Márcio de Lima Dantas
"Por eso, muchacho, no partas
ahora soñando el regresso
Que el amor es simple
Y a las cosas simples
Las devora el tempo "
Cesar Isella
Mário Rasec (Natal, 1971), desde a primeira infância, começou a riscar garatujas; o pendor para a arte anunciava-se bem cedo. Esse movimento de uma personalidade é capaz de definir determinados contornos anunciadores das linhas de um espírito no qual a psiquê bandearia-se para os lados de alguma espécie de manifestação artística. O que chamam coisas do espírito. No caso em questão, logo cedo, familiarizou-se com o lápis e suas capacidades de preencher o vazio de brancas páginas.
Dessarte, estava gestando-se um homem no qual alguns cercados da expressão artística seriam eivados da boa semente de alguém com grande tino no modo de olhar o mundo, criando um universo paralelo que a arte acrescenta ao nosso entorno, para os que detêm o tento de mirar o que se movimenta ao seu redor, com redobrada atenção. E tudo o que se mexe, intenso ou discreto, não passará impune, nem se manterá inerte ou some pelo vento ou pela movimentação do humano.
Contudo, o artista Mário Rasec não se limitou à tinta guache ou aquarela. Teve aulas de manuseio com tinta óleo com o artista visual Luís Anísio. Também se inscreve como escritor de poesias, ilustrador, aquarelista, roteirista, desenhista de quadrinhos. Publicou os livros de poemas Apostasia (2003) e O corpo de Cristo e os apócrifos da serpente (2008). Ganhou um concurso com o conto A caravana das bruxas (2020).
Como podemos ver, recebeu o sopro de diversas musas, sendo as principais Érato (poesia lírica) e Calíope (retórica, eloquência, prosa). Dando a conhecer alguém familiarizado com todos os domínios nos quais fez valer sua bandeira estética, circundando-a de um exercício que remonta à infância. Assim, fez-se maduro, detentor de um naipe de cartas altas, dignas de jogar com os melhores artistas visuais do Rio Grande do Norte. Sua naturalidade ao pintar é tamanha que não necessita de nenhum trunfo, firmando-se na sua arte, sendo capaz de ser identificado como de validade ímpar.Vejamos como é o método do nosso trabalho. Bastante simples. Partimos de um agrupamento de objetos que detém algo em comum, ou seja, é uma combinatória de determinado número de elementos com o mesmo mínimo múltiplo comum. Dessa forma, ordenamos vários agrupamentos que nos conduzem a perceber não apenas como se apresentam retratados, mas também, como comparações, ou seja, metáforas, que não passam de uma coisa no lugar da outra, deixando o leitor prenhe de interrogações.
A arte é a região na qual o indivíduo espelha-se ou refrata; contudo, não passa impune à imagem ou objeto que se desenha aos olhos, assim como se fosse um posto no qual repousa um enigma. Acaba bulindo por dentro, por saber que isso pode ser aquilo ou ainda outra coisa. O certo é de uma coisa que intriga, que lhe diz respeito, pode nem saber o que mesmo.
Como dissemos, uma das formas de expressão do artista é a aquarela. Participou de uma grande exposição: Cidade invisível (2018). Talvez não seja demais me precipitar ao dizer que, dentre as várias técnicas de que faz uso no campo da arte visual, a aquarela desponta como a que mais obtém êxitos melhores. Falo, sobretudo no sentido de representar as coisas simples, as pessoas modestas, cenas do cotidiano que ninguém repara ou barcos ancorados, sem apelos ou discursos que chamem atenção. Quedados, estão à espera de quem os lance por águas mais profundas, na atividade de uma pescaria ou de um passeio com crianças a bordo.
O artista é um insigne observador de cenas do cotidiano, dos banais grupos de pessoas conversando nos pequenos trailers, servindo lanches a transeuntes com preços mais acessíveis. Suprime as cenas de lugares que de longe seriam passíveis de um olhar mais acurado, haja vista que o contemplado, a um olhar qualquer, não passa de detalhes do movimento da cidade. O olhar do artista e consequente vir a ser arte, sobre esse bulício, resgata indivíduos do seu anonimato.
