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sexta-feira, 30 de maio de 2025

Especial: Maria do Santíssimo e o seu caleidoscópio das coisas modestas

O tempo farejou a fábula 

contaminou-a. Projetou-a 

talhada à sua própria imagem. 

Henriqueta Lisboa 




Maria Antônia do Santíssimo (São Vicente, 1890-1986) é uma artista visual que  se destaca por tudo que a rodeia, quer seja sua biografia, quer diga respeito diretamente à  sua obra. Espécie de Midas-mulher: tudo que toca vem a ser objeto de arte. Sua aura  circunscreve um perímetro que lança vetores de pesquisa em direção a vários domínios.  Talvez, antes de buscar ferramentas que conduzam a explicar essa obra extremamente  singular, fosse interessante tomar algumas notas que dizem respeito à sua vida de dona  de casa responsável pelos trabalhos do lar e da família. Pois bem, o certo é que, além de pintar desde os nove anos, também era costureira  e bordadeira, tarefas desde sempre entregue às mulheres. Como podemos ver, a  precocidade com a arte de pintar encaminha o espectador ou aquele que admira esse  trabalho sem entender muitas vezes do que se trata, pois a dimensão estética repousa seus  signos ou retóricas muito além do que se avizinha. Ou, quando em consulta de oráculos  interiores, nada há de mais concreto, quer seja operando a mímesis, ou seja, a  transfiguração por meio de um olhar, de um semblante, de qualquer quasar ou de um  andamento tardo. E se for indolente, também não vai mudar muito não.  


O que de precoce houve, com seus nove anos, era o anúncio do que se configuraria  na mocinha e, depois, na mulher feita. Quando isso sucede no fenômeno artístico, está  traçada uma rodagem sem volta.  

Seu marido vendia, nas feiras, os forros para baús, assim como revestimento de  oratórios de madeira ou outra espécie, que eram nichos abertos como se fossem janelinhas  no quarto do casal. Via de regra eram os santos. 

Há que dizer da produção de pinturas com anilina feitas em papel almaço ou  cartolina, e os pincéis eram de palito de coqueiro amassados na ponta. Esse material rústico era suporte e manuseado por dedos ávidos para pintar o revestimento de baús ou oratórios. Ou seja, por incrível que pareça, tinham um objetivo funcional, servindo de  peça para adornar alguns poucos móveis (baús) ou nichos (oratórios) integrantes da  simplicidade da casa de morada. A obra se reveste de uma aura didática. Nunca como ingênuos ou “malfeitos”, mas  como um impreciso que não sei dizer o jeito, a posição ou o minério de que é constituído. Só sei dizer de algo que me habita, e vem à tona do meu inconsciente não somente para  assomar com seu bafejo, mas como fármaco sanativo de dores de amores que não se  cumprem. Quase sempre o tema é bilateral, como se quisesse harmonizar nosso espírito,  numa espécie de balança em cujos pratos repousam diferentes figuras e cores. Mas estão  exatamente no prumo. Buscar nomes seria inútil e grande perda de tempo, pois há de se compreender que nem tudo o que se sente vem ou aguarda, por costume sua, letra e  respectiva nominata. Apenas nos concerne a insistência e uma teimosia sem fim para  classificar em qual conjunto de coisas está incluso aquilo ou aquele fenômeno. 


Envolvida com as lides domésticas, ficou cerca de 50 anos sem pintar. A mudança  para o que sempre fora no seu íntimo não lhe deu muito trabalho, pois seus rústicos  artefatos, seus suportes de papel almaço, a anilina e os pincéis feitos de palito de coqueiro estavam à mostra, bastava ir ao monturo e recolher coisas de somenos importância para  quem ousara dar uma parada. A arte de pintar deu-se por causa de seus contraparentes  apelarem para que retomasse os trabalhos relacionados ao que ainda não era concebido  como arte. 

