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sábado, 31 de maio de 2025

Especial: Dona Neuza Alexandrino, 90 Anos de Fé e Pesistência.

Neusa Alexandrino, natural de Patu-RN, nasceu em 3 de junho de 1935, no sítio Torado, zona rural do município. Mulher de fibra, trabalhadora, uma jovem que sonhava com dias melhores e que nunca perdeu a fé em Deus. No ano de 1953, ela conheceu o jovem Francisco Sales Rodrigues, natural da cidade de Baixio, Ceará, filho de João Rodrigues e Maria Rodrigues. Francisco veio trabalhar na comunidade Torado em 1952, nos serviços de manutenção da linha férrea Mossoró-Souza. Com ele, Neusa iniciou um namoro e, posteriormente, casaram-se. Do casamento, tiveram três filhos: Francisco Rodrigues Filho, conhecido como Dr. Kavéi; Raimundo Rodrigues da Silva, conhecido como Mundinho; e Marta Maria Rodrigues, que faleceu aos dois meses de idade. Depois de casados, Francisco Sales Rodrigues passou a residir em Mossoró, onde trabalhou na linha férrea como guarda-freio, profissional responsável por vigiar e manobrar os freios de carros e vagões do trem, seguindo as ordens do maquinista.
Em 1955, o casal adotou uma criança, Francisca Vilani de Oliveira, que hoje reside em Formosa, Goiás. Em 1956, seu esposo Francisco faleceu devido a um infarto. Após a perda, Neusa retornou à região e passou a residir na Cachoeirinha, sob os cuidados de seu sogro, João Rodrigues, conhecido como João Canário. Depois, mudou-se para o sítio Hortelã com seus filhos, sendo acolhida pelo senhor conhecido como Chico Canário. Como viúva, Neusa tinha a grande responsabilidade de criar e educar seus filhos. Seu filho, Francisco Rodrigues Filho, “Kavéi”, antes de ir para a escola, entregava leite em várias residências de Patu. Ele vinha do sítio Hortelã até a zona urbana montado em um burro, entregando o leite e, depois, indo para a escola. Kavéi também lembra que, na época de estudante, trabalhou com o saudoso Miguel Câmara Rocha, ajudando na fiscalização da emergência e na construção da estrada Patu - Almino Afonso. Além disso, trabalhou nos dias de feira na bodega de Neto de “seu Nidas”.
Todo esse esforço foi recompensado: Kavéi estudou em Patu, iniciou a faculdade em 1979, no curso de Agronomia, em Mossoró, na antiga ESAM — hoje UFERSA — Universidade Federal Rural do Semiárido. Ele se formou em 1982 como engenheiro agrônomo e atualmente é servidor público aposentado do INCRA-RN, tendo exercido a função de Perito Federal Agrário. Neusa sempre foi dedicada à Igreja. Quando criança, morava no sítio Torado e ia a pé até Patu para as aulas de catecismo na igreja matriz. Sua ligação com a religião foi fundamental para a educação religiosa de seus filhos. Na década de 1970, quando foi construída a Capela de Santa Terezinha, Neusa participou ativamente, ajudando ao lado de seu Dirceu, Dona Maria Godeiro, Tetê e Abigail nos trabalhos de arrecadação de donativos para a construção da capela, além de colaborar nos trabalhos religiosos da Igreja como leiga. Em 2015, faleceu seu filho Raimundo Rodrigues da Silva, conhecido como “Mudinho”. Atualmente, Neusa reside no bairro da Capela de Santa Terezinha. Uma mulher de muita fé, ela frequenta semanalmente a capela, fazendo suas orações  agradecendo e pedindo a Deus e a Santa Terezinha proteção para ela e sua família.
Nesses 90 anos de vida, dona Neusa Alexandrino agradece imensamente a Deus pela sua existência e por sua trajetória de lutas, desafios e obstáculos que superou, mas que nunca perdeu a fé em Deus. Uma mulher simples, que durante sua vida atuou em favor dos pobres, teve uma atuação importante na pastoral da criança e na Legião de Maria. Hoje, 31 de maio de 2025, às 19h, no encerramento do mês Mariano, será realizada uma celebração na Capela de Santa Terezinha, local onde ela sempre esteve presente, em homenagem aos seus 90 anos. Nossos parabéns a Dona Neuza Alexandrino!!!
















sexta-feira, 30 de maio de 2025

Especial: Maria do Santíssimo e o seu caleidoscópio das coisas modestas

O tempo farejou a fábula 

contaminou-a. Projetou-a 

talhada à sua própria imagem. 

Henriqueta Lisboa 




Maria Antônia do Santíssimo (São Vicente, 1890-1986) é uma artista visual que  se destaca por tudo que a rodeia, quer seja sua biografia, quer diga respeito diretamente à  sua obra. Espécie de Midas-mulher: tudo que toca vem a ser objeto de arte. Sua aura  circunscreve um perímetro que lança vetores de pesquisa em direção a vários domínios.  Talvez, antes de buscar ferramentas que conduzam a explicar essa obra extremamente  singular, fosse interessante tomar algumas notas que dizem respeito à sua vida de dona  de casa responsável pelos trabalhos do lar e da família. Pois bem, o certo é que, além de pintar desde os nove anos, também era costureira  e bordadeira, tarefas desde sempre entregue às mulheres. Como podemos ver, a  precocidade com a arte de pintar encaminha o espectador ou aquele que admira esse  trabalho sem entender muitas vezes do que se trata, pois a dimensão estética repousa seus  signos ou retóricas muito além do que se avizinha. Ou, quando em consulta de oráculos  interiores, nada há de mais concreto, quer seja operando a mímesis, ou seja, a  transfiguração por meio de um olhar, de um semblante, de qualquer quasar ou de um  andamento tardo. E se for indolente, também não vai mudar muito não.  


O que de precoce houve, com seus nove anos, era o anúncio do que se configuraria  na mocinha e, depois, na mulher feita. Quando isso sucede no fenômeno artístico, está  traçada uma rodagem sem volta.  

Seu marido vendia, nas feiras, os forros para baús, assim como revestimento de  oratórios de madeira ou outra espécie, que eram nichos abertos como se fossem janelinhas  no quarto do casal. Via de regra eram os santos. 

Há que dizer da produção de pinturas com anilina feitas em papel almaço ou  cartolina, e os pincéis eram de palito de coqueiro amassados na ponta. Esse material rústico era suporte e manuseado por dedos ávidos para pintar o revestimento de baús ou oratórios. Ou seja, por incrível que pareça, tinham um objetivo funcional, servindo de  peça para adornar alguns poucos móveis (baús) ou nichos (oratórios) integrantes da  simplicidade da casa de morada. A obra se reveste de uma aura didática. Nunca como ingênuos ou “malfeitos”, mas  como um impreciso que não sei dizer o jeito, a posição ou o minério de que é constituído. Só sei dizer de algo que me habita, e vem à tona do meu inconsciente não somente para  assomar com seu bafejo, mas como fármaco sanativo de dores de amores que não se  cumprem. Quase sempre o tema é bilateral, como se quisesse harmonizar nosso espírito,  numa espécie de balança em cujos pratos repousam diferentes figuras e cores. Mas estão  exatamente no prumo. Buscar nomes seria inútil e grande perda de tempo, pois há de se compreender que nem tudo o que se sente vem ou aguarda, por costume sua, letra e  respectiva nominata. Apenas nos concerne a insistência e uma teimosia sem fim para  classificar em qual conjunto de coisas está incluso aquilo ou aquele fenômeno. 