Assim mesmo, a partir do momento em que três mulheres estão encontradas no meio da rua, por acaso? Marcaram? – Conversando –, salta aos olhos uma cor, diante dos contornos: o cor-de-rosa da sombrinha esmaece o azul da mulher do lado direito, restam listras que fazem o contorno dos corpos e do que se encontra enquadrado. Se se pode dizer uma coisa, é desse momento no qual a fala parece remeter ao gosto de certos momentos da vida no qual viver é pura graça, e jogo acertado, e empatia de indivíduos, e o saber da impermanência, e compreender a gramática ácida do tempo.
Então, há de se deixar conduzir pelas pequenas coisas, pelo simples, pelo que não está à venda, pelo espirituoso de uma alma, pelo aprendizado consentido; enfim, tudo transmuta-se em sabedoria, em não julgar o próximo, em aceitar as vicissitudes, em ser resiliente.
A série de aquarelas, onde o artista conseguiu demonstrar o domínio de suas capacidades enquanto artista visual, selecionando o que seria seu corpus extraído da realidade, pois destoou da grande maioria de seus pares, cujas imagens quase sempre dizem respeito a um regionalismo um tanto fatigado ou mesmo a temáticas retiradas da pintura acadêmica. O insólito do seu trabalho é o fato de deter seu olhar sobre imagens não encontradas correntemente no circuito dos nossos melhores artistas. Parece haver uma espécie de desprezo quando se trata de pintar motivos retirados do cotidiano das classes populares ou mesmo dar conta de imagens comumente não vistas ou valorizadas na polis.
Puro preconceito de classe, na medida em que, ao passar para uma representação visual, transportadas para uma tela essas imagens, não só ocorre o fenômeno da Mímeses (Aristóteles), ou seja, o artista não pinta ipsis literis, mas transfigura através do seu olhar, ou seja, o que lhe chega como algo da realidade, em uma aquisição captada pelos sentidos, torna-se arte pictórica. Existe uma ideia que a arte sugere, e por meio dessa ideia há uma metáfora. Fazendo saber que toda arte é multisignificativa. A que veio? Desde quando isso importa, e tais funcionalidades detém? Encontram-se como acréscimos à realidade, emanados de determinados indivíduos que são inquietos e procuram esclarecer aquilo que se veste com as alfaias de uma esfinge, ensaiando deslindar meandros e estuários do insistente rio da vida. Mesmo o corpus tendo sido de pequenas proporções, – o qual tivemos acesso para ser contemplado e organizado em arranjos, – conseguimos a empreitada de efetuar classificações a partir dos temas abordados pelo artista. Um dos mais importantes arranjos concerne aos retratos de pessoas pintadas com aquarela, exercidas por meio de pinceladas
com fino-trato, repercutindo os traços que pronunciam sua peculiar técnica, latejando em qualquer mídia sua dicção, e que se configura como uma maneira de tornar belo aquilo que elege para sair de um anonimato, coisas que não são consideradas como dignas de atenção.
A menina do cabelo grande e assanhado contempla a câmera de quem a retrata, como se pedisse desculpas por sua presença, por existir, por ocupar um espaço. Talvez tenha aprendido a ficar no que convencionaram como seu lugar. Seguramente não integra as classes mais altas do cume da pirâmide social. Seu cabelo, vestimenta e olhar de subalterna dizem de uma condição social tida pela maioria como a Ideologia proclama como “natural”.
Mas como nos chega essa personagem visivelmente das classes populares? Ora, só por meio das cores com as quais foi retratada, a forma já é o conteúdo, pode-se remeter à sua equivalência social e de seus pares. O fundo é totalmente cinza, com suas nuances, cor quase totalmente predominante, tanto no que sugere ser as paredes, quanto no semblante e vestimentas, criando uma atmosfera de sombria clausura.