Ora, Iaperi, Iaponi e Manxa (escultura em madeira ou baixo-relevo em cimento  aparente). Esse naipe de ases de copas forma uma espécie de sistema de artes visuais  ingênua no Rio Grande do Norte, tendo sido Maria do Santíssimo o mito essencial que  teria fundado essa escola ou sistema, alastrando-se para pósteros, sendo hoje em dia o  Nordeste um dos lugares que mais detêm, em quantidade e qualidade, esse pujante estilo  que se caracteriza por não ter nenhuma preocupação com as regras que arte acadêmica  tem sempre em mente, tais como a perspectiva, o sombreamento ou a técnica que remete  a uma linha de continuidade surgida por volta da Idade Média, sendo a perspectiva surgida  no Renascimento Italiano (séc. XV). Agora, como inquirir, dizer a toda a voz os pendores que residem de tanta espera  e vêm a ser uma parábola, com o intuito de clarear determinada situação ou fenômeno,  refulgir por meio de uma palavra, de uma oração, de um período eivado de uma retórica  ou inclinação para as forças do bem que nos circundam qual nimbo, assim feito uma  auréola em uma presentificação de uma simbólica na qual repousam as chamadas coisas  do espírito (não como representante de firmas que era). Bem simples esse câmbio. Bem  simples? Nem tanto assim, haja vista o quão necessária deve ser a imersão abissal em si,  banhando-se nas profundezas de lagos imotos, com pouca vegetação. Voltemos a Maria do Santíssimo. Fica difícil negar seu pendor de mulher  assinalada para chantar no mais ermo sertão, distante léguas do Seridó, e, em gestos  ingênuos, iniciara a arte de pintar com papel almaço, de embrulho e anilina, sendo o pincel  um palito de coqueiro amassado na ponta. Bastante complexo é explicar, por meio da  História da Arte, essas artérias pulsáteis, como se fosse uma matemática, cuja operação  principal é a arte de somar.  


No assoalho por onde pisou, cultivando seu pomar e seu jardim, o delinear dos  objetos assomava aos seus olhos em atitude de franzir os olhos para melhor amolar o  silêncio adormecido no mais profundo das regiões pelágicas que integram todos os  humanos.  Comportava-se assim, não pelo uso da razão ou por ter ouvido falar, mas porque  látegos açoitavam Cérberos de guarda, ali chantados para não deixar emergir, em direção  às vísceras, o que de linguagem é fúlgíldo, é transparente e deixa soletrar as sílabas de  um alfabeto de símbolos cuja pertença organiza terminologias explicadoras do que vem  a ser fenômenos vinculados à consciência justapostas aos domínios da razão. O certo é que por meandros estreitos, qual córregos lambendo barrancas em dias  de nebrina fraca, assim filetes de águas se infiltravam com a vontade de se transformar  naquilo que ocupava mãos, dedos, sentada na calçada da erma cidade sertão adentro, no  Seridó, sentindo a quentura do vento onipresente ao pé da Serra de Santana. Com efeito, uma força interior lançava-a com determinação e plena de ânimo,  como se fosse um impulso que ela jamais soube de onde vinha, sabia que chegava através  de frestas pelas portas ou janelas, sem nunca ter encontrado a resposta. Sentia que sabia que outros e outras não estavam submetidos a essa mobilidade. Isso posto, continuava  fazendo a costura, o bordado, a pintura. E se não aplacava de tudo, conseguia que as  pernas tivessem menos movimento. Costurar e bordar resguardam um parentesco com uma matemática que a agulha  e a linha furam o tecido e sabem os caminhos da fazenda cortada e suas medidas, porém,  pintar é de um outro quilate, segue lógica espontânea e detém organizar determinado tema  dentro do comprimento e da largura. Esse pathos, a estimular sentimentos de melancolia,  júbilo ou introspecção, convida o espectador a chafurdar dentro de si alguma espécie de  signo que se encontra estampado no trabalho elevado aqui como artístico. Eis aqui como  essa engendrava um meio de vida, eis aqui como se aguardava o apurado. 


E com destreza e inquietude compreendem o que de estético houver em algum  objeto, não apontam, com os olhos, que aquilo é inacreditável, mas pertence a uma outra  forma de conceber a realidade como acréscimo de ou de incorporar como fármaco  sanativo para nosotros que consideramos o fato de sofrer como integrante da existência. Quero dizer dessa sinceridade na obra de que era de parente de sangue dos dois  eminentes artistas do Rio Grande do Norte. Iaperi e Iaponi nada devem a ninguém.  Apenas quedam-se como predecessores com seus marcos sossegos fincados no centro das  cidades. Será que foi de graça que ergueram um obelisco na chamada Rua Velha? 

Já é hora de caminhar para o fim. O crepúsculo vespertino ilumina, após um  ameno resto de um dia que nos faz evocar todo o bestiário de animais do terreiro: aves  mansas, burrinhos, pavões, rosas dobradas, fachadas amenas, com quadrículas. Como se  houvesse uma consciência maior a determinar o uso do espaço através de uma amplitude  maior. Embora viesse de família extremamente humilde, sem ter nada estudado em  escolas formais, nunca perdeu, ao compor suas telas, um enorme senso da composição e  do equilíbrio dos elementos a plasmar suas telas. Grande parte das telas detém uma  perfeita simetria bilateral familiarizando-se com esse recorte ao cortar no meio. Mas muito mais do que uma velha senhora introspectiva em seu canto, pintando  sobre uma tábua no colo, arrodeada de crianças, voltava sempre ao mesmo tema. 




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