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segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Especial: Mário Rasec: a celebração das coisas simples

Márcio de Lima Dantas     

                                                                              "Por eso, muchacho, no partas

                                                                                     ahora soñando el  regresso 

                                                                                             Que el amor es simple  

                                                                                               Y a las cosas simples  

                                                                                               Las devora el tempo "

                                                                                                                      Cesar Isella 



 

Mário Rasec (Natal, 1971), desde a primeira infância, começou a riscar garatujas;  o pendor para a arte anunciava-se bem cedo. Esse movimento de uma personalidade é  capaz de definir determinados contornos anunciadores das linhas de um espírito no qual a psiquê bandearia-se para os lados de alguma espécie de manifestação artística. O que  chamam coisas do espírito. No caso em questão, logo cedo, familiarizou-se com o lápis e  suas capacidades de preencher o vazio de brancas páginas. 

Dessarte, estava gestando-se um homem no qual alguns cercados da expressão  artística seriam eivados da boa semente de alguém com grande tino no modo de olhar o  mundo, criando um universo paralelo que a arte acrescenta ao nosso entorno, para os que  detêm o tento de mirar o que se movimenta ao seu redor, com redobrada atenção. E tudo  o que se mexe, intenso ou discreto, não passará impune, nem se manterá inerte ou some  pelo vento ou pela movimentação do humano. 

Contudo, o artista Mário Rasec não se limitou à tinta guache ou aquarela. Teve  aulas de manuseio com tinta óleo com o artista visual Luís Anísio. Também se inscreve  como escritor de poesias, ilustrador, aquarelista, roteirista, desenhista de quadrinhos.  Publicou os livros de poemas Apostasia (2003) e O corpo de Cristo e os apócrifos da  serpente (2008). Ganhou um concurso com o conto A caravana das bruxas (2020). 

Como podemos ver, recebeu o sopro de diversas musas, sendo as principais Érato  (poesia lírica) e Calíope (retórica, eloquência, prosa). Dando a conhecer alguém  familiarizado com todos os domínios nos quais fez valer sua bandeira estética,  circundando-a de um exercício que remonta à infância. Assim, fez-se maduro, detentor  de um naipe de cartas altas, dignas de jogar com os melhores artistas visuais do Rio  Grande do Norte. Sua naturalidade ao pintar é tamanha que não necessita de nenhum  trunfo, firmando-se na sua arte, sendo capaz de ser identificado como de validade ímpar.

Vejamos como é o método do nosso trabalho. Bastante simples. Partimos de um  agrupamento de objetos que detém algo em comum, ou seja, é uma combinatória de  determinado número de elementos com o mesmo mínimo múltiplo comum. Dessa forma,  ordenamos vários agrupamentos que nos conduzem a perceber não apenas como se  apresentam retratados, mas também, como comparações, ou seja, metáforas, que não  passam de uma coisa no lugar da outra, deixando o leitor prenhe de interrogações. 

A arte é a região na qual o indivíduo espelha-se ou refrata; contudo, não passa  impune à imagem ou objeto que se desenha aos olhos, assim como se fosse um posto no  qual repousa um enigma. Acaba bulindo por dentro, por saber que isso pode ser aquilo ou  ainda outra coisa. O certo é de uma coisa que intriga, que lhe diz respeito, pode nem saber  o que mesmo. 

Como dissemos, uma das formas de expressão do artista é a aquarela. Participou de  uma grande exposição: Cidade invisível (2018). Talvez não seja demais me precipitar ao  dizer que, dentre as várias técnicas de que faz uso no campo da arte visual, a aquarela  desponta como a que mais obtém êxitos melhores. Falo, sobretudo no sentido de  representar as coisas simples, as pessoas modestas, cenas do cotidiano que ninguém  repara ou barcos ancorados, sem apelos ou discursos que chamem atenção. Quedados,  estão à espera de quem os lance por águas mais profundas, na atividade de uma pescaria  ou de um passeio com crianças a bordo. 