E, dessa maneira, possibilidades de mudanças são poucas, por meio de rachaduras adentrando para um novo lugar capaz de esplender uma luz que altere esses tons fechados, alargando os horizontes da existência desse tão profundo anonimato dessa menina. E das fissuras assome a luz com a boa-nova de um tempo anunciador de outros vizinhos, de outra escola, de colegas do mesmo naipe. Enfim, que não haja exclusão.
A luz adentra pelo lado esquerdo para o direito; mesmo assim, chega débil, um tanto esmaecida, apenas determinando o contorno do corpo da garota, fazendo ver que o cabelo é castanho, e referendando a atmosfera do todo: pouco ânimo e sorriso acanhado, como se fosse uma espécie de vergonha de viver.
Dos retratos, em número de quatro, tem um que destoa dos três, pois foi um instantâneo, como se a senhora sentada não tivesse consciência de que estava sendo alvo da mira de um fotógrafo. Com infinita dedicação e paciência, confecciona suas pulseiras com contas de preço acessível. É tão-somente o que pode adquirir para ir matando o tempo. Suas vestimentas não escondem a classe social a que pertence. É uma mulher do povo, com blusa cinza e saia rosa, fundo todo preto, com enorme concentração e distanciamento do seu entorno. Até parece que o tempo foi abolido, quando envolta em tamanha tarefa de algo não funcional. Ocupa-se em fazer pequenas pulseiras, sem deixar claro o motivo de tal empreitada. Sua mente parece aproximar-se do longe, evadindo-se em espécies de pensamentos eivados de distância.
Com efeito, ao pegar as miçangas da caixa e enfiar em uma linha, conformando uma pulseira, evade-se das datas e dos roucos relógios mensuradores do tempo, implacáveis, que a nada exclui, que ninguém fica de fora, em uma pressa que a tudo devora, seus filhos não recebem guarida ou apego. A bem da verdade, o que faz é dar as costas ao humano, cabendo a cada um organizar um comportamento, uma resposta, uma forma de aliar-se consigo mesmo, para haver um convívio menos espinhoso, apesar de saber qual a gramática de dias que se alternam, semanas impulsionadas para um mês; por fim, eis uma progressão aritmética: os anos deslizam sobre todos, atualizando de tempos em tempos nossa idade, nosso rosto, nosso semblante, nossas limitações.
A pergunta, quanto vale a vida, pouco importa. Está absorta, concentrada, livre de si. Tão-somente a luz parece emanar do seu corpo e não de qualquer artefato no perímetro onde repousa uma “existência ou uma presença” sobre a cadeira.
É possível separar, para efeito de estudo, três retratos de pessoas: homem sem camisa, mulher de blusa verde e mulher sentada na cadeira com blusa estampada, saia cor de rosa, um lenço na cabeça e bengala.
Esses tipos de pessoas são fáceis de encontrar sertão adentro. O olhar firme e ausente de sorriso denota uma vida dedicada ao trabalho. Parece que não conheceram outra coisa. O trabalho concerne a esses indivíduos, desde crianças foram habituados à labuta, é como se fosse uma disciplina que incute uma ética, uma postura diante de si e dos semelhantes, haja vista a enorme quantidade de máximas, provérbios, ditos sapienciais disseminados pelos agrupamentos de sertanejos que ainda resistem às formas antigas de viver e encarar a vida. Enfim, essa maneira de ser, – que não queremos aqui generalizar, – tendo em vista a complexidade do humano, quase sempre cria um ethos.
