sugerir uma espécie de fenda que se abre em duas direções. Moura Rabello remete seu trabalho a uma corrente pictórica que serpenteava ao longo da História ocidental, com uma técnica cujas pinceladas vinham antes da mistura das cores na paleta, buscando um jeito que ao delinear na tela conseguisse representar de maneira realista. Por sua vez, Thomé Filgueira filiou-se a uma corrente de vanguarda que pulsou com grande energia estética no final do século IX, o Impressionismo (1860-1880), cuja proposta de formas e temas valorizava a emoção do artista, bem como a sensação que os objetos diante de si causavam, rejeitando as convenções consolidadas pelas formas de pintar acadêmicas. Só posso dizer dessa encruzilhada como algo extremamente profícuo, na medida em que os contemporâneos podem adentrar por uma das duas rodagens, fazendo expressar sua capacidade diante dos mananciais, tanto de Thomé Filgueira, como de Moura Rabello. Como ambos produziram muita coisa de qualidade, há lugar para todos se identificarem e darem uma solução de continuidade, podendo superar ou apenas receber a benéfica influência.
Esplendendo uma sempre atualidade do estilo cujo surgimento abre as inúmeras portas da arte moderna e vem a dizer que não é algo passageiro, com determinados tempo e lugar, assemelha-se, em certo sentido, com o Barroco, cujos pesquisadores o conduziram a compreender não como inerente ao século XVII, mas como invariante estilística que faz surgir seus vetores sempre que o espírito da época, demanda e proporciona, vivificando e repetindo paradigmas que se encontram pressentes em outros estilos de época. Com efeito, o pintor Thomé Filgueira não esqueceu a lição primeva desse agrupamento de artistas causadores de uma grande cisura na História da Arte, ou seja, retratar de maneira que o objeto contemplado não teime em querer buscar os procedimentos empregados nas escolas de fatura acadêmica, tais como o realismo. O que vai interessar é o que está se passando no íntimo do artista, e esse reflexo interior é o que, sem exatitude e precisão será traslado para a tela. Podemos dizer de uma simplicidade no manuseio das pinceladas de maneira não premeditada, engendrando ausência de contornos ou também pode ser que os contornos sejam imprecisos, compondo por meio de texturas paisagem ou temas do dia a dia, cujo principal elemento contido na tela é luz que se derrama, sobretudo sobre nas distantes terras de engenhos com pequenas casas. Valorizando a luz, congrega outro elemento como a textura, conseguida por meio de pinceladas rápidas, vindo a demonstrar que o pintor tem pleno domínio na arte de pintar. Não interessando o conteúdo, mas a forma. Consabido é que a arte sempre foi uma forma no qual o artista por meio de artifícios técnicos (pinceladas, sombreamento, ressaltar os objetos ao ar livre), - aqui no caso de Thomé-, lograva êxito através de contornos imprecisos. Não interessa a vida que ocorre dentro das pequenas casas modestas que se avista ao passar de longe em alguma rodagem. Sugere uma compreensão do significado de cada cor e suas tonalidades, isso não é difícil de encontrar, suficiente é o manuseio, só para restar em um exemplo: azul (água), ocre (terra firme), verde (campos verdejantes de mata ou plantações, azul (céu).
O impressionismo foi a primeira grande ruptura com o realismo acadêmico que durante séculos fora a corrente pictórica tida como natural, permitindo as retratações das paisagens naturais, representações de santos e os retratos das classes dominantes. Essa forma do uso dos pincéis, faz fronteira com a noção de ideologia, permitindo à pintura se inscrever como se fosse natural, basta dar uma olhada na arte do Renascimento até chegar em meados da segunda metade do século XIX. Outra forma de representar que impactou as datas (terrenos) concernentes à pintura foi a invenção da fotografia, cuja linguagem faz com que o fotografado apresente uma perfeição da realidade, sem o uso de maiores procedimentos. Tendo como referência o pintor Cartier-Bresson (1908- 2004), podemos discorrer acerca dessa nova maneira que concorreu para o que estava chegando, ou seja, a renovação da arte no século XX, com suas inúmeras vanguardas e modos de representar não realista. A fotografia veio para ficar, pois trazia em seu imo tanto uma retratação social, tais como o bulício das cidades que tomavam seu ethos, impregnadas das novas invenções que o ar do tempo proporcionou. Quero dizer com isso que a invenção da fotografia foi um catalizador de muitos fenômenos que o século XX gestara através do acúmulo de inúmeros procedimentos científicos, alimentação, locomoção etc. O que se pode dizer de um ponto para onde confluíram diversas novas formas de pensar ou representar. Assim, há duas formas de representação que necessariamente não precisam do uso de tantos meios para organizar obras de arte em telas. Esses dois campos de figuração, o cinema e a fotografia, puseram em xeque os meios de representação tais como a pintura, o desenho ou o afresco. Ora, sucedeu que essas novas formas inventadas no século XIX conduziram a uma nova reflexão acerca de si mesma. Conquanto, eram muito mais eficazes na arte de representar comparando com o que fora desde sempre, haja vista sua rapidez e com possibilidades para produzir em série. Era uma espécie de mácula, pois desde muito o objeto de arte foi singular, resguardando uma individualidade constituída de uma aura de preciosidade e atribuindo aos que a detinham uma diferença das demais pessoas de uma sociedade ou classe. Mas ainda podemos rememorar alguns pintores que as telas de Thomé parecem ter buscado ou, talvez, seja coincidência, tais como as paisagens de Alberto da Veiga Guignar ou o paisagista Frans Post. Com relação aos impressionistas que formavam uma espécie de agrupamento, podemos citar: Edouard Manet, Edgar Degas, Auguste Renoir, Alfred Sisley e Camille Pissarro.
Bem claro que Thomé Filgueira permaneceu cúmplice de uma técnica de retratar as paisagens dos plácidos vales das terras por onde andou: Açu e Ceará-Mirim. Apenas manuseando um detalhe ou outro, tendo dois paradigmas: as marinhas e os engenhos ou fazendas. Contornos imprecisos, sem a nitidez da pintura realista, sem o detalhe que faz as cores acompanharem um eventual desenho, sem o cuidadoso contorno da pintura acadêmica querendo ser cópia ipsis literis do objeto que deseja enquadrar ou convocar para ser uma singularidade estética que os olhos não vão se fartar da contemplação. A vasta obra de Thomé é extremamente uniforme, pois manteve-se com a mesma qualidade, sem oscilar entre altos e baixos, como sucede acontecer com muitos artistas visuais. O significante pouco ousa cambiar seus diletos temas, assim como o significado de alguém que mira uma pausa de longe. Esse lugar inventado pelo artista parece trazer em sua eventual interpretação semântica um sujeito que busca a solidão do alto de uma colina ou de uma distante serra. Enfim, o Impressionismo é o anúncio da renovação da arte no século XX. Para nós, Thomé Filgueira, junto com Dorian Gray e Newton Navarro, insculpe seus trabalhos plenos de uma imensa energia estética, não parece à toa que todos três tenham produzido obras de grande qualidade, acrescentando à História da Artes Visuais do Rio Grande do Norte um desafio para os vindouros. Cremos que será bem difícil se igualar ou ultrapassar essas três contribuições.
Os três artistas aplainaram a pradaria onde o plantio da arte deve ser feito, outorgando soluções de continuidade que tragam consigo o selo da originalidade. Mais digno de ser escolhido é o bom nome do que as muitas riquezas; e a graça é melhor do que a riqueza e o ouro (Provérbios, 22:1).