Envolvida com as lides domésticas, ficou cerca de 50 anos sem pintar. A mudança  para o que sempre fora no seu íntimo não lhe deu muito trabalho, pois seus rústicos  artefatos, seus suportes de papel almaço, a anilina e os pincéis feitos de palito de coqueiro estavam à mostra, bastava ir ao monturo e recolher coisas de somenos importância para  quem ousara dar uma parada. A arte de pintar deu-se por causa de seus contraparentes  apelarem para que retomasse os trabalhos relacionados ao que ainda não era concebido  como arte. 

Ora, Iaperi, Iaponi e Manxa (escultura em madeira ou baixo-relevo em cimento  aparente). Esse naipe de ases de copas forma uma espécie de sistema de artes visuais  ingênua no Rio Grande do Norte, tendo sido Maria do Santíssimo o mito essencial que  teria fundado essa escola ou sistema, alastrando-se para pósteros, sendo hoje em dia o  Nordeste um dos lugares que mais detêm, em quantidade e qualidade, esse pujante estilo  que se caracteriza por não ter nenhuma preocupação com as regras que arte acadêmica  tem sempre em mente, tais como a perspectiva, o sombreamento ou a técnica que remete  a uma linha de continuidade surgida por volta da Idade Média, sendo a perspectiva surgida  no Renascimento Italiano (séc. XV). Agora, como inquirir, dizer a toda a voz os pendores que residem de tanta espera  e vêm a ser uma parábola, com o intuito de clarear determinada situação ou fenômeno,  refulgir por meio de uma palavra, de uma oração, de um período eivado de uma retórica  ou inclinação para as forças do bem que nos circundam qual nimbo, assim feito uma  auréola em uma presentificação de uma simbólica na qual repousam as chamadas coisas  do espírito (não como representante de firmas que era). Bem simples esse câmbio. Bem  simples? Nem tanto assim, haja vista o quão necessária deve ser a imersão abissal em si,  banhando-se nas profundezas de lagos imotos, com pouca vegetação. Voltemos a Maria do Santíssimo. Fica difícil negar seu pendor de mulher  assinalada para chantar no mais ermo sertão, distante léguas do Seridó, e, em gestos  ingênuos, iniciara a arte de pintar com papel almaço, de embrulho e anilina, sendo o pincel  um palito de coqueiro amassado na ponta. Bastante complexo é explicar, por meio da  História da Arte, essas artérias pulsáteis, como se fosse uma matemática, cuja operação  principal é a arte de somar.  


No assoalho por onde pisou, cultivando seu pomar e seu jardim, o delinear dos  objetos assomava aos seus olhos em atitude de franzir os olhos para melhor amolar o  silêncio adormecido no mais profundo das regiões pelágicas que integram todos os  humanos.  Comportava-se assim, não pelo uso da razão ou por ter ouvido falar, mas porque  látegos açoitavam Cérberos de guarda, ali chantados para não deixar emergir, em direção  às vísceras, o que de linguagem é fúlgíldo, é transparente e deixa soletrar as sílabas de  um alfabeto de símbolos cuja pertença organiza terminologias explicadoras do que vem  a ser fenômenos vinculados à consciência justapostas aos domínios da razão. O certo é que por meandros estreitos, qual córregos lambendo barrancas em dias  de nebrina fraca, assim filetes de águas se infiltravam com a vontade de se transformar  naquilo que ocupava mãos, dedos, sentada na calçada da erma cidade sertão adentro, no  Seridó, sentindo a quentura do vento onipresente ao pé da Serra de Santana. Com efeito, uma força interior lançava-a com determinação e plena de ânimo,  como se fosse um impulso que ela jamais soube de onde vinha, sabia que chegava através  de frestas pelas portas ou janelas, sem nunca ter encontrado a resposta. Sentia que sabia que outros e outras não estavam submetidos a essa mobilidade. Isso posto, continuava  fazendo a costura, o bordado, a pintura. E se não aplacava de tudo, conseguia que as  pernas tivessem menos movimento. Costurar e bordar resguardam um parentesco com uma matemática que a agulha  e a linha furam o tecido e sabem os caminhos da fazenda cortada e suas medidas, porém,  pintar é de um outro quilate, segue lógica espontânea e detém organizar determinado tema  dentro do comprimento e da largura. Esse pathos, a estimular sentimentos de melancolia,  júbilo ou introspecção, convida o espectador a chafurdar dentro de si alguma espécie de  signo que se encontra estampado no trabalho elevado aqui como artístico. Eis aqui como  essa engendrava um meio de vida, eis aqui como se aguardava o apurado. 


E com destreza e inquietude compreendem o que de estético houver em algum  objeto, não apontam, com os olhos, que aquilo é inacreditável, mas pertence a uma outra  forma de conceber a realidade como acréscimo de ou de incorporar como fármaco  sanativo para nosotros que consideramos o fato de sofrer como integrante da existência. Quero dizer dessa sinceridade na obra de que era de parente de sangue dos dois  eminentes artistas do Rio Grande do Norte. Iaperi e Iaponi nada devem a ninguém.  Apenas quedam-se como predecessores com seus marcos sossegos fincados no centro das  cidades. Será que foi de graça que ergueram um obelisco na chamada Rua Velha? 

Já é hora de caminhar para o fim. O crepúsculo vespertino ilumina, após um  ameno resto de um dia que nos faz evocar todo o bestiário de animais do terreiro: aves  mansas, burrinhos, pavões, rosas dobradas, fachadas amenas, com quadrículas. Como se  houvesse uma consciência maior a determinar o uso do espaço através de uma amplitude  maior. Embora viesse de família extremamente humilde, sem ter nada estudado em  escolas formais, nunca perdeu, ao compor suas telas, um enorme senso da composição e  do equilíbrio dos elementos a plasmar suas telas. Grande parte das telas detém uma  perfeita simetria bilateral familiarizando-se com esse recorte ao cortar no meio. Mas muito mais do que uma velha senhora introspectiva em seu canto, pintando  sobre uma tábua no colo, arrodeada de crianças, voltava sempre ao mesmo tema. 




segunda-feira, 26 de maio de 2025

Especial: A Via Dolorosa de Iaperi Araújo

 Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece.

E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar, de onde nasceu.

Eclesiastes, 1:4 



O artista Iaperi Araújo (São Vicente, 21.07.1945) contribuiu para a tradição das imagéticas relacionadas à Via Crucis — conjunto de imagens-ícone contidas no Novo Testamento — que dizem de um profeta ou deus feito homem, tendo este sido responsável pelas ideias que constituem uma nova maneira de conceber as relações, dentro do que ficou reconhecido como práticas religiosas. Como sabemos, o dia de Pentecostes é considerado a fundação do Cristianismo, e a Igreja Católica sua instituição “oficial”. O artista logrou êxito ao plasmar tais discursos por meio de belas imagens, demonstrando domínio da arte de manusear o código pictórico. Um belo estandarte com cores bastante simbólicas abre o cortejo de estações: azul e ocre.

Nada rivaliza, no Rio Grande do Norte, com essa obra deixada para a posteridade singular, diferente e extremamente intrigante. Refiro-me à constelação de significantes ou ao que foi tematizado, e foi bastante capaz com sua pronúncia estética, desde sempre reconhecido como o nosso mais importante naïf, tanto em quantidade como em qualidade. Ademais, Iaperi também se destaca como escritor, cujos temas estão vinculados ao Nordeste e sua etnografia ou História. 