Há de se pensar qual a relação desses rostos assemelhados a totens com os elementos que, fundidos, deram origem a expressar um olhar firme, sem malícia, uma ausência de sorriso e qualquer coisa que lembra o fato de se encontrar ancho no mundo. Se eu quisesse comparar, não seria difícil, basta ver as fotos (1936) de cangaceiros e cangaceiras feitas por Benjamin Abrahão. É mister observar o queixo erguido, como se nada temesse ou fosse ameaça. Havia o conluio com a caatinga, espécie de simbiose proclamando não o fato de homens e mulheres estranhos aos espinhos de cactos, buscando coitos, afrontando seus perseguidores por entre carrascos, serrotes exalando calor. Olhar firme, e compleição física, que nos conduz aos meandros de um rio com seu estuário resultado de muitos outros rios que se juntaram, desaguando em uma só foz no mar.
O que disse também serve para a mulher de blusa verde e para a de bengala. Ambas com marcas no rosto que deixam entrever que a presença neste mundo não foi lá essas coisas todas.
Tanto quanto uns e outras pessoas retratadas através das exigências da aquarela, o artista detém no seu acervo um homem moreno claro. O tempo passou deixando marcas indeléveis nessa criatura. Apenas podemos afirmar que veio ao mundo, sem mãe, sem guia, sem conselho (Cecília Meireles). Como batata-doce que se planta nas vazantes, para servir de alimento nas noites em que os grilos tiritam seus cantos.
Mesmo assim, os vincados lábios e os olhos entram em sintonia, para explicitar a compleição de uma experiência, configurando uma resignada aceitação da vida e suas vicissitudes. Até parece que o que conheceu da vida foi o árduo trabalho de dias assemelhados, como se fosse uma cantilena repetitiva. Trabalho que vincou os rostos de um envelhecimento precoce, pleno de rugas, evocadoras, provavelmente, dos sóis que teve de suportar, ressecando a pele. Mas quem haverá de substituir e ocupar o lugar desses indivíduos?
Afora o que analisamos, também há a coletora de material descartável, um homem cochilando, com sua carrocinha de frutas, cantinho do pastel (como se fosse no meio do canteiro), boi no pasto, trailer na rua (provavelmente a oferecer lanches por preços mais acessíveis). Há uma vasta gama de retratar as coisas simples, como se detivesse um apreço pelo que não é valor em nossa sociedade. Seria bom se perguntar quem ou que são esses nas suas faces de insolência e o de se sentir importante e superior. Alguém permanecerá imune à velhice, com suas enfermidades e limitações?
E também eis os silentes barcos, sem a presença humana, entregues a um abandono que somente a arte pode redimir dessa solitude e imprimir no papel, por meio das seguras pinceladas, com as quais o artista consegue captar o efeito trêmulo da água, o reflexo do que se encontra no entorno do barco. Um exílio preciso encontra uma postura de um pintor capaz de retratar esses barcos ancorados na água ou ao largo de areias da praia, fazendo saber de uma metáfora da solidão, cujo lugar do humano não se sabe qual. Há de se indagar: desde quando na arte, na tela ou outro suporte, a presença do humano é imprescindível?
Pere um pouco. Longe de mim deixar passar alguma técnica digna de nota. Falo do uso da tinta óleo. Existem três telas acercando-se do mesmo lugar semântico. Apresentam algum recorte de autoestradas anônimas, cujo intuito parece ser pronunciar a metáfora de caminhos que conduzem para algum lugar, mas também trazem, em um vai e vem na mesma rodagem. Maria Rita interpretou com sentimento e rara afinação uma música que trata desse ponto de uma estrada com mão dupla: O trem que chega é o mesmo trem da partida. / A hora do encontro é também despedida (“Encontros e despedidas”. Milton Nascimento e Fernando Brant).
Dessa forma, as três vias de tráfego convergem para uma só metáfora: a compreensão de determinados lugares com movimento de indivíduos ou no abandono temporário parar ou encerrar alguns aspectos que nos concerne. Podemos extrair dela uma didascália, um naco de filosofia, uma luz iluminadora de lacunas do nosso ser, estabelecer relações culturais, contribuir para alumiar algo ainda sem luz no íntimo do nosso ser. Enfim, através de uma imagem emerge do nosso íntimo alguma espécie de ensinamento ou contemplação capaz de nos remeter a lugares nos quais o bom senso repousa plácido, e nem o certo nem o errado germinarão a semente da discórdia, elevando nossa alma aos horários nos quais vigora o chamamento de pêndulos de um ouro puro, escandindo o tempo, de um lado para outro. Ensinando-nos a difícil tarefa de aceitar as contingências da vida como elas são. E se há de evocar, se necessitar, peça apenas um: o dom da fortaleza de espírito.
