O tempo farejou a fábula
contaminou-a. Projetou-a
talhada à sua própria imagem.
Henriqueta Lisboa
Maria Antônia do Santíssimo (São Vicente, 1890-1986) é uma artista visual que se destaca por tudo que a rodeia, quer seja sua biografia, quer diga respeito diretamente à sua obra. Espécie de Midas-mulher: tudo que toca vem a ser objeto de arte. Sua aura circunscreve um perímetro que lança vetores de pesquisa em direção a vários domínios. Talvez, antes de buscar ferramentas que conduzam a explicar essa obra extremamente singular, fosse interessante tomar algumas notas que dizem respeito à sua vida de dona de casa responsável pelos trabalhos do lar e da família. Pois bem, o certo é que, além de pintar desde os nove anos, também era costureira e bordadeira, tarefas desde sempre entregue às mulheres. Como podemos ver, a precocidade com a arte de pintar encaminha o espectador ou aquele que admira esse trabalho sem entender muitas vezes do que se trata, pois a dimensão estética repousa seus signos ou retóricas muito além do que se avizinha. Ou, quando em consulta de oráculos interiores, nada há de mais concreto, quer seja operando a mímesis, ou seja, a transfiguração por meio de um olhar, de um semblante, de qualquer quasar ou de um andamento tardo. E se for indolente, também não vai mudar muito não.
O que de precoce houve, com seus nove anos, era o anúncio do que se configuraria na mocinha e, depois, na mulher feita. Quando isso sucede no fenômeno artístico, está traçada uma rodagem sem volta.
Seu marido vendia, nas feiras, os forros para baús, assim como revestimento de oratórios de madeira ou outra espécie, que eram nichos abertos como se fossem janelinhas no quarto do casal. Via de regra eram os santos.
Há que dizer da produção de pinturas com anilina feitas em papel almaço ou cartolina, e os pincéis eram de palito de coqueiro amassados na ponta. Esse material rústico era suporte e manuseado por dedos ávidos para pintar o revestimento de baús ou oratórios. Ou seja, por incrível que pareça, tinham um objetivo funcional, servindo de peça para adornar alguns poucos móveis (baús) ou nichos (oratórios) integrantes da simplicidade da casa de morada. A obra se reveste de uma aura didática. Nunca como ingênuos ou “malfeitos”, mas como um impreciso que não sei dizer o jeito, a posição ou o minério de que é constituído. Só sei dizer de algo que me habita, e vem à tona do meu inconsciente não somente para assomar com seu bafejo, mas como fármaco sanativo de dores de amores que não se cumprem. Quase sempre o tema é bilateral, como se quisesse harmonizar nosso espírito, numa espécie de balança em cujos pratos repousam diferentes figuras e cores. Mas estão exatamente no prumo. Buscar nomes seria inútil e grande perda de tempo, pois há de se compreender que nem tudo o que se sente vem ou aguarda, por costume sua, letra e respectiva nominata. Apenas nos concerne a insistência e uma teimosia sem fim para classificar em qual conjunto de coisas está incluso aquilo ou aquele fenômeno.
