A Folha Patuense

email atual aluisiodutra@gmail.com

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

UCE - Curso de Ciências Contábeis em Ação.



 Alunos do Curso de Ciências Contábeis - Campus de Patu - desenvolvem o Projeto Custo de Vida, calculando o Custo Mensal da Cesta Básica em Várias Cidades da Região.

Alunos do Curso de Ciências Contábeis - Campus Avançado de Patu - através da UCE - Unidade Curricular de Extensão - Projeto Custo de Vida participam e executam o Projeto Custo de Vida, que tem como finalidade,  divulgar mensalmente os resultados referentes ao custo de vida nas cidades da área de abrangência do Campus Avançado de Patu-RN, onde os próprios alunos residem. Os valores do custo da cesta básica, apresentados têm como referência uma família composta por cinco pessoas (três adultos e duas crianças). Os dados numéricos (valores absolutos e percentuais) foram processados através da planilha de cálculo do Excel, razão pela qual é possível a existência de diferenças de arredondamentos, mas que não prejudicam a qualidade das informações. A pesquisa e coleta de preços é realizada mensalmente em diversos estabelecimentos comerciais, em três grupos de produtos: Alimentação, Higiene Pessoal e Limpeza Doméstica.   No mês de setembro de 2024, o Custo da Cesta Básica apresentou os seguintes valores nas cidades pesquisadas:

Almino Afonso RN: 1.358,80

Belém de Brejo do Cruz-PB: 1.218,11

Catolé do Rocha PB: 1.369,84

Lucrécia RN: 1.418,16

Patu-RN: 1.393,40

Umarizal-RN: 1.342,12.

O Projeto Custo de Vida, é coordenado pelo professor Es. Aluísio Dutra de Oliveira, sendo que a pesquisa de campo, ou seja, a coleta de preços e trabalhos estatísticos realizados através de uma planilha eletrônica, são desenvolvidos pelos alunos matriculados na UCE - Unidade Curricular de Ensino.

Os estudantes universitários coletam mensalmente os preços em diversos supermercados das cidades da região.






segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Especial: Mário Rasec: a celebração das coisas simples

Márcio de Lima Dantas     

                                                                              "Por eso, muchacho, no partas

                                                                                     ahora soñando el  regresso 

                                                                                             Que el amor es simple  

                                                                                               Y a las cosas simples  

                                                                                               Las devora el tempo "

                                                                                                                      Cesar Isella 



 

Mário Rasec (Natal, 1971), desde a primeira infância, começou a riscar garatujas;  o pendor para a arte anunciava-se bem cedo. Esse movimento de uma personalidade é  capaz de definir determinados contornos anunciadores das linhas de um espírito no qual a psiquê bandearia-se para os lados de alguma espécie de manifestação artística. O que  chamam coisas do espírito. No caso em questão, logo cedo, familiarizou-se com o lápis e  suas capacidades de preencher o vazio de brancas páginas. 

Dessarte, estava gestando-se um homem no qual alguns cercados da expressão  artística seriam eivados da boa semente de alguém com grande tino no modo de olhar o  mundo, criando um universo paralelo que a arte acrescenta ao nosso entorno, para os que  detêm o tento de mirar o que se movimenta ao seu redor, com redobrada atenção. E tudo  o que se mexe, intenso ou discreto, não passará impune, nem se manterá inerte ou some  pelo vento ou pela movimentação do humano. 

Contudo, o artista Mário Rasec não se limitou à tinta guache ou aquarela. Teve  aulas de manuseio com tinta óleo com o artista visual Luís Anísio. Também se inscreve  como escritor de poesias, ilustrador, aquarelista, roteirista, desenhista de quadrinhos.  Publicou os livros de poemas Apostasia (2003) e O corpo de Cristo e os apócrifos da  serpente (2008). Ganhou um concurso com o conto A caravana das bruxas (2020). 

Como podemos ver, recebeu o sopro de diversas musas, sendo as principais Érato  (poesia lírica) e Calíope (retórica, eloquência, prosa). Dando a conhecer alguém  familiarizado com todos os domínios nos quais fez valer sua bandeira estética,  circundando-a de um exercício que remonta à infância. Assim, fez-se maduro, detentor  de um naipe de cartas altas, dignas de jogar com os melhores artistas visuais do Rio  Grande do Norte. Sua naturalidade ao pintar é tamanha que não necessita de nenhum  trunfo, firmando-se na sua arte, sendo capaz de ser identificado como de validade ímpar.

Vejamos como é o método do nosso trabalho. Bastante simples. Partimos de um  agrupamento de objetos que detém algo em comum, ou seja, é uma combinatória de  determinado número de elementos com o mesmo mínimo múltiplo comum. Dessa forma,  ordenamos vários agrupamentos que nos conduzem a perceber não apenas como se  apresentam retratados, mas também, como comparações, ou seja, metáforas, que não  passam de uma coisa no lugar da outra, deixando o leitor prenhe de interrogações. 

A arte é a região na qual o indivíduo espelha-se ou refrata; contudo, não passa  impune à imagem ou objeto que se desenha aos olhos, assim como se fosse um posto no  qual repousa um enigma. Acaba bulindo por dentro, por saber que isso pode ser aquilo ou  ainda outra coisa. O certo é de uma coisa que intriga, que lhe diz respeito, pode nem saber  o que mesmo. 

Como dissemos, uma das formas de expressão do artista é a aquarela. Participou de  uma grande exposição: Cidade invisível (2018). Talvez não seja demais me precipitar ao  dizer que, dentre as várias técnicas de que faz uso no campo da arte visual, a aquarela  desponta como a que mais obtém êxitos melhores. Falo, sobretudo no sentido de  representar as coisas simples, as pessoas modestas, cenas do cotidiano que ninguém  repara ou barcos ancorados, sem apelos ou discursos que chamem atenção. Quedados,  estão à espera de quem os lance por águas mais profundas, na atividade de uma pescaria  ou de um passeio com crianças a bordo. 

O artista é um insigne observador de cenas do cotidiano, dos banais grupos de  pessoas conversando nos pequenos trailers, servindo lanches a transeuntes com preços  mais acessíveis. Suprime as cenas de lugares que de longe seriam passíveis de um olhar  mais acurado, haja vista que o contemplado, a um olhar qualquer, não passa de detalhes  do movimento da cidade. O olhar do artista e consequente vir a ser arte, sobre esse bulício, resgata indivíduos do seu anonimato.  

