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segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Carta Apócrifa de Márcio Dantas

Maria Nazaré: o entranhado luto do viver
no vieron enterrar a los muertos
Federico Garcia Lorca
Muitos ainda lembram de Maria Nazaré, de Patu, a diligente professora primária que alfabetizou gerações e gerações, difundindo os conhecimentos da gramática e da matemática, através dos modestos conhecimentos que detinha, lecionando numa escola particular, que funcionava em sua casa. Casada com João Ernesto, enviuvara muito cedo, com 24 anos, nascida que fora em 13 de abril de 1906. Quando do casamento, mudara-se para um lugar chamado Escondido, terra do seu esposo, sendo que, quando o perdeu, preferiu morar na cidade, não retornando ao Patu-de-fora, terra dos seus antepassados, lugar de reputados sítios conhecidos por sua fertilidade e fartura de frutas, situado atrás da Serra de Patu. Foi a partir daí que passou a residir e ganhar sua vida como professora de alfabetização, embora também fosse zeladora do Grupo Escolar João Godeiro, exercendo as atividades no lugar da sua filha Raimunda.
Mesmo com a idade já bem avançada não perdera o gosto pela leitura, tinha grande apreço por aqueles livrinhos de bang-bang, histórias curtas de amor, revistas em quadrinhos e apreciava muito o cowboy Tex Willer. Costumava trocar livros e revistas com outros leitores da cidade, cujos enviados para o intercâmbio eram os filhos menores dos parceiros de passatempo, pois quase nunca saia de casa. O silêncio parecia convergir para ela como os afluentes plácidos de um rio correm em direção a um rio principal. Não que fosse de todo calada. Detinha a arte da conversação, e muito lhe causava prazer uma visita. Quem sabe, adquirira o estranho vício do recolhimento e do silêncio.
Deve ter permanecido de luto a vida inteira. Sempre a vi vestida de negro. O luto parecia ser seu estado normal, digamos assim. Nunca presenciei uma queixa sua, da vida ou de alguém. Havia no seu espírito um estoicismo atávico de sertaneja habituada a sofrer. Sim, reproduzira como ninguém o atavismo fatalista de seus ancestrais sertanejos, expresso de maneira notável no seu apego à casa e à segurança dos seus objetos pessoais. Da vida, nenhuma expectativa. Aguardava sempre a má notícia. A morte lhe era familiar. Acostumara-se a perder. Não tinha uma boa visão nem do homem, nem da humanidade. Aqui, acolá, deixava entrever por meio de reticentes opiniões o que pensava de eventos ocorridos na cidade. Permanecia presa à moral do sertão, cujo substrato se sustenta num grande lastro de orgulho e dignidade, modulando-se localmente em noções como “falta de vergonha”, “covardia”, “ingratidão” e “safadeza”.
Tivera apenas uma filha, Raimunda, falecida antes dela, com 60 anos e solteirona. Trabalhou a vida inteira como balconista na loja de tecidos de Celso Dutra. Raimunda servira durante muito tempo de dama de companhia para as moças da cidade. Era mulher de responsabilidade e confiança das mães. Pessoa extremamente intuitiva, espécie de sibila anônima, vaticinava o destino dos casamentos e namoros. Herdara o silêncio da mãe. Era do tipo que amava sem fazer valer o sistema de trocas no qual o amor encontra-se inexoravelmente envolvido. Na juventude, apaixonara-se por um moço, como não deu certo o casamento, deixou-se habitar pelo capricho e pela obsessão de um relacionamento fracassado. Nunca confidenciou nada a ninguém. Dizem que no dia anterior à sua morte, encontrou-o no Banco do Brasil. Conversaram. Falou-lhe que desejava desde muito tempo devolver uma foto dos tempos de namoro. Ele disse que não precisava. A morte espalhava no chão do destino sua última carta de ironia e revés.
Havia outra moradora na casa, Amélia, moça-velha, irmã de Maria Nazaré. Moravam essas três mulheres numa casa impecavelmente arrumada. Os objetos encontravam-se de tal maneira quedados nos seus lugares que a impressão que se tinha era de que ninguém nunca os mudara de lugar. Era como se fosse assim um cenário do escritor Cornélio Pena: sombras se arrastando pelo límpido silêncio da casa. Apenas o chilrear de um periquito numa gaiola de ferro interrompia a calma do silêncio. O pequeno periquito verde dançava e cantava, incitado por sua proprietária.
Já velha e cansada ficara com as pernas cambadas, arrastando-se devagar pela casa, mesmo assim era quem fazia a comida, efetuava os pagamentos, servia café às visitas, encomendava a carne da semana. A monja sertaneja estava mais para a Marta bíblica do que para a contemplativa Maria, escutadora curiosa de conversas.