O que fez a diferença com relação à sua Via Crucis foi imprimir um forte apelo à tradição dessa temática obsessiva no campo da retratação dos passos impetrados por Jesus, cuja seara o Rio Grande do Norte possui roçados sempre predispostos a serem segados.

Achei muito curioso o tríptico de militares em seu verde-oliva: uma inovação retirou o ethos dramático que as tradições religiosas ou cinematográficas insculpiram a essa narrativa mítica que funda a civilização ocidental após o Império Romano. 

O estandarte, apresentando a narrativa fragmentada que vai se seguir, se organiza a partir de poucos elementos no enquadrar da síntese que quase todos os ocidentais reconhecem. Firma-se, com seu despojamento, em um minimalismo contendo tão somente o que é essência e pertencimento à necessidade de recorrência, para que se perpetue nos ritos milenares da liturgia da Igreja Católica. Ora, consabido é a necessidade da sobrevivência e permanência do discurso mítico, ter em sua gramática o repisar de um mesmo personagem em suas cores, alfaias, indumentárias, gestos e evocações, fazendo crer por meio de uma eficácia validadora do que se diz de si, e de como chega ao íntimo de cada um que detém sua crença.

Ainda posso afirmar que o estandarte refoge ao minimalismo no qual se funda e se afirma um discurso que escorre semanticamente para o resto. Assemelha-se ao barroco, decorado com laços de fita pendentes e repleto de cianinhas e pingentes dourados. 

As cores que servem de plano de fundo restringem-se a poucas, sem o manuseio de sombras ou nuances, talvez fazendo crer que o mais importante é o que sucede no plano primeiro. O título e os créditos de autoria estão com as letras do alfabeto invertidas, como se o artista ou eventuais espectadores mirassem tendo um espelho diante de si. Vemos por espelho / mas há outra forma de ver? — (Orides Fontela). Todo mundo sabe que não.

Para além da devoção, um dos seus sentidos — o de relação íntima com o sagrado —, não podemos esquecer o que também reflete o profano subliminar à retórica catalisadora que nada mais é do que uma dramatização pictórica da condição existencial inerente a todos. Há que olvidar de uma escatologia calcada no vigiar e punir, em uma forte noção de pecado e nas hierarquias que os dogmas impõem a quem quer ou necessita dessas histórias para viver. 

A Via Crucis, no seu formato tradicional, pendurada nas paredes do interior das igrejas — quase sempre verdadeiras obras de arte—, é composta por 14 estações, número cabalístico e múltiplo de 7 = perfeição, harmonia, o uno encontra-se entre o masculino (4) e o feminino (3). Representa a completude, a sabedoria e as coisas relativas ao espírito, recorrente em múltiplas tradições espirituais. O artista acrescentou duas imagens: o Estandarte e uma Tela que, logo no compasso das estações, se repete, fazendo crer em um ícone-síntese a organizar o término do sofrimento de Jesus. Talvez não seja de todo inverossímil o fato de termos alargados o fulcro lendário com o intuito de abarcar, através da geografia e da história, lançando seus vetores em direção à sintaxe desse mito e dos seus afluentes semânticos, permitindo o reconhecimento de como se organizou e ainda é vívido e, digamos, “eficaz”, até hoje.

Vejamos como se dispôs, de forma ordena, essa versão da Via Crucis. Organiza-se por meio do signo imagético, ou seja, considerando-o como integrante da Semiótica, domínio dos sinais analógicos, do signo visual. O signo linguístico somente apresenta e enumera os passos. 

I Estação: Jesus é paramentado para cumprir e finalizar sua existência. Veste um manto vermelho, uma coroa de espinhos, e um naco de tecido resguarda as partes íntimas; ladeado por dois militares. Aos pés, o cordeiro a ser imolado. Um resplendor áureo contorna sua cabeça, como índice de que o difere, até certo ponto, dos demais que o acompanharam (Maria, Maria Madalena, os discípulos, dentre outros). Sagra-se resignado, com as mãos amarradas, para o que imagina que sucederá.

Eis o filho do homem a ser sacrificado. Como se fosse um ator ataviando-se, para assomar ao palco e representar seu papel. Para tanto, evoco o filme Mephisto (direção de István Szabó); no final, quando o ator Klaus Maria Brandauer mira a câmara, em um recurso metalinguístico, diz algo assim: “O que queriam? Sou apenas um ator!”.

II Estação: Entrega da cruz após o julgamento de Pôncio Pilatos.

III Estação: Primeira queda. Das três, parece ser a que chancela a dor de carregar tão grande peso e, resignado, estoico, nada reclama ou clama aos céus, buscando se redimir do que lhe acomete. Na verdade, são metáforas familiarizadas do humano, não ousando cavilações ou dissimulação, pois sabem muito bem do que se trata. Até podemos comparar com pessoas detentoras de transtornos afetivos. Segundo Nise da Silveira, eles adentraram por esse túnel de sombras, sem guia, conselho, amparo de mãe ou parente; acontece que não souberam retornar. Então, errantes, a sociedade os usa como um meio crudelíssimo de tatuar quem é “doido” e quem é “normal”.

Isto posto, faço saber que não passa de uma conveniência que assola as classes sociais, prendendo no que chamam de hospícios ou manicômios (bem presentes no século XIX), nos quais aqueles com transtornos afetivos eram submetidos a choques elétricos, lobotomia, crueldade e ausência de empatia. É o que a sociedade, com seus preconceitos, indigita como “loucos”. Atualmente houve avanço em alguns hospitais ou CAPS, mas segue a dicotomia louco/normal. Vejam, até os gestos, como rodar o indicador na cabeça e outros, permanecem sem alterações, pois ninguém pode costurar a boca ou amarrar as mãos da maioria. Cada um diz e faz o que bem entende, nas alcovas e salas de estar das herdades.

Ora, que mistério pode haver se levarmos para o campo da percentagem? Normal é o que 50% mais um acredita? Se for assim, pode-se trancafiar em celas quase todo mundo, como Simão Bacamarte fez (Machado de Assis). Se desejar essa limpeza psíquica, não encontrará, pois, de doido e de médico todo mundo tem um tanto. 

Afinal, o que é ser normal? Segundo C. G. Jung  “Normal é todo aquele que tem a capacidade de amar e trabalhar”. Não parece razoável? Podemos evocar outra narrativa pertencente ao campo da literatura. Falo daqueles que persistem com tenacidade, como Ulisses da Odisseia, decifrando cada empecilho apenas como mais uma atribulação a ser enfrentada, como mais uma Estação.  Ergue-se face a si e seus argonautas e, por meio da astúcia e de uma intuição sobrenatural, desvencilha-se e segue em direção a Ítaca, onde o aguarda seu filho Telêmaco e sua companheira Penélope.

Cair, a depender de como se interpreta, opera em um entendimento dos limites das nossas forças, mas isso não quer dizer que vá se entregar e jazer na terra. Todos deveriam saber que detemos mais forças íntimas do que imaginamos, e, se temos essa ciência, podemos nos erguer da queda e continuar. Portanto, entregar-se nunca é negócio que valha à pena, pois não sabemos o que nos aguarda. Ora, Winston Churchill proclama a verdade e o bom conselho: “Se você está atravessando o inferno, continue andando”. Sei muito bem que pode ser difícil, mas não podemos negar o puro ouro da essência dessas palavras. Jesus preferiu cumprir seu destino, queimando na frágua de cada Estação, com suas altas labaredas de fogo, transpirando a água dos seus músculos lassos.