Assim mesmo, a partir do momento em que três mulheres estão encontradas no  meio da rua, por acaso? Marcaram? – Conversando –, salta aos olhos uma cor, diante dos  contornos: o cor-de-rosa da sombrinha esmaece o azul da mulher do lado direito, restam  listras que fazem o contorno dos corpos e do que se encontra enquadrado.  

Se se pode dizer uma coisa, é desse momento no qual a fala parece remeter ao gosto  de certos momentos da vida no qual viver é pura graça, e jogo acertado, e empatia de  indivíduos, e o saber da impermanência, e compreender a gramática ácida do tempo. 

Então, há de se deixar conduzir pelas pequenas coisas, pelo simples, pelo que não está à  venda, pelo espirituoso de uma alma, pelo aprendizado consentido; enfim, tudo  transmuta-se em sabedoria, em não julgar o próximo, em aceitar as vicissitudes, em ser  resiliente. 

A série de aquarelas, onde o artista conseguiu demonstrar o domínio de suas  capacidades enquanto artista visual, selecionando o que seria seu corpus extraído da  realidade, pois destoou da grande maioria de seus pares, cujas imagens quase sempre  dizem respeito a um regionalismo um tanto fatigado ou mesmo a temáticas retiradas da  pintura acadêmica. O insólito do seu trabalho é o fato de deter seu olhar sobre imagens  não encontradas correntemente no circuito dos nossos melhores artistas.  

Parece haver uma espécie de desprezo quando se trata de pintar motivos retirados do cotidiano das classes populares ou mesmo dar conta de imagens comumente não vistas  ou valorizadas na polis. 

Puro preconceito de classe, na medida em que, ao passar para uma representação  visual, transportadas para uma tela essas imagens, não só ocorre o fenômeno da Mímeses  (Aristóteles), ou seja, o artista não pinta ipsis literis, mas transfigura através do seu olhar,  ou seja, o que lhe chega como algo da realidade, em uma aquisição captada pelos sentidos,  torna-se arte pictórica. Existe uma ideia que a arte sugere, e por meio dessa ideia há uma  metáfora. Fazendo saber que toda arte é multisignificativa. A que veio? Desde quando  isso importa, e tais funcionalidades detém? Encontram-se como acréscimos à realidade, emanados de determinados indivíduos que são inquietos e procuram esclarecer aquilo que  se veste com as alfaias de uma esfinge, ensaiando deslindar meandros e estuários do  insistente rio da vida. 

Mesmo o corpus tendo sido de pequenas proporções, – o qual tivemos acesso para  ser contemplado e organizado em arranjos, – conseguimos a empreitada de efetuar  classificações a partir dos temas abordados pelo artista. Um dos mais importantes arranjos  concerne aos retratos de pessoas pintadas com aquarela, exercidas por meio de pinceladas 

com fino-trato, repercutindo os traços que pronunciam sua peculiar técnica, latejando em  qualquer mídia sua dicção, e que se configura como uma maneira de tornar belo aquilo que elege para sair de um anonimato, coisas que não são consideradas como dignas de  atenção. 

A menina do cabelo grande e assanhado contempla a câmera de quem a retrata,  como se pedisse desculpas por sua presença, por existir, por ocupar um espaço. Talvez  tenha aprendido a ficar no que convencionaram como seu lugar. Seguramente não integra  as classes mais altas do cume da pirâmide social. Seu cabelo, vestimenta e olhar de  subalterna dizem de uma condição social tida pela maioria como a Ideologia proclama  como “natural”. 

Mas como nos chega essa personagem visivelmente das classes populares? Ora, só  por meio das cores com as quais foi retratada, a forma já é o conteúdo, pode-se remeter à  sua equivalência social e de seus pares. O fundo é totalmente cinza, com suas nuances,  cor quase totalmente predominante, tanto no que sugere ser as paredes, quanto no  semblante e vestimentas, criando uma atmosfera de sombria clausura. 

E, dessa maneira, possibilidades de mudanças são poucas, por meio de rachaduras  adentrando para um novo lugar capaz de esplender uma luz que altere esses tons fechados,  alargando os horizontes da existência desse tão profundo anonimato dessa menina. E das  fissuras assome a luz com a boa-nova de um tempo anunciador de outros vizinhos, de  outra escola, de colegas do mesmo naipe. Enfim, que não haja exclusão.  

A luz adentra pelo lado esquerdo para o direito; mesmo assim, chega débil, um tanto  esmaecida, apenas determinando o contorno do corpo da garota, fazendo ver que o cabelo  é castanho, e referendando a atmosfera do todo: pouco ânimo e sorriso acanhado, como  se fosse uma espécie de vergonha de viver. 

Dos retratos, em número de quatro, tem um que destoa dos três, pois foi um  instantâneo, como se a senhora sentada não tivesse consciência de que estava sendo alvo  da mira de um fotógrafo. Com infinita dedicação e paciência, confecciona suas pulseiras  com contas de preço acessível. É tão-somente o que pode adquirir para ir matando o  tempo.  

Suas vestimentas não escondem a classe social a que pertence. É uma mulher do  povo, com blusa cinza e saia rosa, fundo todo preto, com enorme concentração e  distanciamento do seu entorno. Até parece que o tempo foi abolido, quando envolta em  tamanha tarefa de algo não funcional. Ocupa-se em fazer pequenas pulseiras, sem deixar  claro o motivo de tal empreitada. Sua mente parece aproximar-se do longe, evadindo-se  em espécies de pensamentos eivados de distância.

Com efeito, ao pegar as miçangas da caixa e enfiar em uma linha, conformando  uma pulseira, evade-se das datas e dos roucos relógios mensuradores do tempo,  implacáveis, que a nada exclui, que ninguém fica de fora, em uma pressa que a tudo  devora, seus filhos não recebem guarida ou apego. A bem da verdade, o que faz é dar as  costas ao humano, cabendo a cada um organizar um comportamento, uma resposta, uma  forma de aliar-se consigo mesmo, para haver um convívio menos espinhoso, apesar de  saber qual a gramática de dias que se alternam, semanas impulsionadas para um mês; por  fim, eis uma progressão aritmética: os anos deslizam sobre todos, atualizando de tempos  em tempos nossa idade, nosso rosto, nosso semblante, nossas limitações. 

