De repente um silêncio.
Gosto muito de gente. Cresci em meio a uma família grande, embora eu fosse o único filho de Maria do Junco. Meu pai, José Antônio Filho, tinha mais dois outros filhos, mas não os conheci. Por mais que a humanidade avance aceleradamente para a perda dessa condição humana, continuo gostando de gente, de pessoas, do ser humano. E, quase que utopicamente, sigo pensando que um dia poderemos ser melhores pessoas, renovados seres humanos. A fé em Deus e algumas atitudes de seres humanos me levam a pensar assim.
Embora não pareça haver relação entre um e outro, justamente por gostar muito das pessoas também aprendi a gostar mais da natureza, dando-lhe o respeito merecido sempre que de uma ação minha depender a sua preservação. O que faço nesse sentido é pouco diante da avassaladora agressão que se faz ao meio ambiente diariamente, em todas as partes do mundo. Mas faço o que está ao meu alcance.
Aonde quero chegar? Ao ponto de dizer que também gosto de animais, essenciais ao equilíbrio do meio ambiente.
Mas tudo isso parece contraditório quando eu afirmar que naqueles anos atrás eu não queria que uma cadelinha linda chegasse ao lar da minha família. Um amigo, médico veterinário dos bons, trouxe o animalzinho e o ofereceu a preço mínimo a minha esposa. Bom comerciante, ele logo jogou a pequena-peluda nos braços de minha Maria Rita, que logo se apaixonou pelo bicho.
Ante a insistência da filha mais nova e de um antigo pedido da filha mais velha, a mãe delas, Elizângela, não relutou e comprou aquela cachorrinha, que logo recebeu o nome de Bel. Meio rude nessas questões, veio-me à lembrança a canção de Luiz Gonzaga, em que se afirma que cachorro de pobre tem sempre “nome de peixe”: baleia, traíra, tubarão...
Todavia, apesar do pensamento contrário, fui voto vencido e Bel passou a morar junto a nós.
Medrosa, ela se fazia de valente diante de qualquer visita, fazendo valer o instituto natural de proteção ao seu local de morada. Porém, não poucas foram as ocasiões em que um gato preto da vizinhança entrou e comeu sua comida, com ela inerte diante da cena, até que eu chegava a lhe fazia recordar que a natureza das coisas não era aquela. Ao grito de “pega, Bel”, ela ficava ancha e botava o felino para correr.
Quando Maria Rita soube, certo dia, que a cadelinha quase foi atropelada por um carro, numa travessia de rua feita por ela, pôs-se em desespero. Daí em diante passou a vigiar todos os passos da cachorra, chorando copiosamente a cada vez que Bel escapava e se punha a correr bairro afora.
A minha resistência inicial foi sendo vencida, e aos poucos também passei a demonstrar carinho e afeto por Bel, que malandramente só obedecia sem titubear a uma pessoa da casa: Jane. Bastava um olhar de Jane para que a bichinha voltasse cabisbaixa para o interior do apertado quintal da casa.
A cadela foi ficando mais velha e cada vez mais todos se apegavam a ela. A voz de Clara Beatriz parecia gravada na memória do animal. A cada chegada sua, após dias ou até semanas longe de casa, a alegria de Bel era indisfarçável. Escutava a voz de Beatriz e já corria para receber o carinho que tinha como certo.
A irracionalidade do bicho muitas vezes trazia traços de racionalidade que anda sumindo nos humanos.
A minha resistência inicial à ideia de trazer aquela cadela ou qualquer outro animal para casa tinha razão de ser. Era certo que, mais adiante, por uma causa qualquer, a separação entre nós aconteceria, e então já estaríamos sentimentalmente afetados.
Nesses dias, o mosquito palha, ou cangalha, numa atitude “canalha”, picou a cadelinha e lhe passou o vírus do calazar. Frágil, Bel logo se abateu e em poucos dias já não era a mesma de antes. Depois de um teste rápido, feito por agentes de combate a endemias, fizemos um teste de sangue mais seguro, até na esperança de que aquele teste rápido estivesse equivocado, incerto, e que o mal fosse outro – uma anemia, quem sabe! -.
Mas, não teve jeito. A infeliz doença foi confirmada e, sem cura entre os animais, tivemos que aceitar a medida extrema do sacrifício da cachorrinha.
Saímos de casa para não ver a sua saída. E voltaremos para casa sabendo que aquela cadelinha branca e alegre não estará nos esperando no portão da frente, como sempre fazia, quando ao seu modo parecia nos dizer que estava com saudades.
E ainda estou pensando em como dizer a Maria Rita que ela não terá doravante a companhia sincera de sua amiguinha Bel.
Era só uma cachorra, eu sei. Mas era aquela que nos trazia uma dose a mais de alegria todos os dias.
O avançar da idade tem essas coisas: deixa-nos mais susceptíveis de sentirmos diante da perda de um animal de estimação um lamento profundo, uma tristeza enorme. Mas não é só a idade. De fato, além de gostar de gente, passei também a gostar de Bel, a cachorrinha que fazia melhores os dias de minha Maria Rita.
Alcimar Antônio de Souza
Fonte: O Messiense.
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