Cortes de programas, contratos suspensos, redução dos investimentos...
Barulhento como uma sala de aula indisciplinada, o movimento Escola sem Partido terá dificuldades para deter o suposto “exército organizado de militantes travestidos de professores”. A perseguição à “doutrinação política” nas escolas brasileiras, representada no Congresso pelos projetos do senador Magno Malta, do PR, e do deputado Izalci Lucas, do PSDB, carece até do apoio de um governo para o qual a Constituição é rasurável.
Em julho, a Advocacia-Geral da União e o Ministério da Educação defenderam a inconstitucionalidade da proposta por atentar contra o pluralismo na educação, em resposta a um pedido de posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o Escola Livre, projeto de mesmo teor aprovado recentemente pela Assembleia Legislativa de Alagoas.
Nem mesmo um ministro apto a ouvir conselhos de Alexandre Frota leva a proposta a sério. Após nomear um defensor do projeto como assessor especial do MEC e voltar atrás em seguida, José Mendonça Filho, do Democratas, agora se declara contra a aberração. “Não dá para estabelecer um tribunal de ideias dentro das escolas”, afirmou em entrevista recente.
O projeto tem mais efeito retórico do que prático. Enquanto uma parte da sociedade morde a isca de uma proposta com poucas chances de ser aprovada no Congresso e, provavelmente, destinada a ser considerada inconstitucional pela Justiça, o governo de Michel Temer trabalha silenciosamente no desmonte das atuais políticas de educação pública.
Em menos de quatro meses, Mendonça Filho suspendeu programas de alfabetização e de ensino integral, sugeriu cortes de 45% nos repasses às universidades federais e revogou a realização do novo sistema de avaliação da educação básica aprovado após esforços e contribuições de entidades do setor.
Iniciativas do governo de Lula e Dilma, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego e o Fundo de Financiamento Estudantil também tiveram novos contratos suspensos após o afastamento da presidenta eleita, mas o ministério promete abrir novas vagas no segundo semestre deste ano.
É razoável imaginar que voltem remodelados, talvez com novo nome e formato. São programas interessantes para a iniciativa privada, ao auxiliarem na manutenção de grandes universidades particulares e na formação de profissionais baseados nas necessidades do mercado.
A educação pública, entretanto, é a “Geni”. Em 26 de agosto, o MEC interrompeu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, previsto no plano nacional. Pouco esclarecedor, o documento apenas revoga a portaria que instituiu a avaliação, sem apresentar qualquer justificativa ou alternativa para seu lugar.
Aprovada durante a gestão de Aloizio Mercadante, ex-ministro de Dilma, a nova modalidade de avaliação levou mais de um ano para ser concluída. Seu objetivo era ampliar o número de indicadores educacionais, ao contemplar informações como superação de desigualdades, valorização de professores, universalização do atendimento escolar e gestão democrática.
O Centro de Referências em Educação Integral, parceiro da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, teve acesso a uma apresentação de julho de Mendonça Filho na qual se avaliam as políticas educacionais dos últimos anos. No documento, o Mais Educação, principal inciativa federal para incentivar o ensino integral, é considerado ineficiente e novas adesões são declaradas suspensas para 2016.
Outro programa cancelado é o Brasil Alfabetizado, voltado para a alfabetização de jovens e adultos. No Brasil, 8,3% da população não sabe ler ou escrever. Embora o ministério garanta a continuidade da execução do programa, uma cidadã, segundo reportagem daFolha de S.Paulo, questionou a pasta sobre o tema por meio da Lei de Acesso à Informação e foi avisada de que não há previsão da ativação de novas turmas.
De acordo com o MEC, existem 168 mil alunos no atual ciclo. Em 2013, eram atendidos cerca de 1 milhão. Nos bastidores, discute-se ainda a transferência para o Ministério do Desenvolvimento Social da gestão das creches, hoje parte importante da política nacional de educação infantil. Interlocutores de Temer sugerem que o governo pretende realizar parcerias público-privadas para a administração das unidades.
O desmonte da educação pública não está relacionado apenas à suspensão de programas criados durante os governos petistas, mas ao financiamento da área. Uma das prioridades do governo Temer é aprovar a Proposta de Emenda à Constituição 241, que limita o aumento dos gastos públicos à inflação aferida no ano anterior pelos próximos 20 anos.