O artista é um insigne observador de cenas do cotidiano, dos banais grupos de  pessoas conversando nos pequenos trailers, servindo lanches a transeuntes com preços  mais acessíveis. Suprime as cenas de lugares que de longe seriam passíveis de um olhar  mais acurado, haja vista que o contemplado, a um olhar qualquer, não passa de detalhes  do movimento da cidade. O olhar do artista e consequente vir a ser arte, sobre esse bulício, resgata indivíduos do seu anonimato.  

Assim mesmo, a partir do momento em que três mulheres estão encontradas no  meio da rua, por acaso? Marcaram? – Conversando –, salta aos olhos uma cor, diante dos  contornos: o cor-de-rosa da sombrinha esmaece o azul da mulher do lado direito, restam  listras que fazem o contorno dos corpos e do que se encontra enquadrado.  

Se se pode dizer uma coisa, é desse momento no qual a fala parece remeter ao gosto  de certos momentos da vida no qual viver é pura graça, e jogo acertado, e empatia de  indivíduos, e o saber da impermanência, e compreender a gramática ácida do tempo. 

Então, há de se deixar conduzir pelas pequenas coisas, pelo simples, pelo que não está à  venda, pelo espirituoso de uma alma, pelo aprendizado consentido; enfim, tudo  transmuta-se em sabedoria, em não julgar o próximo, em aceitar as vicissitudes, em ser  resiliente. 

A série de aquarelas, onde o artista conseguiu demonstrar o domínio de suas  capacidades enquanto artista visual, selecionando o que seria seu corpus extraído da  realidade, pois destoou da grande maioria de seus pares, cujas imagens quase sempre  dizem respeito a um regionalismo um tanto fatigado ou mesmo a temáticas retiradas da  pintura acadêmica. O insólito do seu trabalho é o fato de deter seu olhar sobre imagens  não encontradas correntemente no circuito dos nossos melhores artistas.  

Parece haver uma espécie de desprezo quando se trata de pintar motivos retirados do cotidiano das classes populares ou mesmo dar conta de imagens comumente não vistas  ou valorizadas na polis. 

Puro preconceito de classe, na medida em que, ao passar para uma representação  visual, transportadas para uma tela essas imagens, não só ocorre o fenômeno da Mímeses  (Aristóteles), ou seja, o artista não pinta ipsis literis, mas transfigura através do seu olhar,  ou seja, o que lhe chega como algo da realidade, em uma aquisição captada pelos sentidos,  torna-se arte pictórica. Existe uma ideia que a arte sugere, e por meio dessa ideia há uma  metáfora. Fazendo saber que toda arte é multisignificativa. A que veio? Desde quando  isso importa, e tais funcionalidades detém? Encontram-se como acréscimos à realidade, emanados de determinados indivíduos que são inquietos e procuram esclarecer aquilo que  se veste com as alfaias de uma esfinge, ensaiando deslindar meandros e estuários do  insistente rio da vida. 

Mesmo o corpus tendo sido de pequenas proporções, – o qual tivemos acesso para  ser contemplado e organizado em arranjos, – conseguimos a empreitada de efetuar  classificações a partir dos temas abordados pelo artista. Um dos mais importantes arranjos  concerne aos retratos de pessoas pintadas com aquarela, exercidas por meio de pinceladas 

com fino-trato, repercutindo os traços que pronunciam sua peculiar técnica, latejando em  qualquer mídia sua dicção, e que se configura como uma maneira de tornar belo aquilo que elege para sair de um anonimato, coisas que não são consideradas como dignas de  atenção. 

A menina do cabelo grande e assanhado contempla a câmera de quem a retrata,  como se pedisse desculpas por sua presença, por existir, por ocupar um espaço. Talvez  tenha aprendido a ficar no que convencionaram como seu lugar. Seguramente não integra  as classes mais altas do cume da pirâmide social. Seu cabelo, vestimenta e olhar de  subalterna dizem de uma condição social tida pela maioria como a Ideologia proclama  como “natural”. 