A pergunta, quanto vale a vida, pouco importa. Está absorta, concentrada, livre de  si. Tão-somente a luz parece emanar do seu corpo e não de qualquer artefato no perímetro  onde repousa uma “existência ou uma presença” sobre a cadeira. 

É possível separar, para efeito de estudo, três retratos de pessoas: homem sem  camisa, mulher de blusa verde e mulher sentada na cadeira com blusa estampada, saia cor  de rosa, um lenço na cabeça e bengala. 

Esses tipos de pessoas são fáceis de encontrar sertão adentro. O olhar firme e  ausente de sorriso denota uma vida dedicada ao trabalho. Parece que não conheceram outra coisa. O trabalho concerne a esses indivíduos, desde crianças foram habituados à  labuta, é como se fosse uma disciplina que incute uma ética, uma postura diante de si e  dos semelhantes, haja vista a enorme quantidade de máximas, provérbios, ditos  sapienciais disseminados pelos agrupamentos de sertanejos que ainda resistem às formas  antigas de viver e encarar a vida. Enfim, essa maneira de ser, – que não queremos aqui  generalizar, – tendo em vista a complexidade do humano, quase sempre cria um ethos. 

Há de se pensar qual a relação desses rostos assemelhados a totens com os  elementos que, fundidos, deram origem a expressar um olhar firme, sem malícia, uma  ausência de sorriso e qualquer coisa que lembra o fato de se encontrar ancho no mundo. Se eu quisesse comparar, não seria difícil, basta ver as fotos (1936) de cangaceiros e  cangaceiras feitas por Benjamin Abrahão. 

É mister observar o queixo erguido, como se nada temesse ou fosse ameaça. Havia  o conluio com a caatinga, espécie de simbiose proclamando não o fato de homens e  mulheres estranhos aos espinhos de cactos, buscando coitos, afrontando seus perseguidores por entre carrascos, serrotes exalando calor. Olhar firme, e compleição  física, que nos conduz aos meandros de um rio com seu estuário resultado de muitos  outros rios que se juntaram, desaguando em uma só foz no mar. 

O que disse também serve para a mulher de blusa verde e para a de bengala. Ambas  com marcas no rosto que deixam entrever que a presença neste mundo não foi lá essas  coisas todas. 

Tanto quanto uns e outras pessoas retratadas através das exigências da aquarela, o  artista detém no seu acervo um homem moreno claro. O tempo passou deixando marcas  indeléveis nessa criatura. Apenas podemos afirmar que veio ao mundo, sem mãe, sem guia, sem conselho (Cecília Meireles). Como batata-doce que se planta nas vazantes, para  servir de alimento nas noites em que os grilos tiritam seus cantos. 

Mesmo assim, os vincados lábios e os olhos entram em sintonia, para explicitar a  compleição de uma experiência, configurando uma resignada aceitação da vida e suas  vicissitudes. Até parece que o que conheceu da vida foi o árduo trabalho de dias  assemelhados, como se fosse uma cantilena repetitiva. Trabalho que vincou os rostos de  um envelhecimento precoce, pleno de rugas, evocadoras, provavelmente, dos sóis que  teve de suportar, ressecando a pele. Mas quem haverá de substituir e ocupar o lugar desses  indivíduos? 

Afora o que analisamos, também há a coletora de material descartável, um homem  cochilando, com sua carrocinha de frutas, cantinho do pastel (como se fosse no meio do  canteiro), boi no pasto, trailer na rua (provavelmente a oferecer lanches por preços mais  acessíveis). Há uma vasta gama de retratar as coisas simples, como se detivesse um apreço  pelo que não é valor em nossa sociedade. Seria bom se perguntar quem ou que são esses  nas suas faces de insolência e o de se sentir importante e superior. Alguém permanecerá  imune à velhice, com suas enfermidades e limitações? 

E também eis os silentes barcos, sem a presença humana, entregues a um abandono  que somente a arte pode redimir dessa solitude e imprimir no papel, por meio das seguras  pinceladas, com as quais o artista consegue captar o efeito trêmulo da água, o reflexo do  que se encontra no entorno do barco. Um exílio preciso encontra uma postura de um  pintor capaz de retratar esses barcos ancorados na água ou ao largo de areias da praia,  fazendo saber de uma metáfora da solidão, cujo lugar do humano não se sabe qual. Há de se indagar: desde quando na arte, na tela ou outro suporte, a presença do humano é  imprescindível?

Pere um pouco. Longe de mim deixar passar alguma técnica digna de nota. Falo do  uso da tinta óleo. Existem três telas acercando-se do mesmo lugar semântico. Apresentam  algum recorte de autoestradas anônimas, cujo intuito parece ser pronunciar a metáfora de  caminhos que conduzem para algum lugar, mas também trazem, em um vai e vem na  mesma rodagem. Maria Rita interpretou com sentimento e rara afinação uma música que  trata desse ponto de uma estrada com mão dupla: O trem que chega é o mesmo trem da  partida. / A hora do encontro é também despedida (“Encontros e despedidas”. Milton  Nascimento e Fernando Brant). 

Dessa forma, as três vias de tráfego convergem para uma só metáfora: a  compreensão de determinados lugares com movimento de indivíduos ou no abandono  temporário parar ou encerrar alguns aspectos que nos concerne. Podemos extrair dela uma  didascália, um naco de filosofia, uma luz iluminadora de lacunas do nosso ser, estabelecer  relações culturais, contribuir para alumiar algo ainda sem luz no íntimo do nosso ser.  

Enfim, através de uma imagem emerge do nosso íntimo alguma espécie de  ensinamento ou contemplação capaz de nos remeter a lugares nos quais o bom senso  repousa plácido, e nem o certo nem o errado germinarão a semente da discórdia, elevando  nossa alma aos horários nos quais vigora o chamamento de pêndulos de um ouro puro,  escandindo o tempo, de um lado para outro. Ensinando-nos a difícil tarefa de aceitar as  contingências da vida como elas são. E se há de evocar, se necessitar, peça apenas um: o  dom da fortaleza de espírito. 

