É curioso observar a trajetória da profa. norte-rio-grandense Celina Bezerra. Advinda das terras quentes da região do Seridó, de antigas famílias ali chantadas, desde muito, inicialmente dedicou-se ao magistério, tendo se aposentado como professora do Departamento de Educação da UFRN. Pintora bissexta que era, agora dedica-se à literatura e às artes plásticas. Quando disse “curioso” quis deixar implícito o fato de umas das primeiras manifestações artísticas do Homo sapiens foi a pintura nas cavernas, vindo depois as diversas formas não fonéticas de escritura, para depois vir a ser como o que se configurou como elementos da linguagem, nos dias de hoje. Quis com isso lembrar que Celina Bezerra procedeu de maneira inversa: foi da palavra às artes plásticas. De outra feita, não podemos esquecer o belo livro de memórias, com forte conteúdo histórico e etnográfico, escrito conjuntamente com dois irmãos: Meninos de sítios: falando sobre cultura sertaneja (BEZERRA, Celina; ARAÚJO, Laércio Bezerra de; AMMANN, Safira Bezerra. Natal: Gráfica Nordeste, 1997). Os primeiros trabalhos em telas revelam ainda a presença dos seus mestres; vindo, hoje, a definir-se com traço vigoroso e particular, dotada de um pathos que dispõe sua letra e seu número, distintos dos tantos quantos optam por retratar paisagens ou personagens que dizem respeito a nossa geografia humana ou das paisagens encontradas pelo interior afora.
É notável a marca diferente que a dispõe num lugar outro que não o da mesmice de repetir não só os temas recorrentes, mas, sobretudo, a maneira como são dispostos tais elementos, que nos conduz, inexoravelmente, a um travo de déja vu, com forte carga de caricatura, proporcionando a reprodução de literalmente um “quadro”, condizentes com as realidades encontradas hoje, num mundo globalizado, no qual todo lugar se assemelha, tanto em nível comportamental quanto no que diz respeito às edificações. Ao contrário dos muitos que entoam o coro do saudosismo, Celina Bezerra optou por um outro caminho, a saber, compreender a pintura não como conteúdo, mas como forma, como maneira de transfigurar aspectos da realidade de um lugar, o Sertão, desde sempre objeto das artes plásticas produzidas na região Nordeste.
Para quem está acostumado às representações pictóricas de aspectos relacionados ao sertão - que fomos acostumados a chamar de “interior”: miséria, seca, cangaceiros, retirantes - pode parecer esquisita uma retratação que refoge a esse lugar comum ou ao horizonte de expectativas do intérprete. Expectativa essa eivada de signos plenos de um discurso dominante que grassa sobretudo nos aceiros por onde anda a classe média, desejosa de se sentir diferente, a partir do contraste com o patético ou o que se apresenta como antípoda de tudo o que se encontra à sua frente e faz de conta que não vê, resultado que é de relações sociais perversas, sobremodo calcada na má distribuição de renda.
Para artistas ou escritores com maior voltagem universal, a noção de sertão despontou como objeto trabalhado esteticamente para além do senso-comum, para além do lugar vincadamente caricatural e factível de ser usado pela mídia como elemento de preconceito, mormente quando se procede ao contraste com as paisagens retratadas do sul/sudeste do Brasil. Refiro-me a autores como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos ou Cornélio Pena, nos quais sertão não é um espaço geográfico delimitado, povoado por seres que sofrem o permanente embate com as forças físicas da natureza, perfazendo uma aura de impotência, fatalidade, que apela para o dó e a chamada “solidariedade”. Sertão, como foi representado por esses romancistas, é um lugar mental, espaço íntimo inerente a todo e qualquer senciente, afinal o sofrer, advindo do embate com o meio natural ou resultado de relações íntimas de um eu em desassossego, é parte da condição humana, quer seja de dentro ou de fora. Ora, sofrer é como a morte: só quer uma desculpa, vindo a resumir a condição do homem nos seus confrontos com a realidade. Nesse sentido, sertão é um estado no qual resplende o calor e a transparência dos que caminham pelas veredas da lucidez. Não podemos esquecer que a noção de sertão é anterior a presença lusa em terras brasileiras, provando que não deve ser compreendida como área delimitada geograficamente, mas como um conceito a ser compreendido como advindo de uma determinada experiência histórica.
Como afirmei, o vocábulo sertão já era usado desde o século XIV para indicar o que se encontrava distante da capital Lisboa que, por extensão, passou a nomear tudo o que era oposto ao chamado mundo conhecido, quer dizer, os vastos espaços que entravam interior a dentro, detendo-se pouca ou quase nenhuma informação acerca deles. Com efeito, não estava muito distante o deslizar semântico, engendrado pelos poetas e romancistas, de sertão como categoria mental, simbolizando os vastos espaços interiores nos quais não chega o poder da Ordem (ego e super-ego), Guimarães Rosa que o diga. Em síntese, sertão não passa de um conceito, de uma imagem construída historicamente.
Na pintura de Celina Bezerra, as ditas paisagens sertanejas são puro pretexto para o hábil exercício dos domínios da técnica de retratar o que está posto no nosso entorno, e que se efetiva através de vastos planos, no qual as cores predominantes são os tons de azul e as nuances de ocre, sintomáticas cores denunciando o equilíbrio entre a alma e o corpo, a imaginação e o empírico, o céu e a terra, cuja simbólica remete à necessária harmonia entre duas dimensões que quase sempre ocupam espaços distintos. Ora, “o sertão está em toda parte”.*
Um gênero tradicional, o paisagístico, numa época tardia como a nossa, em que já se encontra praticamente exaurida a capacidade de reproduzir, atestamos na pintura de Celina Bezerra ainda o fascínio despertado não mais pelo conteúdo, mas por meio da forma, que se constata por pinceladas entrecruzadas, - lembrando um pouco o impressionismo -, feitas de cores neutras ou esmaecidas.
Mais uma coisa, para os que não se convenceram ainda de que o “sertão é o mundo”*, como repisa Riobaldo, o protagonista de Grande sertão: veredas, reporto-me à paisagem da cidade de Paris durante o inverno: tem coisa mais parecida com a nossa Caatinga, quando da estação seca, o que indigitaram como nosso verão? Se lá é o frio, aqui é o tépido, entretanto, ambas as paisagens contém os mesmos elementos: as árvores decíduas perdem suas folhas; a cor predominante é o cinza, os seres ensimesmados, taciturnos, impotentes diante dos elementos físicos que campeiam seu jugo e mando, impondo um certo travo fatalista no olhar, algo parecido com resignação, coisa não tão distante das populações submetidas periodicamente às secas.
Vale lembrar que “sertão” é sinônimo de “interior”. Se no exterior ocorre o embate com as forças físicas, no interior há quase sempre um desconserto consigo mesmo, conduzindo as desavenças que acometem a todos, indiferentes da origem ou etnia. Em suma: digladia-se sempre em duas frentes. Não há como fugir. A bonança é apenas um intervalo entre dois momentos de lidas.
Quem havera de imaginar que o sertão da escritora e pintora Celina Bezerra, iria ao encontro de concepções sempre avançadas que foram, quando de sua cristalização no campo literário, ou seja, além de SER TÃO vasto quanto as possibilidades humanas, num vergado arco que liga sentimentos antípodas: da alegria à tristeza, do palor à nódoa, do bem ao mal. Tudo numa esquisita harmonia que só a lógica do inconsciente, a lógica da arte permite. De qualquer maneira, “Sertão é o sozinho. Sertão: é dentro da gente”*. E isso ninguém pode negar ou nos tirar: TÃO SER.
* Falas de Riobaldo.
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