Mas como nos chega essa personagem visivelmente das classes populares? Ora, só  por meio das cores com as quais foi retratada, a forma já é o conteúdo, pode-se remeter à  sua equivalência social e de seus pares. O fundo é totalmente cinza, com suas nuances,  cor quase totalmente predominante, tanto no que sugere ser as paredes, quanto no  semblante e vestimentas, criando uma atmosfera de sombria clausura. 

E, dessa maneira, possibilidades de mudanças são poucas, por meio de rachaduras  adentrando para um novo lugar capaz de esplender uma luz que altere esses tons fechados,  alargando os horizontes da existência desse tão profundo anonimato dessa menina. E das  fissuras assome a luz com a boa-nova de um tempo anunciador de outros vizinhos, de  outra escola, de colegas do mesmo naipe. Enfim, que não haja exclusão.  

A luz adentra pelo lado esquerdo para o direito; mesmo assim, chega débil, um tanto  esmaecida, apenas determinando o contorno do corpo da garota, fazendo ver que o cabelo  é castanho, e referendando a atmosfera do todo: pouco ânimo e sorriso acanhado, como  se fosse uma espécie de vergonha de viver. 

Dos retratos, em número de quatro, tem um que destoa dos três, pois foi um  instantâneo, como se a senhora sentada não tivesse consciência de que estava sendo alvo  da mira de um fotógrafo. Com infinita dedicação e paciência, confecciona suas pulseiras  com contas de preço acessível. É tão-somente o que pode adquirir para ir matando o  tempo.  

Suas vestimentas não escondem a classe social a que pertence. É uma mulher do  povo, com blusa cinza e saia rosa, fundo todo preto, com enorme concentração e  distanciamento do seu entorno. Até parece que o tempo foi abolido, quando envolta em  tamanha tarefa de algo não funcional. Ocupa-se em fazer pequenas pulseiras, sem deixar  claro o motivo de tal empreitada. Sua mente parece aproximar-se do longe, evadindo-se  em espécies de pensamentos eivados de distância.

Com efeito, ao pegar as miçangas da caixa e enfiar em uma linha, conformando  uma pulseira, evade-se das datas e dos roucos relógios mensuradores do tempo,  implacáveis, que a nada exclui, que ninguém fica de fora, em uma pressa que a tudo  devora, seus filhos não recebem guarida ou apego. A bem da verdade, o que faz é dar as  costas ao humano, cabendo a cada um organizar um comportamento, uma resposta, uma  forma de aliar-se consigo mesmo, para haver um convívio menos espinhoso, apesar de  saber qual a gramática de dias que se alternam, semanas impulsionadas para um mês; por  fim, eis uma progressão aritmética: os anos deslizam sobre todos, atualizando de tempos  em tempos nossa idade, nosso rosto, nosso semblante, nossas limitações. 

A pergunta, quanto vale a vida, pouco importa. Está absorta, concentrada, livre de  si. Tão-somente a luz parece emanar do seu corpo e não de qualquer artefato no perímetro  onde repousa uma “existência ou uma presença” sobre a cadeira. 

É possível separar, para efeito de estudo, três retratos de pessoas: homem sem  camisa, mulher de blusa verde e mulher sentada na cadeira com blusa estampada, saia cor  de rosa, um lenço na cabeça e bengala. 

Esses tipos de pessoas são fáceis de encontrar sertão adentro. O olhar firme e  ausente de sorriso denota uma vida dedicada ao trabalho. Parece que não conheceram outra coisa. O trabalho concerne a esses indivíduos, desde crianças foram habituados à  labuta, é como se fosse uma disciplina que incute uma ética, uma postura diante de si e  dos semelhantes, haja vista a enorme quantidade de máximas, provérbios, ditos  sapienciais disseminados pelos agrupamentos de sertanejos que ainda resistem às formas  antigas de viver e encarar a vida. Enfim, essa maneira de ser, – que não queremos aqui  generalizar, – tendo em vista a complexidade do humano, quase sempre cria um ethos. 

Há de se pensar qual a relação desses rostos assemelhados a totens com os  elementos que, fundidos, deram origem a expressar um olhar firme, sem malícia, uma  ausência de sorriso e qualquer coisa que lembra o fato de se encontrar ancho no mundo. Se eu quisesse comparar, não seria difícil, basta ver as fotos (1936) de cangaceiros e  cangaceiras feitas por Benjamin Abrahão. 