O que podemos chamar de verdades intuitivas ou o que alguns ousam dizer que  dispõe da capacidade de adivinhar. Conquanto, desde longe, se sabe que alguns exercem  esses palpites de preencher lacunas que a vida distribui segmentos plenos de hiatos. Sendo  assim, uns e outros conseguem lançar seus dados internos e preencher determinados  desafios da vida. Concerne ao artista esse papel. 

Com efeito, através de um signo pictórico, emerge das pelágicas regiões nossas  alguma espécie de ensinamento ou contemplação capaz de nos conduzir para lugares de  bom senso que a gente muito ansiava. Tanta estima por uma imagem gera tento que  exsuda identificação, tino que prova o seu valor intuitivo.

O que se pode afirmar sem medo de cometer um erro, sem demandar vênia, é que  Mário Rasec semeou nos terrenos da arte, no que ela tem de melhor qualidade, uma  semente capaz de produzir uma seara fértil e generosa. Lamentavelmente, os operários  para segar as espigas são poucos, resta o aguardo paciente dos ceifadores do presente e  do futuro, para não copiar, mas edificar uma continuidade que registre os que estiveram  outrora, referendando nomes e cores, para que a História da Arte no Rio Grande do Norte  destaque-se dessa esquina geográfica. 

Detentor de uma arte pontuada por múltiplos olhares, sobretudo aquele que escolhe  contemplar as coisas simples, retratando o anônimo e o que nem sempre se faz digno de  ser contemplado ou de celebração, o artista encontra uma messe pronta para que ele seja  um obreiro, visto não haver tantos operários que valorizem a sega cujo fruto é o das coisas  ignoradas, do que não merece contemplação, sobretudo por termos uma sociedade do  descartável, da pressa, de negação da memória e de um discurso que iguala tudo e todos  em julgamentos e apreciações, fazendo acreditar que somos análogos. 

Com efeito, esse apreço pelo simples, pelas coisas quedadas silentes, pelo silêncio  nos retratos de pessoas, pela ausência de luz na retratação das autoestradas, conflui para  o lugar de um sentido figurado, se quisermos compreender sua arte, ou seja, decalcar um  eventual sentido para essa metáfora pictórica. Nessa linguagem elaborada por meio de  cores, formas e geometrias, possibilita-nos extrair uma ideia, e esta, por sua vez, celebra  uma comparação. Consabido é da metáfora como um lugar da multiplicidade de sentidos.  

Quero fazer saber que toda escolha na arte nunca é inocente. Há de buscar o que se  vela pintado em um quadro. O ato de contemplar uma obra de arte nos deixa mais ricos  interiormente, pois fomos postos diante de algo que se inaugura, no sentido de que uma  linguagem pictórica é acrescentada à realidade. Ademais, não podemos esquecer desse  olhar multiforme de Mário Rasec, como se fosse uma espécie de dessossego que conduz  o artista a contemplar a realidade, tanto nas coisas observadas por todos quanto por  resgatar eventos, paisagens e pessoas na labuta e que são desprovidas de nome. 

Por fim, gostaria de dizer alguma coisa sobre a formação, o gosto e o pendor às  artes visuais desse artista. Para os gregos antigos, o pendor para determinado ofício ou  fazer algo no campo da arte, era nominado dynamis (disposição ou potência). Mário Rasec  parecia deter essa predisposição desde a mais tenra infância, manifestando-se primeiro  em garatujas, depois, ao se fazer homem, no gosto não apenas pelo que fora incipiente,  mas naquilo que habitava seu ser, latejando nos músculos e em áreas da mente,  configurando uma alma na qual a experiência com a realidade convergia para reforçar a constelação de signos relacionadas a encarar o mundo, e se comprazer com seus  elementos de uma outra maneira, bem diferente de como lhe ensinaram a ser, sentir,  representar a realidade com suas convenções que parecem ser naturais, contudo, não  passam de um construto social, tido desde sempre como como uma espécie de estribilho,  lançando seu refrão cansativo ao infinito. 


Tenho para mim que, por deter uma particularidade bem distinta de seus pares, o  artista ungiu sua obra de um misto de domínio técnico com a opção de transplantar para  as telas as coisas cuja marca é o descaso, e o esquecimento, e o anonimato, e o silêncio,  e a indiferença causadas por uma sociedade que elege determinados indivíduos ou signos  como os que devem receber carimbos de valor e considerados os mais “certos”. Onde está  escrito isso? Quem disse isso? Só pode ter sido um lugar de fala representante das classes  dominantes. 

Para encerrar, creio ter ensaiado proclamar a beleza e o domínio de técnicas do  pintor-artífice Mário Rasec, considerando-o um tanto diferente e que destoa de grande  parte do que é produzido hoje nas artes visuais do Rio Grande do Norte. É como se fosse  uma espécie de insubmissão face a esse grande e eminente sistema das artes visuais no  nosso estado, não que tenha desdenhado de seu ninguém, mas é preciso remarcar que ninguém foi copiado. Pois eu digo que podem fazer melhor do que esse artista, mas  ninguém fará igual. 

Ademais, marcou o seu lugar por meio de técnicas desde sempre conhecidas, apenas  selecionou os significantes de uma maneira bastante própria, celebrando o simples, o  prosaico, o que tem movimento nas ruas e avenidas da cidade e aquilo que os transeuntes  passam ao largo com indiferença. Eis a diferença desse artista: o belo está em toda parte,  dissemina-se através de alguém que para um pouco para contemplar as coisas simples, buscando extrair e ressaltar determinadas cores, de antemão sabendo que isso não é  prerrogativa de determinados lugares. 

Não obstante, essas outras formas do belo, postas ao nosso redor, também são  portadoras de metáforas visuais, tanto quanto aquilo que foi desde sempre convencionado  como merecedor de ser organizado em objetos estéticos. Falo dos que estão nas salas familiares ou nos museus. Contudo, há de compreender que existe espaço para fruir ambas  as formas. Ainda assim, se faz necessário redefinir a especificidade dessa arte  direcionadora do olhar para coisas do dia a dia, sendo condescendente com as apenas atentas ao olhar, mas não vistas, retirando a gramática de viver no automático,  desfrutando o que determinadas imagens do bulício das ruas e avenidas podem oferecer  e serem conduzidas às artes visuais. 

