Ângela
Almeida: resignificando o sertão por meio da arte
Por
Márcio de Lima Dantas
Professor
de Literatura Portuguesa da UFRN
Ângela
Almeida (22.06.1956) é uma das mais originais artistas plásticas do Rio Grande
do Norte. Nascida em Mossoró, mas estabelecida em Natal, onde é professora
universitária. De temperamento discreto, contudo sempre simpática e gentil;
estudiosa, parece que, como Fernando Pessoa, resolveu dedicar sua vida às
coisas do espírito. Tem uma tese de doutorado muito interessante sobre a
estética do cangaço.
Buscando
nas suas composições uma harmonia de cores das massas cromáticas, suas telas
reafirmam o entendimento que uma pintura não se conforma como representação da
realidade, mas que uma tela é um construto humano que se contrapõe ao que nos
entorna. Ou seja, compreender que a arte é uma forma outra de conhecimento, na
medida que se constitui desde sempre como
um outro barato. Nunca maneiro, como se diz hoje em dia, mas como contundente
crítica à realidade e suas vicissitudes, simbolizada pela Roda na Vida, girando
inexoravelmente, fazendo crer a quem quer enxergar, ou aceitar, que tudo é
impermanente. Dololoroso? Não, eis a natural lógica das coisas que conduzem a
uma harmonia estendida a todos os sencientes. Quem haverá de ficar
imune/impune?
O
suporte dos seus trabalhos, via de regra, é o papel alemão hahnemule 300g e
pigmentos naturais franceses, demonstrando uma exigência que não passa pela
vaidade, mas pelo que deseja concretizar nas formas que habitam seu imo (todo
artista tem suas idiossincrasias, como se fosse espécie de cismas: somente uma
maneira expressará com propriedade o que lhe inquieta e aplaca/sana aquilo que
quer sair em forma de arte, quer dizer, o que lhe é hiância e somente por meio
da arte um eventual equilíbrio se instala).
Então,
consoante o método de trabalho do artista somente determinados tipos de materiais
permitirão que expresse o Imaginário, quase sempre povoado por símbolos que
estão presentes no Sertão do Nordeste. A compreensão de Guimarães Rosa, ao
dizer “que o sertão é o mundo”, quer dizer, uma retomado do étimo da palavra,
que já existia em Portugal desde seus primórdios (sertão era o interior do
país, tudo que não estava ao redor da corte: des-sertão =desertão). Isso veio
para a Colônia. Litoral habitado pelo colonizador e sertão por fazendeiros e
índios.
Isso
mesmo, o mito obsessional de Ângela Almeida é o Sertão, e que vai se expressar
por meio de uma multiplicidade de ângulos, sempre tendo em tendo em conta que o
interior do estado não quedou-se paralisado no tempo. Guimarães Rosa resignificou
esse estereótipo das terras quentes habitadas outrora pelas etnias Tarayrius (uns
chamam de Tapuias), alteradas, nada é imóvel, pela política e por algo mais
abstrato, como o “espírito da época”. Transformando não só a paisagem, seu
bioma, mas as formas de olhar o mundo, sentir e agir, diferentes de seus
antepassados. Vejamos o que o escritor de “Grande sertão”: veredas diz: A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai
do sertão é tomando conta dele a dentro...Agora perdi. Estou preso. Mudei para
adiante! Ora, sertão não é um lugar no mapa da geografia, mas um lugar
mental inerente a todo ser humano.
Com
efeito, creio que é isso que a artista consciente ou inconscientemente busca
por diversos meios exarar nas múltiplas formas de expressões: pintura,
colagens, intervenções sobre fotografias.
Gostaria
de chamar atenção sobre um aspecto que caracteriza o seu precioso trabalho. A
inovação ao exprimir pictoricamente elementos do Imaginário Nordestino,
refratando o pitoresco, o estereótipo e o caricatural, buscando uma releitura
na qual o espaço nordestino deixa de ser uma região geográfica determinada,
para vir a se tornar um fornecedor de pretextos para elaboração do seu
trabalho, sempre buscando formas originais que elevem a iconografia da região
ao valor de universalidade que toda obra de arte de qualidade deve deter. Sim,
onde você pisar sobre a terra estará pisando sobre uma chão árido, do ponto de
vista metafísico, ao humano, na medida em que nossa percentagem de controle
sobre o que nos sucede, quase sempre é exígua. Embora detentores do livre
arbítrio.
Eis
um belo vaqueiro, identificado como tipo da região apenas por meios das suas
vestimentas. Predomina um efeito cromático que imprime à tela equilíbrio e
harmonia na sua simetria bilateral, retratando a figura de maneira plana, com
basicamente duas cores: o ocre e o azul. Curiosamente as cores que no
Imaginário representam eventuais, talvez buscadas, acordo entre céu e terra,
entre realidade e imaginação, entre carne e espírito.
Quando
trabalha com a figura humana, constatamos um grave silêncio no semblante, que
não se lança para a indiferença, mas para uma gravidade que remete ao sóbrio,
sem deixar de transparecer uma certa melancolia resignada, bem próprio dos que
estão acostumados a não representar na vida social. Os autênticos, que ousam
ser o que são face a uma sociedade que demanda mais e mais ser/ter o que chamam
de “felicidade”.
Eis
o trabalho original de franca e farta inspiração de Ângela Almeida. Uma artista
que tem a exata consciência do que elabora: obras detentoras de um requinte
técnico e de grande inspiração. Só para reforçar o que discorri acima, de
Oswaldo Lamartine: Cada vivente tem o seu
sertão. Para uns as terras além do horizonte e para outros, o quintal perdido
da infância.
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