É mister observar o queixo erguido, como se nada temesse ou fosse ameaça. Havia  o conluio com a caatinga, espécie de simbiose proclamando não o fato de homens e  mulheres estranhos aos espinhos de cactos, buscando coitos, afrontando seus perseguidores por entre carrascos, serrotes exalando calor. Olhar firme, e compleição  física, que nos conduz aos meandros de um rio com seu estuário resultado de muitos  outros rios que se juntaram, desaguando em uma só foz no mar. 

O que disse também serve para a mulher de blusa verde e para a de bengala. Ambas  com marcas no rosto que deixam entrever que a presença neste mundo não foi lá essas  coisas todas. 

Tanto quanto uns e outras pessoas retratadas através das exigências da aquarela, o  artista detém no seu acervo um homem moreno claro. O tempo passou deixando marcas  indeléveis nessa criatura. Apenas podemos afirmar que veio ao mundo, sem mãe, sem guia, sem conselho (Cecília Meireles). Como batata-doce que se planta nas vazantes, para  servir de alimento nas noites em que os grilos tiritam seus cantos. 

Mesmo assim, os vincados lábios e os olhos entram em sintonia, para explicitar a  compleição de uma experiência, configurando uma resignada aceitação da vida e suas  vicissitudes. Até parece que o que conheceu da vida foi o árduo trabalho de dias  assemelhados, como se fosse uma cantilena repetitiva. Trabalho que vincou os rostos de  um envelhecimento precoce, pleno de rugas, evocadoras, provavelmente, dos sóis que  teve de suportar, ressecando a pele. Mas quem haverá de substituir e ocupar o lugar desses  indivíduos? 

Afora o que analisamos, também há a coletora de material descartável, um homem  cochilando, com sua carrocinha de frutas, cantinho do pastel (como se fosse no meio do  canteiro), boi no pasto, trailer na rua (provavelmente a oferecer lanches por preços mais  acessíveis). Há uma vasta gama de retratar as coisas simples, como se detivesse um apreço  pelo que não é valor em nossa sociedade. Seria bom se perguntar quem ou que são esses  nas suas faces de insolência e o de se sentir importante e superior. Alguém permanecerá  imune à velhice, com suas enfermidades e limitações? 

E também eis os silentes barcos, sem a presença humana, entregues a um abandono  que somente a arte pode redimir dessa solitude e imprimir no papel, por meio das seguras  pinceladas, com as quais o artista consegue captar o efeito trêmulo da água, o reflexo do  que se encontra no entorno do barco. Um exílio preciso encontra uma postura de um  pintor capaz de retratar esses barcos ancorados na água ou ao largo de areias da praia,  fazendo saber de uma metáfora da solidão, cujo lugar do humano não se sabe qual. Há de se indagar: desde quando na arte, na tela ou outro suporte, a presença do humano é  imprescindível?

Pere um pouco. Longe de mim deixar passar alguma técnica digna de nota. Falo do  uso da tinta óleo. Existem três telas acercando-se do mesmo lugar semântico. Apresentam  algum recorte de autoestradas anônimas, cujo intuito parece ser pronunciar a metáfora de  caminhos que conduzem para algum lugar, mas também trazem, em um vai e vem na  mesma rodagem. Maria Rita interpretou com sentimento e rara afinação uma música que  trata desse ponto de uma estrada com mão dupla: O trem que chega é o mesmo trem da  partida. / A hora do encontro é também despedida (“Encontros e despedidas”. Milton  Nascimento e Fernando Brant). 

Dessa forma, as três vias de tráfego convergem para uma só metáfora: a  compreensão de determinados lugares com movimento de indivíduos ou no abandono  temporário parar ou encerrar alguns aspectos que nos concerne. Podemos extrair dela uma  didascália, um naco de filosofia, uma luz iluminadora de lacunas do nosso ser, estabelecer  relações culturais, contribuir para alumiar algo ainda sem luz no íntimo do nosso ser.  