No final de tudo, eis que podemos asseverar a universalidade da arte de Mário  Rasec, pelas razões as quais nosso estudo pontuou e fez considerar o seu apego ao  cotidiano, compreendendo que os indivíduos de qualquer sociedade possam desfrutar a  vida através de detalhes explícitos ou implícitos, através de elementos prosaicos, aquilo  que a ninguém interessa. Essas coisas: barcos ancorados nas águas, sem a presença do  humano, beco no centro da cidade, trailers com pequenos lanches para pessoas de vida  modesta, paradas de transportes coletivos, mulheres conversando no meio da rua, boi no  pasto, coletora de descartáveis, senhor cochilando ao lado do seu carrinho de fruta etc. 

Afinal, quem irá se arriscar sair da zona de conforto, abandonar uma rotina doadora  de segurança, não gostando nem um pouco de novidades (quase sempre é algo ruim).  Prefere, então, prosseguir. O problema é que isso não aplaca as demandas íntimas,  fazendo com que o indivíduo exista plenamente, seja uma presença no mundo, está longe  de um viver com sabor e luz emanados de uma interação plena com o que o cerca. Assim,  diz a poeta Henriqueta Lisboa: De nada sei agora / ancorado a um porto / a que os mapas  não / se referem.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Especial: O tipógrafo Meneleu: um trabalho que mescla funcionalidade e arte.

Márcio de Lima Dantas 

Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem herdade a  

herdade, até que não haja mais lugar, e fiquem  

como únicos moradores no meio da terra. 

Isaías, 5:8 



O cuidado e a responsabilidade do Sr. Henrique para com o seu ofício (Carimbos  Mossoró), o de administrar uma tipografia na cidade de Mossoró, nos legou um pequeno  e precioso álbum pleno de imagens advindas de xilógrafos anônimos e uma quantidade  razoável de rótulos e outros materiais oriundos do trabalho do tipógrafo Meneleu. A gente bem que podia situar o artista por meio de dados que o tornam mais  fascinante do que um tipógrafo nascido em Areia Branca. Nasceu em 1917, vindo a  falecer em 17.01.2008, com 90 anos. Filho de Antônio Caetano dos Santos e Aureliana  Leonísia dos Santos. Com efeito, Meneleu participou indiretamente da Insurreição Comunista de 1935  (23 a 27 de novembro). Tinha apenas 18 anos. Foi arrolado como um dos participantes  ativos por denúncia de seus amigos de trabalho, que, para se livrarem, puseram-no como  um dos principais atores do movimento. Na verdade, trabalhava no jornal A Ordem, tendo  sido, junto com os ditos colegas, conduzido para o jornal A Liberdade, que era o órgão  oficial dos que se organizavam para integrar o grupo responsável pela Revolta Comunista.  Fora levado não porque era militante comunista, mas porque era um dos melhores  tipógrafos da cidade (SANTOS, Francisco Meneleu dos.

Coisa julgada e cartas de  amigos. Mossoró: Queima-Bucha, 2006). Dessarte, editando o jornal A Liberdade, no qual eram difundidas as ideias do  Levante Comunista, não havia, por seu turno, uma convicção política militante. Era mais  um operário de grande qualidade no domínio da tipografia. Amando de verdade o seu  trabalho, é suficiente contemplar alguns rótulos de produtos a serem comercializados para  se ter uma ideia do seu esmero e capacidade com as formas e cores desses trabalhos. Por essa participação, foi conduzido aos cárceres de Mossoró e Natal, durante seis  anos e meio. Foi condenado à revelia, denunciado pelos seus colegas de trabalho,  extremamente covardes e canalhas, que, para tirar o corpo de fora, preferiram trilhar o caminho do mau-caratismo pondo um colega em uma situação extremamente injusta.  Com 21 anos já estava preso, colocado junto com condenados por roubo, assassinatos e  outros crimes. Como era um homem gentil e honesto, não teve problemas de  relacionamento com os chamados presos comuns, tanto na Cadeia Velha de Mossoró  quanto nas prisões de Natal. O certo foi dito no seu livro: “Só os mais fortes resistiam e  eu vejo hoje que eu era forte por ter enfrentado tudo aquilo”. Ao que tudo indica, sua fortaleza de espírito advinha de um caráter altivo,  provavelmente cultivado por seus pais, em uma casa no qual havia a honestidade e a  compreensão do trabalho como valores a serem considerados em todas as dimensões de  uma presença no mundo. Não à toa grande parte do seu livro é composto por cartas de  amigos. Meneleu sabia o quanto vale uma relação de amizade. Homem despido de  qualquer forma de preconceito, onde ia se dava bem com as pessoas, o melhor exemplo  foram os seis anos e meio nos cárceres, misturado com toda espécie de pessoa. Distraindo se com o xadrez, para matar o tempo. Antes de tudo, mesmo com pouca idade, já se definira como homem de atitude,  detendo uma personalidade empreendedora, vivedor e com criatividade, mesmo sendo  um prisioneiro do estado, fora capaz de organizar uma sapataria na prisão, favorecendo  ganhar algum dinheiro, bem como ocupando e gerando pequenas rendas para outros  prisioneiros. 

A injustiça de pagar o que não devia, como prisioneiro, maltratou, mas não  o derrubou, talvez por traços de personalidade que em todo homem faz com que de linhas  seja capaz de dispor de forma ordenada configurando um tecido, não apenas para se  aquecer, mas para reforçar seu penetrante comportamento em sociedade. Sair e entrar de  lugar qualquer, de cabeça erguida. 