Certo dia, fui visitá-la. A casa estava fechada. Segundo um seu contraparente, “estava morando em cima de um lagedo quente”. Foi lá que a visitei, ainda lúcida e em completo abandono. A casa ficava vizinha a um lagedo de granito. Relatou-me seu cotidiano de abandono e solidão, chorando um pranto gutural. Disse-me que um dia contara em cinquenta as vezes que caminhara entre a porta de entrada e a porta da cozinha. Dormia com a bolsa do dinheiro da aposentadoria junto a seu corpo, na rede, com medo de ser roubada. Uma vizinha, mais bondosa, vez ou outra mandava sua menina ir dormir com ela. O rosto estava profundamente vincado de rugas, dobras profundas na testa indiciavam as profusas furnas da alma. As falas eram conversas de velhos: compridas, cheias de síncopes e gaguejadas. Ninguém mais prestava atenção ao que ela dizia. O abandono do velho passa essencialmente pela sua exclusão de um mundo de interlocutores que se comunicam, aí talvez ancore uma das razões do porquê de tanto se queixarem da solidão. O olhar, inexpressivo, adquirira aquele baço de quem já não sente interesse pelo mundo e seu entourage, aquele embaciamento de que também a memória se turvou, buscando atenuar o doloroso das lembranças do passado. As íris já apresentavam aquele círculo branco dos que miram o horizonte próximo da eternidade. Jamais falava em morrer. Permanecia estóica, cumprindo seu destino, como se fosse parte de uma ordem cósmica. Nenhum lamento. A vida era soberana, outorgara um caminho a ser cumprido.
Já mais para o final de sua vida, fora morar no Patu-de-fora, com sua irmã um pouco mais nova, Rosa de Lima. Remontando a antigos costumes nos quais os velhos são entregues aos cuidados de parentas mais jovens, foi impecavelmente bem tratada até seus últimos dias por uma sobrinha filha da irmã com quem morava, Eliete. A lucidez só abandonou-a quase nos derradeiros dias. Havia um estranho e enigmático apego à vida, que a fazia perdurar, dizendo com uma certo travo de ironia e sarcasmo bem tragicamente sertanejo, sentada na rede: “vou ficar aguardando sua próxima visita” (visitava-a de ano em ano).
E assim deu-se a vida de Maria Nazaré, falecida no ano  2000, erguida sob “a norma de sofrer e calar” (Henriqueta Lisboa), num lastro de lutas e de luto, Maria Nazaré: o entranhado luto do viver
no vieron enterrar a los muertos
Federico Garcia Lorca
Muitos ainda lembram de Maria Nazaré, de Patu, a diligente professora primária que alfabetizou gerações e gerações, difundindo os conhecimentos da gramática e da matemática, através dos modestos conhecimentos que detinha, lecionando numa escola particular, que funcionava em sua casa. Casada com João Ernesto, enviuvara muito cedo, com 24 anos, nascida que fora em 13 de abril de 1906. Quando do casamento, mudara-se para um lugar chamado Escondido, terra do seu esposo, sendo que, quando o perdeu, preferiu morar na cidade, não retornando ao Patu-de-fora, terra dos seus antepassados, lugar de reputados sítios conhecidos por sua fertilidade e fartura de frutas, situado atrás da Serra de Patu. Foi a partir daí que passou a residir e ganhar sua vida como professora de alfabetização, embora também fosse zeladora do Grupo Escolar João Godeiro, exercendo as atividades no lugar da sua filha Raimunda.
Mesmo com a idade já bem avançada não perdera o gosto pela leitura, tinha grande apreço por aqueles livrinhos de bang-bang, histórias curtas de amor, revistas em quadrinhos e apreciava muito o cowboy Tex Willer. Costumava trocar livros e revistas com outros leitores da cidade, cujos enviados para o intercâmbio eram os filhos menores dos parceiros de passatempo, pois quase nunca saia de casa. O silêncio parecia convergir para ela como os afluentes plácidos de um rio correm em direção a um rio principal. Não que fosse de todo calada. Detinha a arte da conversação, e muito lhe causava prazer uma visita. Quem sabe, adquirira o estranho vício do recolhimento e do silêncio.
Deve ter permanecido de luto a vida inteira. Sempre a vi vestida de negro. O luto parecia ser seu estado normal, digamos assim. Nunca presenciei uma queixa sua, da vida ou de alguém. Havia no seu espírito um estoicismo atávico de sertaneja habituada a sofrer. Sim, reproduzira como ninguém o atavismo fatalista de seus ancestrais sertanejos, expresso de maneira notável no seu apego à casa e à segurança dos seus objetos pessoais. Da vida, nenhuma expectativa. Aguardava sempre a má notícia. A morte lhe era familiar. Acostumara-se a perder. Não tinha uma boa visão nem do homem, nem da humanidade. Aqui, acolá, deixava entrever por meio de reticentes opiniões o que pensava de eventos ocorridos na cidade. Permanecia presa à moral do sertão, cujo substrato se sustenta num grande lastro de orgulho e dignidade, modulando-se localmente em noções como “falta de vergonha”, “covardia”, “ingratidão” e “safadeza”.