Enfim, através de uma imagem emerge do nosso íntimo alguma espécie de  ensinamento ou contemplação capaz de nos remeter a lugares nos quais o bom senso  repousa plácido, e nem o certo nem o errado germinarão a semente da discórdia, elevando  nossa alma aos horários nos quais vigora o chamamento de pêndulos de um ouro puro,  escandindo o tempo, de um lado para outro. Ensinando-nos a difícil tarefa de aceitar as  contingências da vida como elas são. E se há de evocar, se necessitar, peça apenas um: o  dom da fortaleza de espírito. 

O que podemos chamar de verdades intuitivas ou o que alguns ousam dizer que  dispõe da capacidade de adivinhar. Conquanto, desde longe, se sabe que alguns exercem  esses palpites de preencher lacunas que a vida distribui segmentos plenos de hiatos. Sendo  assim, uns e outros conseguem lançar seus dados internos e preencher determinados  desafios da vida. Concerne ao artista esse papel. 

Com efeito, através de um signo pictórico, emerge das pelágicas regiões nossas  alguma espécie de ensinamento ou contemplação capaz de nos conduzir para lugares de  bom senso que a gente muito ansiava. Tanta estima por uma imagem gera tento que  exsuda identificação, tino que prova o seu valor intuitivo.

O que se pode afirmar sem medo de cometer um erro, sem demandar vênia, é que  Mário Rasec semeou nos terrenos da arte, no que ela tem de melhor qualidade, uma  semente capaz de produzir uma seara fértil e generosa. Lamentavelmente, os operários  para segar as espigas são poucos, resta o aguardo paciente dos ceifadores do presente e  do futuro, para não copiar, mas edificar uma continuidade que registre os que estiveram  outrora, referendando nomes e cores, para que a História da Arte no Rio Grande do Norte  destaque-se dessa esquina geográfica. 

Detentor de uma arte pontuada por múltiplos olhares, sobretudo aquele que escolhe  contemplar as coisas simples, retratando o anônimo e o que nem sempre se faz digno de  ser contemplado ou de celebração, o artista encontra uma messe pronta para que ele seja  um obreiro, visto não haver tantos operários que valorizem a sega cujo fruto é o das coisas  ignoradas, do que não merece contemplação, sobretudo por termos uma sociedade do  descartável, da pressa, de negação da memória e de um discurso que iguala tudo e todos  em julgamentos e apreciações, fazendo acreditar que somos análogos. 

Com efeito, esse apreço pelo simples, pelas coisas quedadas silentes, pelo silêncio  nos retratos de pessoas, pela ausência de luz na retratação das autoestradas, conflui para  o lugar de um sentido figurado, se quisermos compreender sua arte, ou seja, decalcar um  eventual sentido para essa metáfora pictórica. Nessa linguagem elaborada por meio de  cores, formas e geometrias, possibilita-nos extrair uma ideia, e esta, por sua vez, celebra  uma comparação. Consabido é da metáfora como um lugar da multiplicidade de sentidos.  

Quero fazer saber que toda escolha na arte nunca é inocente. Há de buscar o que se  vela pintado em um quadro. O ato de contemplar uma obra de arte nos deixa mais ricos  interiormente, pois fomos postos diante de algo que se inaugura, no sentido de que uma  linguagem pictórica é acrescentada à realidade. Ademais, não podemos esquecer desse  olhar multiforme de Mário Rasec, como se fosse uma espécie de dessossego que conduz  o artista a contemplar a realidade, tanto nas coisas observadas por todos quanto por  resgatar eventos, paisagens e pessoas na labuta e que são desprovidas de nome. 

Por fim, gostaria de dizer alguma coisa sobre a formação, o gosto e o pendor às  artes visuais desse artista. Para os gregos antigos, o pendor para determinado ofício ou  fazer algo no campo da arte, era nominado dynamis (disposição ou potência). Mário Rasec  parecia deter essa predisposição desde a mais tenra infância, manifestando-se primeiro  em garatujas, depois, ao se fazer homem, no gosto não apenas pelo que fora incipiente,  mas naquilo que habitava seu ser, latejando nos músculos e em áreas da mente,  configurando uma alma na qual a experiência com a realidade convergia para reforçar a constelação de signos relacionadas a encarar o mundo, e se comprazer com seus  elementos de uma outra maneira, bem diferente de como lhe ensinaram a ser, sentir,  representar a realidade com suas convenções que parecem ser naturais, contudo, não  passam de um construto social, tido desde sempre como como uma espécie de estribilho,  lançando seu refrão cansativo ao infinito. 


