Por Márcio de Lima Dantas
Professor do Departamento de Letras da UFRN
A obra do pintor José Boulier (Cavalcanti Sidou, 1951-2004), embora tenha se expressado por meio de muitas vertentes da nossa tradição pictórica Ocidental, não levanta uma problemática sobre a arte de representar, como fez Picasso, Matisse ou Modigliani. Seus retratos ditos mais “clássicos”, buscando uma expressão naturalista do referente, não conseguiu lograr êxito nos desenhos que consideram as proporções consoante o que o olhar contempla (à exceção do retrato do seu pai, de excelente fatura, que se encontra na casa da irmã Laís),embora tenha estudado na Escola de Belas Artes de São Paulo.
Com efeito, a compostura do indivíduo representado desconsidera a matemática implícita nos volumes e nas proporções das mãos ou do olhar. Tomo a liberdade de assim dizer, pois está muito clara a deliberada vontade de expressão do real como retrato da realidade, diferente de outras suas manifestações, nas quais predominam a licença poética e as inúmeras possibilidades, deixadas à guisa do pintor, por meio dos diversos movimentos do século XX que questionaram a arte de representar em tela ou em outro suporte.
Numa vertente das suas pinturas prevaleceu uma farta e franca liberdade onírica, não ficando preso a cânones ou padrões estabelecidos desde sempre. Aqui entram pessoas fantasiadas para um eventual carnaval, embora detenham um semblante melancólico e uma lágrima escorra pelo rosto, elementos que nos levam a indagar do espaço que o social proporciona para a alegria e a catarse coletiva nos eventos dedicados a Momo. Quer dizer, até que ponto o interior é contaminado pelo clima festivo e permissivo do exterior.
Antes de prosseguir, permitam-me evocar alguns traços do temperamento e dos meios de vida empregados para sobreviver, como sucede a todo e qualquer humano responsável. Para além de ser pintor, Boulier tinha o ofício de decorar festas, clubes e bailes de carnaval. Tendo ficado na lembrança de muitas pessoas de Mossoró a decoração do baile da Norsal, quando preencheu todos os espaços com a temática do palhaço, deslumbrando todos que a contemplaram, e na qual demonstrou suas capacidades em estado de potência, dizendo por meio da sua assinatura o quanto era hábil e dominava a ideia de conceber um conjunto de imagens, afastando o horror vacui tão ontologamente vinculado aos viventes
Boulier trabalhou como estilista em Teresina, Fortaleza, Mossoró e Recife, desenhando com habilidade e rapidez modelos de vestidos. Dotado de temperamento inquieto e visivelmente saturniano, sugere não ter uma boa relação com Cronos, haja vista que não se demorava muito tempo em um só lugar. O que procurava mesmo nessa excitação física e metafísica? O que o levava a mudar tanto de residência, mesmo quando morava em Mossoró?
Uma das suas características era pintar rostos quase sempre de perfil, como na arte egípcia, sendo que essa estava subordinada aos cânones impostos pela religião, que não é o nosso caso. A estilização formal e simbólica advinha de preceitos religiosos. Parecia estar muito mais fascinado pelo que o humano detém de máscaras do que pelos poucos momentos nos quais indivíduos se lançam à vida com o rosto lavado, autêntico e sem a necessidade ou imperatividade da hipocrisia, demandada nos embates do cotidiano pela Senhora Vida.
Creio que esta tela abaixo pode nos proporcionar uma série de especulações acerca dos mitos, imagens, inquietudes e buscas de respostas para suas inquirições de caráter metafísico. Para efeito do meu artigo, será considerada uma metonímia da pintura de Boulier, ou seja, tomarei a parte pelo todo, no qual procurarei estabelecer uma tese, sua antítese e, finalmente, esboçarei uma síntese daquele que marcou durante muitos anos as artes plásticas em Mossoró. Sugiro que outros críticos e exegetas escrevam sobre o autor, fazendo valer o princípio de que outros não cuidarão do que foi produzido aqui, definindo o âmbito que confere número e nome ao que nos caracteriza enquanto agrupamento social, bem distante do eixo onde circulam os artistas que se destacam: o sul e o sudeste brasileiros.
Além do mais, essa tela inscreve-se como de boa fatura no conjunto da sua obra. Há uma aura de esmero, capricho e exigência interior, sobretudo no marcante traço do desenho que compôs um rosto afilado e com firmes contornos em ângulos retos. De outra parte, não há como não se permitir contemplar a oposição do amarelo do rosto, do marrom, no longo pescoço, e da estamparia da indumentária, na qual predominam o vermelho e o amarelo.
Antípodas sãoas nuances derivadas do vermelho e do amarelo. Temos o azul do cabelo, ocupando cerca de um terço de toda a tela.Ora, amarelo e azul, e seus respectivos matizes, no plano do Imaginário, representam, respectivamente a oposição entre terra e céu, entre realidade e imaginação, entre carne e espírito. Expressando-se de maneira ímpar na personalidade de cada indivíduo, impossibilitando o juízo do outro sobre a forma de ser e agir do próximo. As bodas das duas dimensões básicas do humano parecem não ter sido harmônicas em Boulier.
O verde à esquerda, ocupando cerca de um terço da tela, por sua vez, está situado entre o azul e o amarelo, sendo uma cor tradicionalmente vinculada a uma atitude mediadora, uma vez que se encontra entre o baixo e o alto, sendo uma cor tranquilizante, apaziguadora de conflitos. Representa a esperança de uma buscada harmonia externa ou interna. É notável a simbologia das cores na tela: o olhar melancólico da mulher admite a impossibilidade. Tristeza resignada, com um leve travo de acusação, porém de maneira polida.
Isso mesmo, Eros e Psiquê se confrontaram no artista. Pássaro degolado em permanente agonia de um desassossego imanente. A arte não conseguiu apartar o inexorável embate anunciado. A arte não cumpriu seu papel histórico de galvanizar a alma, pagando o preço de demandas interiores que o sufocavam. A arte não conseguiu sublimar a tempestade interna? Morrem jovens os que os deuses amam? Acaso serve de consolo ou guarida?
Para além de integrar a história das Artes Plásticas em Mossoró, amigo de Marieta Lima, a qual sempre retornava ao ateliê dela, numa rua estreita, no centro da cidade, eis que Boulier muito mais cumpria o papel de comediante na polis. Personagem ou artista? Os dois?
Os relógios de todas as classes sociais, numa cidade média onde todos se conhecem, ronronavam seus mecanismos numa busca acelerada de consumir as horas nos archotes incendiados que cada indivíduo é. As Parcas, em conluio perverso com Cronos, assinalou o jovem de temperamento desinquieto e corpo nascido com os estigmas de cordeiro a ser imolado. Aquiescendo, face às potências das Parcas: Clotho, Láquesis e Átropos, estas fiaram apressadamente o carretel da frágil lã a dissolver-se perante o álcool que demandava de maneira estranha qualquer chispa de fogo que o circundasse, vindo a ser frágua a ser consumida em labareda viva.
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