Tivera apenas uma filha, Raimunda, falecida antes dela, com 60 anos e solteirona. Trabalhou a vida inteira como balconista na loja de tecidos de Celso Dutra. Raimunda servira durante muito tempo de dama de companhia para as moças da cidade. Era mulher de responsabilidade e confiança das mães. Pessoa extremamente intuitiva, espécie de sibila anônima, vaticinava o destino dos casamentos e namoros. Herdara o silêncio da mãe. Era do tipo que amava sem fazer valer o sistema de trocas no qual o amor encontra-se inexoravelmente envolvido. Na juventude, apaixonara-se por um moço, como não deu certo o casamento, deixou-se habitar pelo capricho e pela obsessão de um relacionamento fracassado. Nunca confidenciou nada a ninguém. Dizem que no dia anterior à sua morte, encontrou-o no Banco do Brasil. Conversaram. Falou-lhe que desejava desde muito tempo devolver uma foto dos tempos de namoro. Ele disse que não precisava. A morte espalhava no chão do destino sua última carta de ironia e revés.
Havia outra moradora na casa, Amélia, moça-velha, irmã de Maria Nazaré. Moravam essas três mulheres numa casa impecavelmente arrumada. Os objetos encontravam-se de tal maneira quedados nos seus lugares que a impressão que se tinha era de que ninguém nunca os mudara de lugar. Era como se fosse assim um cenário do escritor Cornélio Pena: sombras se arrastando pelo límpido silêncio da casa. Apenas o chilrear de um periquito numa gaiola de ferro interrompia a calma do silêncio. O pequeno periquito verde dançava e cantava, incitado por sua proprietária.
Já velha e cansada ficara com as pernas cambadas, arrastando-se devagar pela casa, mesmo assim era quem fazia a comida, efetuava os pagamentos, servia café às visitas, encomendava a carne da semana. A monja sertaneja estava mais para a Marta bíblica do que para a contemplativa Maria, escutadora curiosa de conversas.
Certo dia, fui visitá-la. A casa estava fechada. Segundo um seu contraparente, “estava morando em cima de um lagedo quente”. Foi lá que a visitei, ainda lúcida e em completo abandono. A casa ficava vizinha a um lagedo de granito. Relatou-me seu cotidiano de abandono e solidão, chorando um pranto gutural. Disse-me que um dia contara em cinquenta as vezes que caminhara entre a porta de entrada e a porta da cozinha. Dormia com a bolsa do dinheiro da aposentadoria junto a seu corpo, na rede, com medo de ser roubada. Uma vizinha, mais bondosa, vez ou outra mandava sua menina ir dormir com ela. O rosto estava profundamente vincado de rugas, dobras profundas na testa indiciavam as profusas furnas da alma. As falas eram conversas de velhos: compridas, cheias de síncopes e gaguejadas. Ninguém mais prestava atenção ao que ela dizia. O abandono do velho passa essencialmente pela sua exclusão de um mundo de interlocutores que se comunicam, aí talvez ancore uma das razões do porquê de tanto se queixarem da solidão. O olhar, inexpressivo, adquirira aquele baço de quem já não sente interesse pelo mundo e seu entourage, aquele embaciamento de que também a memória se turvou, buscando atenuar o doloroso das lembranças do passado. As íris já apresentavam aquele círculo branco dos que miram o horizonte próximo da eternidade. Jamais falava em morrer. Permanecia estóica, cumprindo seu destino, como se fosse parte de uma ordem cósmica. Nenhum lamento. A vida era soberana, outorgara um caminho a ser cumprido.
Já mais para o final de sua vida, fora morar no Patu-de-fora, com sua irmã um pouco mais nova, Rosa de Lima. Remontando a antigos costumes nos quais os velhos são entregues aos cuidados de parentas mais jovens, foi impecavelmente bem tratada até seus últimos dias por uma sobrinha filha da irmã com quem morava, Eliete. A lucidez só abandonou-a quase nos derradeiros dias. Havia um estranho e enigmático apego à vida, que a fazia perdurar, dizendo com uma certo travo de ironia e sarcasmo bem tragicamente sertanejo, sentada na rede: “vou ficar aguardando sua próxima visita” (visitava-a de ano em ano).
E assim deu-se a vida de Maria Nazaré, falecida no ano de 2000, erguida sob “a norma de sofrer e calar” (Henriqueta Lisboa), num lastro de lutas e de luto e incondicional aceitação do seu agreste destino de mulher sertaneja.

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