Sim, também confeccionava artesanatos. Caixas de sapatos, broches personalizados (sob encomenda), maletas para viagens, pinturas aplicadas com decalque para azulejos etc. Espírito penetrante, era capaz de desenvolver ideias jacentes no seu íntimo. Tinha  que se virar, pois o dinheiro que recebia como presidiário não cobria nem sua alimentação  (SANTOS, 2006, p. 33). Havia de suportar, pois mesmo alguns parentes detendo algum  dinheiro, foram incapazes de ajudá-lo. Dizem que temos mais reservas de sofrimento do  que pensamos.  Muito cedo Meneleu provou da raiz amarga que é a crueldade e a perversidade  vindas muitas vezes de quem mais nos são próximos. Aqueles que nos nossos momentos  mais difíceis são incapazes de ajudar, com uma palavra de apoio ou algo mais vinculado  a uma atitude, esses são os piores, pois sabem ou têm a ajuda, mas se negam, por pura  covardia ou fazer a escolha de costumes e pessoas que não se coadunam com os que  destoam de determinados costumes sociais. É uma raça de víboras! Mesmo tendo passado todas essas vicissitudes, o tipógrafo ergueu-se, tal fênix que  renasce das cinzas. Faleceu com 90 anos. O humano surpreende. Do humano, espera-se  tudo e mais alguma coisa. Tem gente para tudo, ainda sobram 14. Meneleu escolheu o  caminho mais limpo, ou melhor, já estavam no seu interior os brotos e sementes de um  caráter bom e respeitador do que não lhe era semelhante. No seu livro há um vetor que singra todos os seus escritos: é o valor da amizade.  Cultivava seus amigos como companheiros e irmãos. A amizade (philia) entre homens é  um dos sustentáculos da existência, outorgando uma parecença do que somos como gente  ou como profissional. Esses laços de legítimo afeto nos tornam mais anchos de si mesmos,  permitindo o reconhecimento de uma presença no mundo, por consequência, vemos e  somos vistos, nessa herdade que é o Amor. “Em resumo: fui preso no dia 27 de novembro  de 1935, posto em liberdade no dia 31 de julho de 1937. 

Preso novamente em 24 de  novembro de 1938 e solto no dia 02 de outubro de 1943” (p. 35). Até onde se sabe, resignou-se à condição de prisioneiro, aceitando as  consequências de uma traição e uma condenação à revelia. Estava no lugar errado, na  hora errada. O oportunismo e a canalhice do humano vigoraram com força e fúria sobre  o rapaz de vinte e poucos anos. Quando faleceu, com 90 anos, a imprensa divulgou que  era “o último remanescente do Levante Comunista do país”. Foi elevado à categoria de  mito, sem compreender direito as razões pelas quais havera de representar um papel que,  talvez, não se reconhecesse, pois no seu único livro fala que não passava de um tipógrafo  que fazia tudo com esmero, como sói acontecer com todos aqueles que amam o seu  trabalho. Longe de compreender como um fardo pesado para conduzir a cada dia que  desperta o jovem homem sentia prazer em ocupar os dias da semana com algo edificante  e aplacador das forças latejantes no seu interior. Estranhamente o social, muitas vezes, não segue a gramática que o estrutura,  detentora de uma lógica um tanto previsível para os mais atentos e argutos. Eis Meneleu  transformado em um perigoso militante comunista. Assim foi encarcerado por colegas  que o deduraram, sem ter nada a ver com o Levante Comunista de 1935. 

Ungido como  mito, talvez como um lugar necessitado de ser preenchido, repete o que poetas e  antropólogos disseram acerca do mito adentrar pela História (Gilbert Durand). Sendo assim, o que aprendemos e fomos acostumados a colocar em prática, ou  contemplar, é exatamente o contrário. A História lança seus fatos e retóricas em direção  ao mito. Assim a lenda se escorre /A entrar na realidade (Fernando Pessoa). Pensar dessa maneira nos conduz a ressignificar os chamados fatos históricos, compreendendo a  autonomia do discurso mítico com valia e passível de explicar determinados eventos  sucedidos na vida social. O melhor exemplo é que sucedeu com Meneleu, encarcerado  durante seis anos e meio, por algo que não praticou. Ocupou um lugar na Insurreição  Comunista. As classes dominantes precisavam de um indivíduo para punir e fazer valer  seu julgo e mando.  Vejamos Meneleu como tipógrafo. O Sr. Henrique Mendes deixou um pequeno  álbum ofertado ao poeta e ensaísta do Poema Processo, Anchieta Fernandes. Ao nos  depararmos com os rótulos de firmas comerciais ou produtos a serem expostos à venda,  nosso olhar naturalmente se detém sobre uma profusão de formas organizadas com as  cores vermelha, laranja ou verde. O fundo prima por uma precisa geometria de triângulos,  quadrados e retângulos, vincados por uma simetria bilateral. Essa economia de meios é  apanágio de alguns artistas (aqui também está relacionada às maneiras de compor  oferecidas pelas máquinas da tipografia, numa tentava de amealhar apenas determinadas  cores, diminuindo os gastos). Assim, podemos analisar com mais cuidado essa espécie de trabalho, não tão  simples, como pode parecer à primeira vista. Sucede um minimalismo em todos os planos  dos trabalhos, provavelmente por questões vinculadas ao manuseio das tintas e necessária  repetição das figuras geométricas. É como se fosse uma economia de meios para fazer  render mais o que dispunha o trabalho a ser submetido às máquinas de impressão da  tipografia. Só para se ter uma ideia, não encontramos uma rica paleta de cores nos trabalhos  de Meneleu. Basicamente o vermelho, o laranja e o verde. O branco, para separar espaços  ou salientar algum chamamento expressional e o preto para contornos ou contrastes. 
Mas  quem foi que disse que esse artista tipógrafo não fora capaz de uma grande versatilidade,  mesmo dispondo de um reduzido naipe de cores? O que determina a faculdade de criação  de um artista refrata geografias ou o tempo histórico. O material disponível diante dele  conflui para áreas internas onde se encontra uma subjetividade latejando de significantes,  erguendo-se em formas no qual a maneira de se expressar outorga o ímpar, em feitio de  originalidade. Por falar no uso de poucas cores, Meneleu talvez tenha sido, no Rio Grande do  Norte, um vanguardista do design gráfico contemporâneo, haja vista que este se rege por uma exígua gramática de cores e formas, em uma justaposição nominada minimalismo, uma corrente bem presente na arquitetura contemporânea. Assim sendo, o arquiteto minimalista opera uma série de modulações a partir do  cimento armado, do vidro e dos jardins, passando a imagem de uma construção límpida e com forte apelo à razão. Confirmando um antibarroquismo, haja vista suas linhas e  ângulos retos, erguendo-se como construção que refrata o decorativo e o excesso de meios  e linhas curvas do Barroco. Dessarte, alguns teóricos e críticos defendem a tese de que o Barroco enquanto  estilo não pode ser restrito ao final do século XVI e meados do século XVIII, tendo  atingido o seu fastígio na Península Ibérica, na qual Portugal e Espanha foram os dois  países, incluindo suas colônias na América, no qual essa forma de arte mais vigorou com  intensidade. Basta ver nossas igrejas antigas em Pernambuco ou na Bahia.  Tangenciando essa concepção do Barroco como estilo histórico vinculado a um  tempo, outros teóricos compreendem essa estética como invariante inerente ao homem  em sociedade, ele emerge e desperta sua vitalidade consoante o Espírito de época, quer  dizer, de acordo com os modos de pensar e agir de determinado tempo, haverá sempre  um modo de se fazer presente e realizar as justaposições com substratos do que existe, e  é entendido como “natural”. Há de compreender essa necessária síntese, pois não pode  negar o que é ou fora um estilo que vivificava esteticamente agrupamentos sociais,  submetidos ao ar do tempo. Sua magnum opus, considerando apenas o álbum deixado por seu Henrique, creio  que seja o rótulo da Aguardente Caxambu, totalmente estruturada na cor verde. O ponto  de partida é o convencionado retângulo, onde se encontram de ambos os lados robustos  colmos de cana-de-açúcar, elevando-se para o alto, como se fossem uma moldura, e ao  mesmo tempo evocando a planta da qual se extrai a aguardente.  O tipógrafo revela um acurado senso de ocupação do espaço, em uma rigorosa  simetria bilateral. Parece que o rótulo da aguardente do Sítio Baependi, de Luiz Gomes  (RN), pertencente ao Sr. Antônio Gurjão, adquiriu uma maior intensidade face ao  conjunto organizado por meio de um monocromatismo na cor verde.  Ora, há de lembrar o objetivo do design gráfico: imprimir uma forma  comunicativa. Assim também o que rege um rótulo feito em uma tipografia considera-se  como delinear uma forma que promova o máximo de comunicação. No nosso caso, tal objetivo foi alcançado através de poucos paradigmas, gerando um sintagma bastante  simples, capaz de despertar e interagir com aquele que se dispõe diante do objeto posto à  venda.  Com efeito, o espectador ou o freguês, buscando uma garrafa de aguardente, deixa-se conduzir por aquilo que se mostra em primeiro lugar: o rótulo de uma garrafa de  aguardente. Esse fenômeno mergulha em regiões as mais profundas de uma subjetividade  já propensa a consumir determinados produtos expostos nas prateleiras dos  estabelecimentos comerciais. Enfim, a empatia daquele que contempla conduz a adquirir  ou beber. Esperem, mas não é só isso.

