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sexta-feira, 20 de junho de 2025

Especial: Maria Eugênia.

 Das bodas entre a memória e o exílio.

Por Márcio Lima Dantas.

A meu ver, o que caracteriza a literatura autobiográfica da escritora, poeta e  ensaísta Maria Eugênia Maceira Montenegro é o fato de ter sido edificada sobre um  lastro de humilde sinceridade, de quem não está à procura de alinhavar experiências de  vida visando plasmar um mito, inscrevendo seu número na cena literária do estado do  Rio Grande do Norte. O livro Saudade teu nome é menina: memórias de uma menina  feia, sua obra-prima, rege-se sob o postulado de uma necessidade imanente. Quem  conhece-a de perto sabe a envergadura dessa potência que a fez se embrenhar pelo  mundo da literatura, embora seja uma pessoa interessada nos inumeráveis flancos da  realidade. Sua voz sincopada, com uma suave nuance daqueles habituados ao mando,  expressa uma sanguínia ancestralidade de quem se sente na obrigação interior de riscar  seus rastros na História do lugar onde viveu, mesmo que tenha trocado “os cabelos  verdes das montanhas” de Minas Gerais pelas periódicas secas da Várzea do Açu.  O livro é estruturado em capítulos breves, como se fossem crônicas autônomas,  interligadas por uma cronologia tacitamente implícita. Com efeito, cada parte vale por si  mesma, lembrando um pouco a maneira como Machado de Assis organizou os livros  Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas: esquetes independentes,  encerrados por uma síntese do que foi discorrido, encerrando na cabeça do leitor uma imagem mental rutilante e semanticamente densa.  Detentora de uma enorme faculdade de construir arrojadas e belas metáforas,  junta-se a isso uma notável capacidade de entregar generosamente ao leitor os  elementos constituidores de uma paisagem ou ambiente, para que se produzam imagens  psíquicas nítidas que possibilitam de exilar momentaneamente o leitor da realidade  nem sempre apetecível. Aí é que entra a principal qualidade do livro. É que a linguagem  consegue mesclar revérberos de uma oralidade advinda de uma narradora com uma  retórica requintada, plena de ressonâncias ancestrais (seu pai era português; sua mãe,  mineira de descendência burguesa) somando-se a um fluente manuseio das palavras no  interior das frases, extraindo cadências sinuosas, enlevando o leitor e conduzindo-o ao  mágico mundo do esquecimento e da quimera que a literatura cria. O fato é que a  linguagem suplanta despoticamente qualquer tentativa de aplicabilidade de uma teoria  crítica rastreadora de índices, objetivando enquadrá-los em categorias ou conceitos. A  prosa clara e escorreita seduz o leitor para mergulhar despido dos seus conhecimentos  acadêmicos ou autodidatas. O lúdico se instala, seduzido pelas belas imagens contraídas  pela menina-personagem quando do seu contato com o entourage que a circunda: flores,  familiares, eventos do cotidiano são rastreados para que revelem uma essencialidade  capaz de edificar um indivíduo com uma enorme responsabilidade perante a vida. Contudo não se pode fugir à constatação de que a autora se permitiu uma  excessiva liberdade no manuseio da linguagem, mormente quando se deixa arrebatar  pelas exclamações no final de frases adjetivadas possuídas por enlevos incontroláveis e sentimentalistas. Sorte sua a de ter aposto na apresentação do livro o “sem pretensões  literárias”, recurso que, de certa maneira, justifica os arroubos encomiásticos.  Quando, no primeiro capítulo do livro, evoca sua primeira recordação – a  mordida do seu primeiro amiguinho de infância –, ou seja, a dor causada pelos dentes  do garoto no seu pequeno seio de menina, a autora sutilmente nos sugere a motivação  filosófica fundadora de toda autêntica literatura: o insofismável sofrimento humano.