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quarta-feira, 2 de abril de 2025

Especial: Nivaldo: uma pintura na qual o afeto aninhou sua morada

Por Márcio Lima Dantas.

As palavras simples, tão-só 

para medirem, em tempo e modo. 

Com o silêncio da mão se respondia. 

Fiama Hasse Pais Brandão 



Nivaldo Rocha do Vale (Santa Cruz do Inharé, 1945), autodidata, inícios como pintor aos dezessete anos (1963). Residia com a mãe, Severina, cuja alcunha era Raminha,  e a mãe desta, Maria Joaquina da Conceição, conhecida na pequena cidade por  Quinininha. Residiam na Rua Frei Miguelinho; a casa existe até hoje. Sua avó tinha como  meio de vida a venda de óleo para cabelo e rouge. Outrora, fazia parte da toilette das  mulheres, principalmente as de origem rural. E assim o tempo passava; quando chegava  da antiga feira de Santa Cruz, logo ia abraçar o rapazinho. Por se inscrever como naïf, seus traços característicos e predominantes remetem  aos seus pares, a uma tradição de um estilo de pintura que vinca a história da arte, embora  saia um tanto de perto da chamada História das Belas Artes Ocidentais, sendo sempre  necessário fincar os pontos de onde diferem o artista em estudo dos demais, para que  exude sua singularidade e o confirme como detentor de diferenças, configurando uma  nova gramática, capaz de reconstituir o que o pintor nega da realidade que o cerca. 

Assim sendo, nesse jogo de quebra-cabeças que é a vida, com suas alternâncias,  de dias francos que passam sem nos consultar, caminhando em sua marcha indelével para  o futuro. Nesta nossa história, há uma lacuna, uma falta, um hiato; e isso nos cheira a uma  comarca do campo afetivo. E não temos medo de errar. Como fora muito amado por Da. Quininha, esta fazia os gostos de Nivaldo. Para  tanto, adquiria tintas para que o jovem rapaz exercitasse a arte de desenhar e de pintar.  Erguendo-se perante si, tateando certas ordens que nem sabia direito do que se tratava,  assim como uma casa de alvenaria, colocava aos poucos os tijolos amealhados pela avó,  que também não sabia direito do que se tratava. Aquele rapazola, diferente dos da  vizinhança, com certos gostos que não dizem respeito aos da sua idade, mas, de toda  maneira, era algo que existia como parte do mundo que o cercava. Assim, no mundo da arte, é que certas coisas acontecem. Todo começo é  involuntário? (Fernando Pessoa). Quase sempre sim, pois estamos lidando com forças  interiores, vindas do Inconsciente, que nem sempre têm resposta para o que inquirimos. E isso se acentua quando a arte é naïf, pois não está vinculada a determinadas tradições que nos são facilmente reconhecíveis.
Desse modo, a arte é uma espécie de chamado que  nasce de regiões mais profundas da mente, lugar no qual não possuímos quase nada de  domínio, são os lagares de águas adormecidas, precisando de algum movimento consciente para serem baldeadas, emergindo com as forças pulsantes, vindo a ser, ou  melhor, querendo tomar formas que o indivíduo nem sabia se tinha. Podemos apontar algumas características mais ostensivas encontradas na obra de  Nivaldo. A primeira coisa perceptível é que o espaço pictórico encontra-se pleno de  hiatos, não segue a regra geral dos naïfs, na qual todos os espaços têm que estar  preenchidos por elementos relativos ao tema central. No caso do pintor de Santa Cruz, é  possível encontrar grande parte do espaço da tela traspassado, sem figuras ou ornamentos,  como se estivessem vazados. Quer dizer que a tela aparenta muitas aberturas, como se  houvesse uma necessidade de ser preenchida com mais algumas figuras relacionadas ao  que se propõe como um todo apresentado na tela. É suficiente ver os dois quadros: “Dois meninos brincando” e “Gado no curral”.  Não há como deixar de perceber que ambos não seguem todo o preenchimento pictórico  que se oferece ao branco da tela, em uma alegria que é invariante aos ingênuos, quer seja  nas festas populares, quer seja nas horas de lazer, quer diga respeito às horas entretidas  com a labuta do cotidiano. O melhor trabalho de Nivaldo é uma composição elaborada com cajus vermelhos  e amarelos, folhas de caju, entrecortados por pequenos peixes.
Na verdade, não é uma  árvore produtora de cajus, mas um arranjo de elementos posicionados na totalidade do  quadro, ou seja, a composição diz respeito às folhas, aos cajus e aos peixes, configurando  uma estampa de rara beleza, pelo fato de ter organizado as formas, bem como as cores.  Enfim, o artista logrou êxito por meio de poucos elementos do espaço pictórico, fazendo  uma diferença dos seus demais trabalhos. Aqui podemos encontrar uma composição na qual há um horror vacui, tudo o que o artista não é, porém, adentrou por esse novo  caminho. Quem sabe possa abrir uma nova picada e se deixar conduzir em uma série  nova, capaz de multiplicar seu trabalho em outra pluralidade de uma obra que já foi e sempre será de uma fina estampa. 







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