O tipógrafo Meneleu, consciente ou  inconscientemente, elegeu a cor verde sem nenhuma nuance; o verde pincela todos os  elementos no apresentar uma ideia através de recursos analógicos (desenhos) ou digitais  (as letras e as fontes empregadas). Essa justaposição logrou êxito no seu propósito: uma  identificação de eventuais compradores da Aguardente Caxambu, feita de pura cana-de açúcar. Singrando no preciso meio do arranjo, adentra um grande navio, com o nome de  Baependi. Sua presença evoca o poder do fabricante. Ao que parece, também é elaborada  para exportação. 

Verde que te quero verde. 

Verde vento. Verdes ramas. 

 Federico Garcia Lorca 

Todavia, há de citar alguns trabalhos do álbum. Tem um rótulo do Calçados  Arruda muito bem construído com apenas as cores preto e vermelho A alternância das  duas cores imprime ao conjunto um efeito de grande beleza, fazendo esquecer que é uma  simples propaganda de uma loja e se deixando levar pelo que aparenta. O nome Calçados Arruda está escrito em um espaço no centro, para onde convergem figuras geométricas,  espécie de falsos triângulos retângulos, cujo menor ângulo encontra-se como se fosse  debaixo das figuras geométricas, sendo alternadas em preto e vermelho. Há também um outro rótulo, o de Calçados de Ana. Este parece ser o que detém  o predomínio da linha curva. Organizado nas cores amarelo e vermelho, as letras têm um  apreço pelo rebuscamento de um desenho vermelho, em fundo branco, com grande  evocação do adorno. Não há como não parar e observar o gestual das letras D e A, plenas de curvas e uma linha que entra e sai, como se houvesse uma inquietude ou tônus nervosos nesses desenhos. Coincidentemente, a proprietária é uma mulher, indo ao encontro de  curvas que no imaginário remetem ao feminino. Calçados Amaral, com fundo totalmente verde e a cor amarela no interior. Calçados Luzete, com amarelo como pano de fundo. No centro, uma espécie de sol  amarelo irradiando a cor branca para todo o retângulo. O nome da casa comercial  encontra-se em vermelho, em um tipo maior, outras informações estão organizadas em  vermelho. 

Aguardente Alcatrão, estrutura-se a partir de figuras geométricas em amarelo e verde. Enfim, faço saber de propaganda de quatro casas comerciais em um mesmo  retângulo, fazendo valer uma economia quando da impressão, não perdendo nada do  espaço, provavelmente recortava manualmente depois de impresso. Falta só uma coisa. Quero dizer da importância do uso da cor verde. No  simbolismo das cores, podemos atestar o quanto essa cor verde puro, integrando os  elementos básicos dessa composição visual, pode contribuir para a riqueza imagética do  design gráfico. Por seu turno, contribui para uma empatia, gestada no contemplar os  elementos intrínsecos a todo e qualquer desenho apresentado como propaganda, no nosso  caso um rótulo de uma bebida bastante comum. Eis que temos forma, cor, tipo, espaço e  imagem, dispostos de uma maneira que a função estética das linguagens visuais, consegue  alcançar um nível de rara beleza, concedendo ao tipógrafo Meneleu uma capacidade de,  ao criar algo funcional, também arrastar consigo a dimensão estética, fazendo conviver  em um mesmo ícone o que é do prático com o estético. No livro Coisa julgada e cartas de amigos, é possível riscar contornos acerca da  personalidade de Meneleu. Ao que parece, levava tudo a sério e trabalhava onde quer que  fosse com enorme responsabilidade, fazendo valer o seu imenso talento para as artes  gráficas. Tanto é que de imediato podemos apreciar seus trabalhos e adivinhar de onde  emanou determinado trabalho, haja vista o manuseio dos elementos que são uma  constante numa tipografia, quer seja um número reduzido de cores ou as formas desenhadas no retângulo levado à impressão. Se para alguns isso funciona como “falta”,  para o nosso tipógrafo incitava a se virar, configurando um minimalismo. O pouco nada  dizia, pois fora capaz de se “virar” em um grande número de variações, pondo sua  assinatura ímpar na sua produção.