O que podemos chamar de verdades intuitivas ou o que alguns ousam dizer que dispõe da capacidade de adivinhar. Conquanto, desde longe, se sabe que alguns exercem esses palpites de preencher lacunas que a vida distribui segmentos plenos de hiatos. Sendo assim, uns e outros conseguem lançar seus dados internos e preencher determinados desafios da vida. Concerne ao artista esse papel.
Com efeito, através de um signo pictórico, emerge das pelágicas regiões nossas alguma espécie de ensinamento ou contemplação capaz de nos conduzir para lugares de bom senso que a gente muito ansiava. Tanta estima por uma imagem gera tento que exsuda identificação, tino que prova o seu valor intuitivo.
O que se pode afirmar sem medo de cometer um erro, sem demandar vênia, é que Mário Rasec semeou nos terrenos da arte, no que ela tem de melhor qualidade, uma semente capaz de produzir uma seara fértil e generosa. Lamentavelmente, os operários para segar as espigas são poucos, resta o aguardo paciente dos ceifadores do presente e do futuro, para não copiar, mas edificar uma continuidade que registre os que estiveram outrora, referendando nomes e cores, para que a História da Arte no Rio Grande do Norte destaque-se dessa esquina geográfica.
Detentor de uma arte pontuada por múltiplos olhares, sobretudo aquele que escolhe contemplar as coisas simples, retratando o anônimo e o que nem sempre se faz digno de ser contemplado ou de celebração, o artista encontra uma messe pronta para que ele seja um obreiro, visto não haver tantos operários que valorizem a sega cujo fruto é o das coisas ignoradas, do que não merece contemplação, sobretudo por termos uma sociedade do descartável, da pressa, de negação da memória e de um discurso que iguala tudo e todos em julgamentos e apreciações, fazendo acreditar que somos análogos.
Com efeito, esse apreço pelo simples, pelas coisas quedadas silentes, pelo silêncio nos retratos de pessoas, pela ausência de luz na retratação das autoestradas, conflui para o lugar de um sentido figurado, se quisermos compreender sua arte, ou seja, decalcar um eventual sentido para essa metáfora pictórica. Nessa linguagem elaborada por meio de cores, formas e geometrias, possibilita-nos extrair uma ideia, e esta, por sua vez, celebra uma comparação. Consabido é da metáfora como um lugar da multiplicidade de sentidos. Quero fazer saber que toda escolha na arte nunca é inocente. Há de buscar o que se vela pintado em um quadro. O ato de contemplar uma obra de arte nos deixa mais ricos interiormente, pois fomos postos diante de algo que se inaugura, no sentido de que uma linguagem pictórica é acrescentada à realidade. Ademais, não podemos esquecer desse olhar multiforme de Mário Rasec, como se fosse uma espécie de dessossego que conduz o artista a contemplar a realidade, tanto nas coisas observadas por todos quanto por resgatar eventos, paisagens e pessoas na labuta e que são desprovidas de nome.
Por fim, gostaria de dizer alguma coisa sobre a formação, o gosto e o pendor às artes visuais desse artista. Para os gregos antigos, o pendor para determinado ofício ou fazer algo no campo da arte, era nominado dynamis (disposição ou potência). Mário Rasec parecia deter essa predisposição desde a mais tenra infância, manifestando-se primeiro em garatujas, depois, ao se fazer homem, no gosto não apenas pelo que fora incipiente, mas naquilo que habitava seu ser, latejando nos músculos e em áreas da mente, configurando uma alma na qual a experiência com a realidade convergia para reforçar a constelação de signos relacionadas a encarar o mundo, e se comprazer com seus elementos de uma outra maneira, bem diferente de como lhe ensinaram a ser, sentir, representar a realidade com suas convenções que parecem ser naturais, contudo, não passam de um construto social, tido desde sempre como como uma espécie de estribilho, lançando seu refrão cansativo ao infinito.