IV Estação: Encontro com sua mãe Maria. 

V Estação: O Cireneu compadece-se e pega a cruz em atitude de misericórdia e rara cumplicidade, coisa pouco comum entre os homens. Esse restou para reafirmar, com seu gesto de piedade, as exceções daqueles que repetem a passagem do “bom samaritano”, não procurando saber de qual etnia ou religião pertencera o que sofria no chão, sob um sol inclemente. Outrossim, não deu explicações ou procurou saber os motivos dele estar ali sozinho. 

VI Estação: Verônica enxuga o rosto, que fica impresso no pano, qual retrato retirado em breve espaço de tempo. Mais do que testemunha, é um gesto de amor. Ao enxugar o suor e o sangue, referenda o que se passa pelas ruas de Jerusalém. Nada disse em seu silêncio de gestual amoroso, admirador e um querer bem, sem justificativas.

VII Estação: Segunda queda. Mais um cansaço conduz o corpo ao chão para formar o emblemático e cabalístico tríptico de quedas. Não há uma enfermidade física que justifique, mas uma alma lacerada de dores, sem que os fármacos que cada um possui na sua farmácia íntima sejam capazes de emergir para o cérebro, atenuando ou curando um cansaço tamanho que mais parece pertencer ao conjunto de cidadãos da cidade de Jerusalém. Nem mesmo a invocação de apenas um dom dos sete que o Espírito Santo bafeja, e nos enche de uma Fortaleza da alma, atenderia aos apelos.


Pois o fato de uma entrega diante das atribulações que a vida imprime, quando arraigada de tempos, quando tatuada de muito, é difícil buscar a solidariedade da vida, que não recua por apelo de qualquer qualidade, pranteando as coisas do sagrado, com seu cabedal de fé e ardência de um homem que sofre. Enfim, o firmamento permanece imoto, indiferente aos apelos de nossos amigos ou familiares. Da mesma maneira, a recusa de ajuda por meio de palavras em ardente carinho também não retumbará nos ouvidos, já habitando lagares pertencentes a outra dimensão. 

VIII Estação: Consola as mulheres de Jerusalém. Mesmo estando em uma situação-limite, injustiçado — pois nada de grave fizera —, apenas, como um rabi ilustrado, disseminara a Boa Nova, bem diferente da Torá e de outros livros pertencentes à tradição dos judeus. Não é que negasse por completo a lei de Moisés ou o livro dos profetas, como Isaías, pleno não só de pragas, como também anunciador da vinda de um messias. O livro é encorpado e íntimo dos signos, das metáforas e dos sinais acerca daquele que estava para chegar.

O grande “pecado” de Jesus fora anunciar uma nova forma incondicional de amar o próximo, ausente de estratificação de etnias ou classes sociais. O puro e verdadeiro amor do qual Paulo trata em Coríntios. Bem interessante é esse encontro com as mulheres de Jerusalém, pois elas criam uma distância do sofrimento daquele que será crucificado, como se o sofrimento do que carrega a cruz estivesse distante dos seus semelhantes. Em contrapartida, Jesus lhes devolve palavras, qual espelho, fazendo com que reconheçam que elas também integram o humano e sua condição. “Chorai por vós e por vossos filhos”. O humano, de uma certa forma, deleita-se ao encontrar um sofrimento além do seu, para comparar e não se sentir tão inferior. 

Assim sendo, os locais de estudo, de emprego ou as famílias são lastros lisos no qual a rivalidade, a inveja, a disputa por nonadas, quem é mais que outro? Aqui sucede o acerto de contas de canalizar uma energia inútil, podendo empregar em algo mais produtivo e exercitar o lídimo amor. Todos conhecem desses frutos e desses intuitos. Falo dos muitos que coexistem em uma naturalidade, em simultâneo, como se tudo aquilo fosse banal.

IX Estação: Terceira e última queda, fechando o ciclo de se prostrar no chão, devido ao cansaço causado pelo peso da cruz e em direção ao Calvário, que parece interminável.

X Estação: Desnudo, com a coroa de espinhos à guisa de tiara, três mulheres escondem discretamente as partes íntimas com o que parece ser uma túnica inconsútil (sem costura, um corte só de fazenda), simbolizando humildade ao ter sido apenas cortada e sem cerzimento, o que diz de uma simplicidade e de uma ausência de quem não liga em ornamentar para se expor aos outros.

XI Estação: Pregado na cruz. Caminhando para o fim, o sol mergulha no horizonte com o testemunho de cinco soldados verde-oliva.

XII Estação: Crucifixão com os dois ladrões. O bom ladrão (Dimas) e o mal ladrão (Simas).  Pranto em uníssono de mulheres. Para os romanos, a condenação através da pena da cruz era destinada aos piores malfeitores. O sol, cuja presença era uma constante testemunha, mergulha na linha do horizonte, assinalando o crepúsculo de uma arrastada e penosa caminhada. Presença da sua mãe, da irmã de sua mãe, da mulher de Cleopas e de Maria Madalena. Jesus, em seu último suspiro, diz: “Está consumado”. Inclinou a cabeça, entregou o espírito. 

Sintomática é a disposição espacial dos elementos da tela, em uma simetria bilateral perfeita, sequenciada em três planos: mulheres, ladrões e, ao centro, um Cristo imóvel sucumbe, entregando-se resignado ao seu destino. Não parece coincidência o fato da presença de tão somente duas cores: o azul e o ocre, justapostos para compor uma harmonia entre os tons de azul, representando o céu, e o antípoda ocre, como lastro da terra. 

Mais uma vez, as forças físicas, com a pujante presença do mito, escorrem para essa história de um indivíduo, recontada como verdade para os que contemplam com fé. O nimbo, em torno do rosto, circunda a aura de seriedade de um semblante rescendendo à entrega e, ao mesmo tempo, uma sorte de alívio por tudo findar, livrando-se desse fardo que é mensurar os dias sem saber que novidade romperá o tênue revestimento que separa a alternância das horas. Não é de se espantar que a maioria dos humanos prefere a não chegada de novidades, escolhendo a tranquilidade de uma rotina e detendo o controle, até certo ponto, dos três turnos, embora não possa impedir a lâmina fina que rasga a integridade desses três expedientes. “Grande e nobre é viver simplesmente” (Fernando Pessoa).

XIII Estação: Descida da Cruz e unção do corpo por meio de 100 libras de mirra e aloés. Constatamos o desaparecimento do círculo solar. As cores, ao fundo, são mais sombrias: roxo, marrom, vermelho.

XIV Estação: Sepultamento. O corpo é levado por homens em uma rede, evocando fortemente uma tradição nordestina desaparecida.

XV Estação: Ressurreição: vestido de uma túnica, ressuscita e sai do túmulo, e encontra quatro mulheres que folgam em saber de tão belo milagre.

XVI Estação: Assunção. O céu, de um azul transparente, encontra-se constelado de estrelas, como se quisessem exultar e jubilar o majestoso crepúsculo de um deus ressuscitado. Das quatro mulheres presentes, duas estão vestidas de verde, cor que anuncia a esperança.

Em resumo, parece haver linhas subjetivas da vida do artista entrecruzando-se com sua obra, embora sempre optemos por nos deter sobre a obra, e nunca sobre o homem. Contudo, mesmo as escolas formalistas de exegese podem, vez ou outra, acionar conhecimento de alguma obra de arte refratadora, permitindo categorias incorporadas pela tradição.