Tenho para mim que, por deter uma particularidade bem distinta de seus pares, o  artista ungiu sua obra de um misto de domínio técnico com a opção de transplantar para  as telas as coisas cuja marca é o descaso, e o esquecimento, e o anonimato, e o silêncio,  e a indiferença causadas por uma sociedade que elege determinados indivíduos ou signos  como os que devem receber carimbos de valor e considerados os mais “certos”. Onde está  escrito isso? Quem disse isso? Só pode ter sido um lugar de fala representante das classes  dominantes. 

Para encerrar, creio ter ensaiado proclamar a beleza e o domínio de técnicas do  pintor-artífice Mário Rasec, considerando-o um tanto diferente e que destoa de grande  parte do que é produzido hoje nas artes visuais do Rio Grande do Norte. É como se fosse  uma espécie de insubmissão face a esse grande e eminente sistema das artes visuais no  nosso estado, não que tenha desdenhado de seu ninguém, mas é preciso remarcar que ninguém foi copiado. Pois eu digo que podem fazer melhor do que esse artista, mas  ninguém fará igual. 

Ademais, marcou o seu lugar por meio de técnicas desde sempre conhecidas, apenas  selecionou os significantes de uma maneira bastante própria, celebrando o simples, o  prosaico, o que tem movimento nas ruas e avenidas da cidade e aquilo que os transeuntes  passam ao largo com indiferença. Eis a diferença desse artista: o belo está em toda parte,  dissemina-se através de alguém que para um pouco para contemplar as coisas simples, buscando extrair e ressaltar determinadas cores, de antemão sabendo que isso não é  prerrogativa de determinados lugares. 

Não obstante, essas outras formas do belo, postas ao nosso redor, também são  portadoras de metáforas visuais, tanto quanto aquilo que foi desde sempre convencionado  como merecedor de ser organizado em objetos estéticos. Falo dos que estão nas salas familiares ou nos museus. Contudo, há de compreender que existe espaço para fruir ambas  as formas. Ainda assim, se faz necessário redefinir a especificidade dessa arte  direcionadora do olhar para coisas do dia a dia, sendo condescendente com as apenas atentas ao olhar, mas não vistas, retirando a gramática de viver no automático,  desfrutando o que determinadas imagens do bulício das ruas e avenidas podem oferecer  e serem conduzidas às artes visuais. 

No final de tudo, eis que podemos asseverar a universalidade da arte de Mário  Rasec, pelas razões as quais nosso estudo pontuou e fez considerar o seu apego ao  cotidiano, compreendendo que os indivíduos de qualquer sociedade possam desfrutar a  vida através de detalhes explícitos ou implícitos, através de elementos prosaicos, aquilo  que a ninguém interessa. Essas coisas: barcos ancorados nas águas, sem a presença do  humano, beco no centro da cidade, trailers com pequenos lanches para pessoas de vida  modesta, paradas de transportes coletivos, mulheres conversando no meio da rua, boi no  pasto, coletora de descartáveis, senhor cochilando ao lado do seu carrinho de fruta etc. 

Afinal, quem irá se arriscar sair da zona de conforto, abandonar uma rotina doadora  de segurança, não gostando nem um pouco de novidades (quase sempre é algo ruim).  Prefere, então, prosseguir. O problema é que isso não aplaca as demandas íntimas,  fazendo com que o indivíduo exista plenamente, seja uma presença no mundo, está longe  de um viver com sabor e luz emanados de uma interação plena com o que o cerca. Assim,  diz a poeta Henriqueta Lisboa: De nada sei agora / ancorado a um porto / a que os mapas  não / se referem.

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