Tenho para mim que, por deter uma particularidade bem distinta de seus pares, o artista ungiu sua obra de um misto de domínio técnico com a opção de transplantar para as telas as coisas cuja marca é o descaso, e o esquecimento, e o anonimato, e o silêncio, e a indiferença causadas por uma sociedade que elege determinados indivíduos ou signos como os que devem receber carimbos de valor e considerados os mais “certos”. Onde está escrito isso? Quem disse isso? Só pode ter sido um lugar de fala representante das classes dominantes. Para encerrar, creio ter ensaiado proclamar a beleza e o domínio de técnicas do pintor-artífice Mário Rasec, considerando-o um tanto diferente e que destoa de grande parte do que é produzido hoje nas artes visuais do Rio Grande do Norte. É como se fosse uma espécie de insubmissão face a esse grande e eminente sistema das artes visuais no nosso estado, não que tenha desdenhado de seu ninguém, mas é preciso remarcar que ninguém foi copiado. Pois eu digo que podem fazer melhor do que esse artista, mas ninguém fará igual.
Ademais, marcou o seu lugar por meio de técnicas desde sempre conhecidas, apenas selecionou os significantes de uma maneira bastante própria, celebrando o simples, o prosaico, o que tem movimento nas ruas e avenidas da cidade e aquilo que os transeuntes passam ao largo com indiferença. Eis a diferença desse artista: o belo está em toda parte, dissemina-se através de alguém que para um pouco para contemplar as coisas simples, buscando extrair e ressaltar determinadas cores, de antemão sabendo que isso não é prerrogativa de determinados lugares.
Não obstante, essas outras formas do belo, postas ao nosso redor, também são portadoras de metáforas visuais, tanto quanto aquilo que foi desde sempre convencionado como merecedor de ser organizado em objetos estéticos. Falo dos que estão nas salas familiares ou nos museus. Contudo, há de compreender que existe espaço para fruir ambas as formas. Ainda assim, se faz necessário redefinir a especificidade dessa arte direcionadora do olhar para coisas do dia a dia, sendo condescendente com as apenas atentas ao olhar, mas não vistas, retirando a gramática de viver no automático, desfrutando o que determinadas imagens do bulício das ruas e avenidas podem oferecer e serem conduzidas às artes visuais.
No final de tudo, eis que podemos asseverar a universalidade da arte de Mário Rasec, pelas razões as quais nosso estudo pontuou e fez considerar o seu apego ao cotidiano, compreendendo que os indivíduos de qualquer sociedade possam desfrutar a vida através de detalhes explícitos ou implícitos, através de elementos prosaicos, aquilo que a ninguém interessa. Essas coisas: barcos ancorados nas águas, sem a presença do humano, beco no centro da cidade, trailers com pequenos lanches para pessoas de vida modesta, paradas de transportes coletivos, mulheres conversando no meio da rua, boi no pasto, coletora de descartáveis, senhor cochilando ao lado do seu carrinho de fruta etc.
Afinal, quem irá se arriscar sair da zona de conforto, abandonar uma rotina doadora de segurança, não gostando nem um pouco de novidades (quase sempre é algo ruim). Prefere, então, prosseguir. O problema é que isso não aplaca as demandas íntimas, fazendo com que o indivíduo exista plenamente, seja uma presença no mundo, está longe de um viver com sabor e luz emanados de uma interação plena com o que o cerca. Assim, diz a poeta Henriqueta Lisboa: De nada sei agora / ancorado a um porto / a que os mapas não / se referem.