Assim, a obra vale por si mesma, deixando entrever perfurações nas quais o intérprete elucide algum aspecto velado na composição, desfazendo certas ambivalências ou sobreposição de metáforas. Quero dizer que não há por que deixar o componente biográfico, se preciso for. A pronúncia estética de Iaperi Araújo, nosso mestre maior naïf, convida o intérprete a singrar/sangrar um percurso existencial. Uns mastigam a raiz amarga precocemente, outros são tardios. Há quem fique de fora? Duvido muito! Alguém encontrou um diferencial concernente aos demais? Nunca, jamais, em tempo algum. Não há mistério diante da taça de cólera em chamas, imposta pela Fortuna, obrigados que somos a verter, mesmo que queiramos afastar de nós esse cálice.

Não parece ser coincidência o fato de que, no percurso em direção ao Calvário, ter havido três quedas devido ao peso da cruz, gerando um corpo lasso e resignado. Esses signos, por sua vez, recaem sobre os três números que mais aparecem na Bíblia, a saber: o III, o VII e o XIX ( ímpares, um tanto mais complexos nas quatro operações básicas). 

Consabido de pausas na escanção e cadência ao salmodear ou enumerar seus eventuais múltiplos, na medida que detém um forte componente cabalístico, repousando suas constelações de sentidos em regiões pelágicas do humano, lugares que são resguardados por suas portas lacradas ou um pouco entreabertas, emergindo para esclarecer questões íntimas ou mesmo com o intuito de acentuar os enigmas que o humano, em seus silêncios e solidões, inquieta-se impotente face ao que se encontra tão perto e, mesmo assim, não acede ao esclarecimento. É como a ponta do nariz, vizinho aos olhos, porém não podemos enxergar.

Considerando-se uma perspectiva não religiosa — mas observado o que do mito é decalcado ou queda-se como substrato —, para que o distrito de uma dada civilização manifeste suas peças de um xadrez justificador de uma forma de ser e de se comportar, constatamos a Trindade do Pai, do filho e do Espírito Santo como caudatária do que, no antigo Egito, sucedeu no seu cotidiano: o culto a Osíris, Ísis e Hórus. Não esquecer que Osíris é um Deus que ressuscita, mediante Ísis que junta os fragmentos do corpo, e Hórus, ocupando o lugar do filho. Com efeito, a estrutura mítica do Cristianismo pouco se distancia do que aconteceu há milhares de anos. Ao que parece, vai ao encontro de Estruturas Antropológicas do Imaginário.

A forma de organização dos mitos, nas inter- relações, assemelha-se ao modo da estrutura de uma língua natural: morfologia, sintaxe, gramática. É como se fosse um lugar demandando ser preenchido. Uma constelação de hiatos que conformam, ao encontrar o seu lugar em uma determinada lógica, uma narrativa pictórica ou linguística. Assim, podemos lançar vetores eivados de semânticas consoante o conjunto de significantes. Para muitos, é como se fosse uma exegese árdua e nem sempre capaz de ser decodificada; contudo, se formos capazes de persistir, podemos adentrar por uma seara cuja sega nos permitirá compreender até onde o mito de um Cristo a ser imolado, percorrendo por algumas ruas de Jerusalém, elucidará o modo de como se organiza o humano para enfrentar as vicissitudes do cotidiano.

Insisto em fazer uma digressão acerca da mitologia egípcia. Vejamos: Geb (Deus da Terra) e Nut (Deusa do Céu), irmãos gêmeos que se casaram e tiveram vários filhos, dentre eles Osíris, Ísis e Seth. Seth era o deus do caos, desordem e violência; como inimigo de Osíris, acabou por assassiná-lo e intentou contra Hórus. Ísis, desesperada, saiu pelo mundo buscando recolher as partes que compunham o corpo de Osíris. Por conseguinte, Osíris, seu irmão e esposo, acabou por ressuscitar.

Temos aqui todo o fundamento das práticas religiosas do antigo Egito, que mirariam, com grande perspicácia, a posteridade. Coincidência ou não, há uma trindade e um deus ressuscitado, como na escatologia da Igreja Católica. 

Em seguida, segue o panteão de deuses do Império Romano, assentando-se sobre os deuses da antiga Grécia, apenas alterando uma nomenclatura ou outra, mas, enfim, ocupando o mesmo lugar de culto e organização simbólica. Curioso é que até os atributos são os mesmos, bem como as áreas de sentido, os rituais e seus cultos. Só para citar um exemplo dessa interseção, basta atinar, com cuidado, as procissões da Igreja Católica. 

Para estabelecer relações com uma tradição cuja matriz repousa subliminar, porém pujante na sua força mítica fundadora, mesmo sendo do Norte da África, conseguiu permanecer no imaginário do Ocidente com a expansão das civilizações grega e romana. Há toda uma série de equivalências entre esse lastro nutriz de mitos egípcios e a emergência da vida e morte de Jesus. 

A presença de elementos da Região Nordestina foi feita com parcimônia. Somente após a retirada da cruz, conduziram-no em uma rede, levada por carpideiros para o túmulo pertencente a José de Arimateia. Outro elemento é um sol a pino, inclemente, acentuando o desconforto de quem já carrega uma cruz bastante pesada. Em uma atitude de indiferença, queda-se imóvel e escaldante, deixando tudo transparente na sua claridade, imprimindo aos que testemunharam não restar nenhuma dúvida do que estava acontecendo. Por fim algumas letras invertidas, estação I, II, V: os tacos (pedaços de madeira com desenho invertido) são impressos com rolo sobre alguma espécie de papel, então eis a Xilogravura, vinculada sempre às narrativas caudatárias da Idade Média e ambientada na região nordeste, por onde existem mais resíduos do Medievo Português, haja vista, as narrativas de Dona Militana, enveredando pelo sertão, usando a língua portuguesa arcaica e inúmeras tradições chegadas com os Marranos ou Cristãos Novos (o Seridó é cheio desses costumes judaicos), expulsos em 1492 pela intolerante Isabel, a Católica (só se fosse mesmo).

A força de se cumprir uma trajetória, que quase nunca é demandada, mas também não é tão-somente resultado do destino, enquanto o humano é co-partícipe, pois detém o livre arbítrio, mas, mesmo assim insiste no que não lhe concerne e se autoimola em experiências de gritante autossabotagem. Deste modo, recusa-se a seguir o que o coração, assim como sua intuição, lateja em negativas. Desta forma, também esquece os vaticínios dos oráculos interiores e, se consultasse essa pítia residente em regiões abissais, seria inútil, pois quando os homens estão desesperados, persignando-se diante de tais oráculos, “os deuses diriam mentiras” (tradição búdica).

Se for um assinalado, como tantos há, e cada vez mais a cada tempo que passa, como se fosse uma necessidade do Ar do Tempo, a presença vinca sem misericórdia o corpo físico, sobretudo o rosto, a fala, a dentadura, enfim, tudo o que colabora para circunscrever determinados semblantes: magros, enclenques, setemesinha, guenzos. Basta ver o envelhecimento precoce ou outras pessoas que os transeuntes, nas caçadas, imprimem menos idade. E esse apontado com menos idade aparente folga em saber de um não reconhecimento, de já ter o caráter de homem maduro e vivido.