Ora, Iaperi, Iaponi e Manxa (escultura em madeira ou baixo-relevo em cimento aparente). Esse naipe de ases de copas forma uma espécie de sistema de artes visuais ingênua no Rio Grande do Norte, tendo sido Maria do Santíssimo o mito essencial que teria fundado essa escola ou sistema, alastrando-se para pósteros, sendo hoje em dia o Nordeste um dos lugares que mais detêm, em quantidade e qualidade, esse pujante estilo que se caracteriza por não ter nenhuma preocupação com as regras que arte acadêmica tem sempre em mente, tais como a perspectiva, o sombreamento ou a técnica que remete a uma linha de continuidade surgida por volta da Idade Média, sendo a perspectiva surgida no Renascimento Italiano (séc. XV). Agora, como inquirir, dizer a toda a voz os pendores que residem de tanta espera e vêm a ser uma parábola, com o intuito de clarear determinada situação ou fenômeno, refulgir por meio de uma palavra, de uma oração, de um período eivado de uma retórica ou inclinação para as forças do bem que nos circundam qual nimbo, assim feito uma auréola em uma presentificação de uma simbólica na qual repousam as chamadas coisas do espírito (não como representante de firmas que era). Bem simples esse câmbio. Bem simples? Nem tanto assim, haja vista o quão necessária deve ser a imersão abissal em si, banhando-se nas profundezas de lagos imotos, com pouca vegetação. Voltemos a Maria do Santíssimo. Fica difícil negar seu pendor de mulher assinalada para chantar no mais ermo sertão, distante léguas do Seridó, e, em gestos ingênuos, iniciara a arte de pintar com papel almaço, de embrulho e anilina, sendo o pincel um palito de coqueiro amassado na ponta. Bastante complexo é explicar, por meio da História da Arte, essas artérias pulsáteis, como se fosse uma matemática, cuja operação principal é a arte de somar.
No assoalho por onde pisou, cultivando seu pomar e seu jardim, o delinear dos objetos assomava aos seus olhos em atitude de franzir os olhos para melhor amolar o silêncio adormecido no mais profundo das regiões pelágicas que integram todos os humanos. Comportava-se assim, não pelo uso da razão ou por ter ouvido falar, mas porque látegos açoitavam Cérberos de guarda, ali chantados para não deixar emergir, em direção às vísceras, o que de linguagem é fúlgíldo, é transparente e deixa soletrar as sílabas de um alfabeto de símbolos cuja pertença organiza terminologias explicadoras do que vem a ser fenômenos vinculados à consciência justapostas aos domínios da razão. O certo é que por meandros estreitos, qual córregos lambendo barrancas em dias de nebrina fraca, assim filetes de águas se infiltravam com a vontade de se transformar naquilo que ocupava mãos, dedos, sentada na calçada da erma cidade sertão adentro, no Seridó, sentindo a quentura do vento onipresente ao pé da Serra de Santana. Com efeito, uma força interior lançava-a com determinação e plena de ânimo, como se fosse um impulso que ela jamais soube de onde vinha, sabia que chegava através de frestas pelas portas ou janelas, sem nunca ter encontrado a resposta. Sentia que sabia que outros e outras não estavam submetidos a essa mobilidade. Isso posto, continuava fazendo a costura, o bordado, a pintura. E se não aplacava de tudo, conseguia que as pernas tivessem menos movimento. Costurar e bordar resguardam um parentesco com uma matemática que a agulha e a linha furam o tecido e sabem os caminhos da fazenda cortada e suas medidas, porém, pintar é de um outro quilate, segue lógica espontânea e detém organizar determinado tema dentro do comprimento e da largura. Esse pathos, a estimular sentimentos de melancolia, júbilo ou introspecção, convida o espectador a chafurdar dentro de si alguma espécie de signo que se encontra estampado no trabalho elevado aqui como artístico. Eis aqui como essa engendrava um meio de vida, eis aqui como se aguardava o apurado.
Já é hora de caminhar para o fim. O crepúsculo vespertino ilumina, após um ameno resto de um dia que nos faz evocar todo o bestiário de animais do terreiro: aves mansas, burrinhos, pavões, rosas dobradas, fachadas amenas, com quadrículas. Como se houvesse uma consciência maior a determinar o uso do espaço através de uma amplitude maior. Embora viesse de família extremamente humilde, sem ter nada estudado em escolas formais, nunca perdeu, ao compor suas telas, um enorme senso da composição e do equilíbrio dos elementos a plasmar suas telas. Grande parte das telas detém uma perfeita simetria bilateral familiarizando-se com esse recorte ao cortar no meio. Mas muito mais do que uma velha senhora introspectiva em seu canto, pintando sobre uma tábua no colo, arrodeada de crianças, voltava sempre ao mesmo tema.
Nenhum comentário:
Postar um comentário