A rigidez fiscal terá profundo impacto sobre o financiamento das pastas. Uma das principais metas do Plano Nacional de Educação é ampliar o investimento público de forma a atingir o patamar de 10% do Produto Interno Bruto nos próximos oitos anos. Com o limite dos gastos, o Brasil distancia-se ainda mais da porcentagem pretendida: em 2013, o governo federal investiu 6,6% do PIB na área, segundo dados oficiais.
Atualmente, a Constituição reserva um mínimo de 18% da receita líquida da União para a pasta. Segundo a proposta defendida por Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, o piso da educação equivalerá ao gasto do ano anterior corrigido pela variação inflacionária.
Um estudo técnico da Câmara dos Deputados realizado em agosto estima que a mudança não terá impacto significativo no próximo biênio, pois a continuidade da baixa arrecadação deve resultar em um pequeno acréscimo dos recursos. Se o País contornar a crise fiscal e voltar a engordar o caixa, os consultores legislativos apontam para uma queda significativa dos repasses.
Para 2017, o estudo técnico estima um piso de 50,2 bilhões de reais com a nova regra, ante um valor de 49,8 bilhões segundo a fórmula antiga. Em 2025, haveria, porém, queda de 13 bilhões de reais se aplicado o cálculo pretendido pela equipe econômica. Os consultores legislativos estimam uma perda acumulada de 45 bilhões de reais no período.
“A aplicação do método de correção da PEC desde 2010, em relação à regra atual, mostra que o novo método se revela vantajoso em períodos de baixo crescimento e perda de receita”, afirmam os consultores. “Se houver crescimento a partir de 2018, aumenta a diferença entre o piso atual e aquele previsto pela PEC.”
Coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara considera a projeção tímida. “É um cálculo subdimensionado. Ainda assim, é um volume que indica a queda na expansão dos créditos nas escolas e nas universidades.”
Aprovado pelo Senado, o fim do controle da exploração do pré-sal pela Petrobras promete comprometer uma das fontes de recursos mais importantes para a área no longo prazo. Caso o projeto prospere na Câmara, a tendência é de redução da receita de royalties do petróleo para o Fundo Nacional do Pré-Sal, que destina 75% dos recursos à educação pública.
Estimativas de consultores da Câmara realizadas entre setembro e outubro do ano passado apontam que os recursos destinados à educação e saúde por meio da exploração do petróleo, nas regras atuais, poderiam chegar a 213 bilhões de reais entre 2015 e 2030. De acordo com o estudo técnico, a educação tenderia a receber perto de 7,2 bilhões de reais por ano.
A expectativa era ter acesso a um volume significativo do dinheiro entre 2018 e 2020, mas o baixo preço do petróleo e as incertezas sobre o futuro do setor no País podem adiar ou comprometer a bonança. “Não queremos abrir mão desse recurso, ainda mais no cenário da PEC 241”, diz Cara.
As principais bandeiras dos governos de Lula e Dilma também têm sofrido com os cortes. Em julho, o MEC interrompeu a concessão de novas bolsas de intercâmbio internacional do Ciência sem Fronteiras para estudantes de graduação, objetivo original do programa.
Mendonça Filho afirma que a decisão não significa o fim da inciativa federal. Desde a sua criação, em 2011, o governo concedeu 92,8 mil bolsas para estudantes e pesquisadores. Hoje, mantém 14,4 mil.
Desde o ano passado, os recursos para o Pronatec e o Fies têm caído. Ainda assim, o ministro suspendeu a abertura de novas vagas tão logo assumiu o cargo. Embora prometa honrar os benefícios de financiamento contratados, o MEC não deve disponibilizar mais oportunidades para os estudantes de ensino técnico e universitário em 2016.
No longo prazo, programas como o Fies e o Pronatec devem ter continuidade. “É interesse do empresariado que continuem. Temos um governo que tem como base social os empresários”, afirma Cara, para em seguida ressaltar a descontinuidade das políticas do setor.
“Mesmo entre Fernando Henrique Cardoso e Lula, muitos dos projetos na área foram aproveitados. Neste momento, a regra é dizer que tudo estava errado, como se os últimos 13 anos fossem marcados apenas por equívocos.” Os movimentos do governo revelam que o macarthismo ideológico do Escola sem Partido é só cortina de fumaça.
O verdadeiro objetivo é uma escola sem Estado.
*Publicado originalmente na edição 918 de CartaCapital, com o título "Escola sem Estado".
Fonte: www.cartacapital.com.br
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