De onde emanam essas ordens interiores que se mostram com insistência, agora, com as redes sociais, muito mais do que antes? Simplesmente porque Psiquê (alma) não hesita em lançar para o Soma o que poderia ser resolvido internamente por meio das forças sanativas advindas do Inconsciente. Todos possuem esses fármacos orgânicos, que aparecem em situações de adversidades. A farmácia encontra-se em alguma parede do Inconsciente. A questão maior é ter o conhecimento para justapor os ladrilhos/remédios, configurando geometrias lançadas para o sangue, sagrando e juntando os fragmentos de ânimo para enfrentar as vicissitudes que a Fortuna nos apresenta sem nossa permissão.

Com efeito, sabemos que coisa difícil é uma aliança incondicional consigo mesmo, realizando as bodas de um matrimônio, de uma harmonia, cuja beleza maior é o amor a si próprio, o que os gregos nominavam Philia, distinto de Ágape (amor aos deuses) e Eros (amor físico).

Acredito que isso deva ter ficado implícito ao longo deste ensaio, por meio da metáfora de um homem feito deus, realizando, qual teatro, o que diz respeito a todos. Onde isso está escrito, ninguém sabe. O certo é que não fica ninguém de fora dessa ciranda sem freios, a qual se fecha em círculos concêntricos.

Quando o jovem príncipe Sidarta Guatama atravessou o portão do palácio onde vivera trancafiado até então, para impedir que contemplasse a rua e seu bulício com sua azáfama de ruídos, faina e desordem, e, por sua vez, compreendesse que a vida não se limitava a um pátio com jardins e animais soltos, logo observou uma dinâmica que o fez riscar e preencher uma hachura, resultado da sobreposição entre três passagens do existir: o envelhecer, a enfermidade e a morte. Entre cada segmento há um tempo com suas responsabilidades, e o medo pulsando anonimamente nas mais íntimas comarcas, de onde não se sabe direito o que pode assomar sem aviso. O certo é que, por uma qualquer janela entreaberta, o soprar do vento conduz consigo determinadas novidades, como se acontecesse com amigos ou vizinhos. Para além de uma não aceitação do que chega sem bater à porta ou telegrama, conjurando a uma ordenação das forças que estão estacionadas nas fortalezas do espírito e da subjetividade, para fazer frente a esses domínios inerentes ao humano enquanto capaz de enfrentar dores e desassossegos não previsíveis.

E buscando o que se fez de tão caro para a purga e a paga vigentes, considerando atalaias imaginárias vigilantes qual alvissareiros, é quando se instala o tempo como “duração” (Bergson), não mais a mensuração das horas do relógio, repousando de instante em instante, em uma inquietude que não colabora com a expectativa do objeto analógico com seus dois ponteiros, arrastando-se no interminável marcar das horas.

Assim sucedeu com o profeta Jesus, que muito provavelmente teve consciência logo nos albores de um menino metido a homem, com seus conhecimentos empíricos ou resultados de um olhar arguto sobre a realidade que o cercava. Mesmo já capaz de ter a sabedoria dos livros pertencentes a seu povo judeu e dominando a eloquência, teria sido um tanto tardio o começo da sua pregação, com trinta anos. A tradição dos Evangelhos diz da importância desse tempo acumulado para o seu ministério junto às gentes que habitavam as terras de onde Jerusalém sempre fora o centro irradiador do comércio e peregrinação dessa região.

Com efeito, nessa idade, fora batizado por seu primo João. Outro acontecimento foi o seu sumiço com doze anos e, depois, encontrado por seus pais no Templo, junto aos doutores, com perfeita retórica de quem a exata consciência tinha do que estava dizendo e debatendo.

Para encerrar este ensaio (diferente do artigo científico, o ensaio analisa e interpreta por meio de argumentos, considerando a visão de quem escreve, sendo que encontramos muitas vezes uma redação visivelmente autoral. Esse gênero permite uma liberdade maior, com ou sem citações, porém cheio de paráfrases ou citações de memórias) é preciso dizer da origem desta forma literária com seus veios da teoria da literatura, bem como de outros sistemas semióticos. Acredito que foram analisadas e interpretadas, a Via Crucis, manuseando categorias analíticas e atinando para o lastro mítico que encerra, inclui e permite decalcar outros discursos, não deixando quedar-se imoto, sobretudo porque O Rabi ousa fundar uma nova retórica moral, uma nova maneira de amar, uma nova maneira de lecionar, com sua adesão maior à caridade, à simplicidade, à amizade.

Enfim, a busca do simples como uma nova forma de vida, vestindo-se simbolicamente com a túnica inconsútil, a que não tem costuras, cerzidos, bordados, nada de enfeites, pode não ser de verdade, mas simbólica, organizada no comportamento, na forma certa de entrar e sair, de auxiliar a quem precisa, quer seja pela Psiqué ou no Soma, exercitando a generosidade, educando as novas gerações. Por fim, a túnica inconsútil simboliza o que se encontra de modesto no imo: símbolos, parábolas, significantes inerentes às práticas religiosas de toda a região Ocidental do planeta, e de além. Sim, mas se você puder e quiser, tem outra saída: leia o Antigo Testamento (os quatro evangelhos e as muitas cartas), como se fosse um manual de etiquetas: respeito com os que sofrem por enfermidades, ajudar aos que passam fome, visitar um prisioneiro, plantar e segar o roçado da viúva, ao acordar cedo, lembrar de Rute respigando, — e decidindo seu destino de viúva, nora de Noemi — nas searas de Booz, jamais desistir, repetir “esta é mais uma a ser ultrapassada, como Ulisses na Odisseia, navegando dez anos a esmo pelo Mediterrâneo”. Tudo que é de experiência e transmuta-se em sabedoria.  Quem tiver ouvidos que ouça, olhos que veja. Sempre foi assim.

Porque, agora, vemos por espelho em enigma; mas, então, veremos face a face; agora, agora conheço em parte, mas, então conhecerei como sou conhecido.

Agora, pois permanecem a fé, a esperança e o amor, estas três; mas a maior destas é o amor.

Coríntios, 12:13



ADDENDA

A Tribuna do Norte, de 18.04.2013, noticiou o vernissage de uma exposição na Galeria Newton, na Fundação José Augusto: “A paixão segundo Iaperi Araújo”. Provavelmente esse era o tema da Via Sacra sistematicamente organizado. Falo desse modo porque o artista sempre retratou temas vinculados à tradição da Igreja Católica, como, por exemplo, a bela “Deposição da cruz”, com um mínimo de elementos, simplificando até onde pôde o ícone primevo e mais importante das pinturas de natureza religiosa, buscando uma singular verossimilhança ao pranto e ao luto pela morte de Jesus.



Região do Médio Oeste Potiguar Recebeu o Cariri Cangaço Oeste Potiguar.

Foi realizado, no período de 22 a 25 de maio de 2025, o Cariri Cangaço Oeste Potiguar. O evento de cunho histórico e cultural aconteceu em quatro municípios do Médio Oeste Potiguar — Patu, Martins, Lucrécia e Antônio Martins. Reunindo dezenas de pesquisadores, historiadores, escritores e estudiosos de nove estados brasileiros, o evento é considerado um dos maiores e mais respeitados fóruns de debates e estudos sobre o cangaço, coronelismo, misticismo, messianismo, além das artes e culturas do sertão nordestino. 

Como convidado especial, esteve presente Manuel Dantas Suassuna, filho do grande escritor Ariano Suassuna. A abertura oficial do Cariri Cangaço Oeste Potiguar foi realizada na última quinta-feira, 22/05, na cidade de Martins, com a participação dos prefeitos e representantes dos quatro municípios participantes, além de convidados de várias regiões do Brasil. A organização do evento, conduzida pelo curador Manoel Severo Barbosa, entregou várias comendas Mérito Cultural Cariri Cangaço a personalidades do município de Martins, além da posse de novos membros no Conselho Cariri Cangaço. Na ocasião, foi proferida palestra com o tema “Ecos de um Rifle – Uma história de Jesuíno Brilhante”, pelo Tenente Coronel da PM do Rio Grande do Norte, Marcelo Litwak. Na sexta-feira, 23 de maio, a programação aconteceu na cidade de Patu. A partir das 8h da manhã, houve uma visita técnica à Casa de Pedra do Cangaceiro Jesuíno Brilhante, localizada no Sítio Cajueiro, Zona Rural de Patu-RN, onde foi instalada uma placa oficial como Lugar de Memória. Às 11h, foi realizada uma solenidade no auditório do Campus Avançado de Patu, com a instalação da mesa de autoridades, entrega da comenda Mérito Cultural Cariri Cangaço e posse de um novo membro no Conselho Cariri Cangaço — o Professor Aluísio Dutra de Oliveira. Manuel Dantas Suassuna, filho de Ariano Suassuna, foi agraciado com uma comenda especial pelos 180 anos do Cangaceiro Patuense Jesuíno Brilhante, ao som da cantiga de Jesuíno, música de autoria de Ariano Suassuna e Capiba. Também ocorreu uma mesa redonda com escritores e pesquisadores como Kydelmir Dantas (Nova Floresta-PB), Luma Holanda (João Pessoa) e Marcelo Litwak (Natal RN), com o tema “A Saga do Cangaceiro Jesuíno Brilhante”. À tarde, a programação seguiu na cidade de Lucrécia-RN, no Museu Fazenda Castelo, com entrega de comendas, roda de conversa “Mulheres”, lançamentos de livros, visita técnica ao lugar de memória “A Cruz dos Três Heróis” e encerramento com uma visita ao espaço turístico-cultural com vista ao Açude de Lucrécia. À noite, houve um programa cultural e festivo no Café Jesuíno, em Patu. No dia 24 de maio de 2025, a programação foi realizada em Martins, com visita à praça da Matriz e à feira de artesanato local. Foram realizadas conferências no espaço do mercado público com os seguintes temas: “A passagem de Lampião pelas Terras de Martins”, proferida por Dannylo Maia, e “A Origem e a Saga dos Limões – Os Inimigos de Jesuíno Brilhante”, apresentada pelo pesquisador Rodolfo Maia. Também houve o lançamento dos seguintes livros: 1. Moreno e Durvinha - Sangue, amor e fuga no Cangaço — Autor: João de Sousa Lima; 2. Flor do Mandacaru - O amor em meio ao Cangaço — Autor: Teimoso Zen; 3. Ser Escravo na Serra de Martins — Autor: Expedito Neto; 4. Traições no Cangaço — Autor: Jinsena; 5. As façanhas do cangaceiro Antônio Silvino, "O Rifle de Ouro" — Autor: Julierme Wanderley; 6. Lampeão no Ceará — Organização: Adriano Carvalho; 7. Histórias de Minha Vida — Autora: Elane Marques; 8. A Visita do Imperador a Feira de Santana — Cordel: Lucas da Feira na Escola — Saberes no Cangaço — Autor: Augusto Spinola Júnior; 9. Tião da Jaramataia — Um Cangaceiro Afamado — Autor: Reinaldo Teixeira; 10. A Odisseia de José Américo de Almeida na Revolta de Princesa — Autor: José Tavares de Araújo Neto; 11. As Pias das Panelas — Cordel, Autor: Manoel Belarmino. À tarde, a programação seguiu na cidade de Antônio Martins, antiga Boa Esperança. Houve um desfile pelas principais ruas da cidade, com cavalaria, banda de música, bugueiros, caravana do Cariri Cangaço e estudantes locais. No Pátio da Igreja de Santo Antônio, no centro de Antônio Martins, foram realizadas várias atividades: entrega de Mérito Cultural Cariri Cangaço, o Hino do Município entoado pelas crianças violinistas, uma peça teatral intitulada “Cenário da Invasão de Virgulino Ferreira da Silva”, além de uma conferência de campo e lançamento do livro A Invasão de Lampião a Antônio Martins em 1927, do pesquisador e escritor Luan Alendes. Também foi instalada uma placa na Igreja de Santo Antônio, consagrando o local como “Lugar de Memória Cariri Cangaço”.
À noite, a programação aconteceu no Mercado Público Municipal de Martins, com a solenidade da ABLAC — Academia Brasileira de Letras e Artes do Cangaço, que promoveu a posse de novos acadêmicos: Aluísio Dutra de Oliveira, Claudionor Júnior, Luan Alendes, José Bezerra de Assis, Dannylo Maia, Rodolfo Maia, Gabriel Mariz, Romualdo Carneiro e Idemberg Sena. No domingo, a programação do Cariri Cangaço Oeste Potiguar foi encerrada com uma visita ao Santuário do Lima, na cidade de Patu-RN.A próxima edição do Cariri Cangaço será realizada na cidade de Piranhas-AL, na Grota do Angico, confirmando o slogan: “Cariri Cangaço — Território de Grandes Encontros”.







terça-feira, 22 de abril de 2025

Cidade de Felipe Guerra será palco do “IV Seminário Cangaço – Coronéis e Cangaceiros”, promovido pela Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC.

 



O evento acontecerá nos dias 25 e 26 de abril de 2025 (Sexta e Sábado), no Auditório da Secretaria Municipal de Assistência Social de Felipe Guerra/RN, e tem o apoio da prefeitura da cidade.

Os objetivos do IV Seminário Cangaço Felipe Guerra são:

• Fomentar os estudos sobre a memória temática do município de Felipe Guerra/RN em relação ao Cangaço;

• Incentivar o turismo regional atuando como referências as belezas naturais, a cultura e a história do Cangaço.

Para o evento é esperado um público de aproximadamente 100 pessoas de Felipe Guerra, Mossoró e de cidades vizinhas.

O seminário que está em sua quarta edição, contará com mesas redondas, palestras, sessões de filmes e demais atividades relacionadas ao Cangaço, tudo sob tutela de palestrantes e estudiosos renomados.

VEJA PROGRAMAÇÃO

• Mesa 1 – 25/04/2025 das 09h às 11h

Tema: República dos Coronéis do Oeste potiguar e do Cariri Cearense Palestrantes:

– Galbi Saldanha (Natal/RN)

– Honório de Medeiros (Natal/RN)

– Bosco André (Missão Velha/CE)

Mediador: Geraldo Maia

Mesa 2 – Sessão de filme das 15h às 17h

Tema: Assim morreu Lampião: Entrevista com Jairo Luiz.

Mesa de debate: Coordenação Lemuel Rodrigues e Direção da SBEC

Mesa 3 – das 19h às 21h:

Tema: Coronéis e Cangaceiros Palestrantes:

– Israel Maria dos Santos Segundo (Natal/RN)

– Luan Alendes Ferreira Batista (Antônio Martins/RN)

– João Batista Souto (Belo Horizonte/MG)

– Mediador: Luiz Agnaldo

ENCERRAMENTO NO DIA 26/04/2025:

Às 07h – Visita Técnica aos Lugares de Memória.

Coordenação: Adailton Alves (Secretário da SEDETUR) 12h – Almoço.

Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço tem sede no Museu Histórico “Lauro da Escóssia”, de Mossoró e foi fundada em 13 de junho de 1993.

Tem como diretores o professor e estudioso sobre o tema Lemuel Rodrigues e Geraldo Maia.

Informações @sbeccangaco


Tudo que é importante para você é importante para o Caderno Potiguar

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terça-feira, 8 de abril de 2025

Especial: Napoleão Nunes: metáforas do efêmero embelezam a realidade.

Por Márcio Lima Dantas. 



Napoleão Nunes (Natal, 1978), no seu ofício de artista visual, exercitou uma  variedade de técnicas, tanto no uso da pincelada quanto na apreensão de eventual tema,  expressando toda uma gama de multifária capacidade de rubricar a apreensão de uma  enormidade de objetos, animais, autoestradas das cidades, nu feminino, escultura em grés  cerâmico vidrado, pássaros nas folhagens e rosto de criança. O escopo que serve de substrato para a borboleta evidenciar sua breve vida como  Metáfora nos conduz ao símbolo da transformação. Sua vida é uma sucessão de quatro  etapas: ovo, larva, pupa (crisálida) e imago (adulta). O fato de se transformar e ficar presa  durante algum tempo, sem guarida, sem substância de maior função vital, sem companhia,  sem conselho de mãe, deixa-a angustiada para se desvencilhar desse cárcere. Com efeito, a borboleta vem a se tornar um símbolo detentor da noção de  transformação, de um vir a ser, do que aguarda, do efêmero da natureza que vem a se  renovar, assim como o círculo solar e o círculo lunar. Dessa feita, transforma-se em uma  bela Metáfora de tudo o que flui e transmuta-se, sendo da natureza, estando aí na  realidade, nos canteiros que dividem o meio da rua, nos jardins das casas modestas dos  subúrbios, nas herdades nas quais habitam os abastados. Em assim sendo, a Metáfora da beleza das borboletas, variegadas em cores  múltiplas, desenhos multicoloridos, outorga o advento de um pulsar espiritual dos mais  marcantes e mais intensamente emergindo do que emana também de uma simbologia que  registra o recomeço das coisas, do dia, dos relacionamentos interpessoais. Por isso que  seria bom evocar a pupa (crisálida) e o imago (adulto).

O certo é que todas as culturas  reverenciaram a borboleta como observada e cultuada, conduzindo a uma espécie de  persignação, em um louvor ao recomeço, às boas energias, alternando-se, em uma  efeméride em que o sol rebrilha a cada dia, iluminando cada borboleta. Sucede que as tomadas de longe (Orla de Cabo Branco), rio com uma ponte, sendo  uma ilha separando as duas margens, a praia de Ponta Negra, a praia de Cabo Branco, as  aves (Galo de Campina), o cardume de peixes, o cachorro, as mulheres nuas, não passam  de puro pretexto para exercitar a capacidade de captar a luz de um dia no qual esplende o  sol, clareando, de perto ou de longe, a amplitude da transparência plena de Apolo a  demonstrar seu poder sanativo.

Por enfim, buscamos demonstrar ao longo deste texto que a multiplicidade  encontrada na obra de Napoleão Nunes referenda o fato de o artista não está em busca de  um estilo, uma dicção, uma gramática, que possa ser sua assinatura e o contemplador de  longe já possa afirmar que “aquela tela pertence a Napoleão Nunes”. 

Na verdade, a quantidade de técnicas e temas é tão grande que ninguém poderia chancelar esse quadro com borboletas e flores ou a orquídea entre folhagens verdes como  inerente à rubrica do artista. De jeito qualidade se poderia deixar de salientar sua verve,  sua capacidade, sua confiança na sintaxe do seu domínio do pictórico. O que sucede com  Napoleão Nunes é tão-somente um processo de Metalinguagem, ou seja, quando o código  se volta sobre si mesmo. Ao invés de tratar de outro objeto, de outro conceito, de outra  comarca, seja lá o que for, menos o código se voltar sobre si mesmo. Quero dizer acerca do conjunto que essa série circunscreve, que não foi por acaso,  mas muito mais que o expressivo pictórico colocado em evidência. Quer dizer, o artista  coloca o código para falar dele mesmo. Estamos tratando da Metalinguagem (esse  conceito vem da Linguística, estou me apropriando e transferindo suas categorias de  análise para a arte pictórica). Vejamos por que: a obsessão da borboleta pousar sobre  várias cores e formas, assim como o lugar de repouso, as flores e seu colorido, normal ou  dobradas; e, finalmente, as exquises orquídeas e sua opulenta maneira de estar nos jardins  ou no meio do mato. Vejamos como essa gramática funciona. Se a pintura ou o desenho busca não se  voltar sobre algum aspecto da realidade, em uma atitude de realismo muito próximo aos elementos que estão ao redor do pintor, mas se compraz em pintar pintando. Por exemplo,  um pintor cujo tema que consta na tela é alguém que pinta uma paisagem ou elabora um  retrato. No caso de Napoleão Nunes, são inúmeras as pinturas de borboletas sobre uma  flor, ou orquídeas. Vamos nos deter somente nessas três imagens, bem claro que o artista  variou tanto na forma quanto na técnica. Eis que encontramos mulheres nuas, Orla de  Cabo Branco, peixes, rosto de criança, paisagens rurais.

 Essa invariante, da borboleta sobre a flor, longe de ser uma obsessão do artista,  desenvolve-se como o fulcro de onde se dissipa aquela que vai ser a comarca da  Metalinguagem. É o cerne de onde o artista, com suas pinceladas espessas, com suas pinceladas em forma de pequenos retângulos miúdos, busca extrair, por meio de uma  justaposição, o efeito tanto da cor quanto da luz solar. Bem diferente das pinceladas mais suaves da pintura acadêmica, buscando retratar  o real do jeito que ele se apresenta e não distorcendo (no bom sentido) em nada, como se  fosse um retrato ou se pintasse por meio da fotografia. Para encerrar, o que chamei aqui de Metalinguagem é um se deter de um (código = pintura) e que se ousa ficar sobre ele mesmo (código = fazer/fazendo uma borboleta  sobre uma flor). Sucede dessa maneira: como se o teatro discorresse acerca do teatro.
A  quantidade do que falei, só pode ser por conta de uma coisa: o artista busca, através de  um exercício contínuo que não chega a enfadar, pelo contrário, se esmera, com as pinceladas consistentes, com encorpamento de tinta, aqui ou acolá exercitando uma  sombra ou outra. Com efeito, nenhum estilo histórico poderia ser mais adequado ao exercício de  uma pintura que se volta sobre si mesma: o Expressionismo tão peculiar de Napoleão  Nunes. Mesmo o Expressionismo nos seus primórdios, no início do século XX, esse artista ainda consegue chantar diferenças, mesmo porque o nosso sol é bastante diferente  do hemisfério norte, cuja luminosidade resplende uma transparência que ressalta as  nossas cores e nuances. Por fim, gostaria de dizer que a Metalinguagem – o artista  pintando os mesmos temas – nos conduziu a pensar dessa maneira. Há uma mensagem que evidencia ela mesma, ou seja, a insistência de fixar sobre  um mesmo tema, como se necessitasse aprender a arte do Expressionismo e o que  encontrou de melhor para o prazer do domínio foram apenas três elementos: orquídea,  beija-flor e qualquer espécie de flor.