Especial: Sr. Henrique: primórdios da tipografia em Mossoró.


Márcio de Lima Dantas 

Ofereço este álbum de xilogravura ao amigo  

Raimundo Soares para fazer uso do que quiser.  

9/10/72 





Henrique Mendes (25.07.1925) era filho de Arcelino Mendes e Maria Augusta  Mendes, quando jovem, trabalhou na Gráfica Massilon (Massilon Pinheiro Costa,  06.09.1922 – 21.02.2014, casado com a Sra. Rita de Lima Costa, 13.02.1921 – 27.09.2014). Em seguida, vai trabalhar por sua própria conta, colocando uma pequena  tipografia: “Carimbos Mossoró”, na Rua Dr. Antônio de Souza, 55, Centro. Em pouco  tempo, ascendeu como uma das maiores instituições de serviços gráficos da cidade. Era  conhecido pelo esmero e bom acabamento das suas encomendas.  


Para além dos serviços tipográficos, o Sr. Henrique também trabalhava com a  xilografia, cuja titulatura era a seguinte: Henrique Mendes e Filhos, Fátima Mendes e  Michel de Montaigne Mendes. Alguns indivíduos parecem impulsionados pelos dons da  deusa Mnemósine, resguardando a memória, individual ou coletiva, se não por meio da  eloquência ou retórica verbal, lançando aos pósteros obras que permanecem como recitações que um ou outro decora e reverbera, mas também pode ser por meio de escritos  ou imagens organizadas em cadernos ou álbuns. 


Tudo é impermanente, tudo muda, fecham-se ciclos, assim é o dentro, também o  fora está submetido às mesmas leis, contudo, parece haver alguns assinalados com a graça  de uma atração que vigora e os impulsiona a fazer dessa dádiva não um meio de vida,  mas conduzindo nacos de reflexão e prazer que integram sua permanência no mundo. 

Não é tão difícil identificar essas pessoas, quase sempre são capazes de memorizar  datas, relembrar costumes em extinção, conhecer sua genealogia, evocar os que se foram  longevos. Eu acho que é uma expressão de um afeto, de um amor que faz questão de não  esquecer os laços parentais, haja vista ter convivido e sido amado, permanecendo na  mente como sabedoria e no coração como o puro amor não sujeito a qualquer tipo de  condição. 

Era aqui que eu queria chegar. Desse seu empreendimento, o Sr. Henrique teve o  cuidado de organizar um pequeno álbum dividido em duas partes. Na primeira, são as xilogravuras oriundas de artesãos anônimos, provavelmente funcionários do  estabelecimento comercial, embora apareçam as assinaturas de uns poucos, tais como:  Silvan ou Jorge. Predomina o anonimato, muito provável que não atinavam para esses  desenhos serem obras de arte ou qualquer coisa que o valha. Interessante remarcar a  quantidade de assinaturas em forma de rubricas, provavelmente carimbos encomendados  para uso de firmas comerciais e quejandos. 


A xilogravura é uma forma de gravura bastante popular no Nordeste, esse  fenômeno da sua popularidade não restringiu-se às capas dos folhetos de cordel ou ilustrar  internamente algum folheto, mas houve quem trabalhasse para ilustrar uma matéria de  jornal. João da Escócia ficou conhecido como xilogravurista, pois ilustrava algum texto  do jornal O Mossoroense. Talvez tenha sido o melhor representante dessa forma de arte  em Mossoró. 

Teríamos que ver o motivo pelo qual houve uma unânime recepção dessa técnica  de gravura na madeira. Provavelmente havia no imaginário da região Nordeste, a parte  mais antiga do Brasil, signos familiarizados, no sentido de uma constelação de imagens.  


Ora, todo mundo sabe que o cordel diz respeito à Idade Média de Portugal, – assim  como outras invariantes estruturais (Gilbert Durand) –, foram trazidas com os que  primeiro habitaram o Nordeste. Esse traço de cultura encontrou terreno fértil em gentes  analfabetas ou pouco familiarizadas com os livros. Havia quem lesse nas feiras, para  chamar atenção e vender folhetos de cordel. Vale lembrar a quantidade de arcaísmos no  vocabulário ou na gramática da língua portuguesa sertões adentro (mangar, cachete,  morgado, afolozado, agoniado, invocado). Para finalizar, vou citar só um nome de um  mestre da xilogravura: o pernambucano Gilvan Samico, herdeiro da cultura do medievo. 

Na segunda parte, e a mais preciosa e fascinante do álbum, o organizador  esclarece: A seguir pertence a Francisco Meneleu (11.12.1972). É bom lembrar que tem outro ensaio acerca dessa segunda parte do álbum, detendo-me com mais vagar sobre os  trabalhos de Meneleu, demonstrando o quão era um grande artífice da tipografia, fazendo  valer a dimensão estética convivendo com os trabalhos meramente funcionais, como os  rótulos para produtos comerciais que iriam ser etiquetados em série, circulando em  Mossoró ou outras cidades próximas. Lucrécia, Pau dos Ferros, Luiz Gomes, Caraúbas,  Guarabira (PB), Aracati (CE). 


Os “Carimbos Mossoró”, devido ao cuidado com o qual fazia suas encomendas,  logo ficou conhecido na cidade como a melhor empresa no ramo da xilogravura e  tipografia direcionada às casas comerciais e anúncios de seus produtos. Gostaria de citar 

outras tipografias que integram o patrimônio dos serviços demandados pelo comércio da  cidade. Tipografia Mossoró do Sr. Ossivaldo (Alto da Conceição), Tipografia Expressa  do Sr. Raimundo Nonato Luz (Rua Coronel Gurgel), Editora comercial (vizinho ao Cine  Caiçara), confeccionavam livros, pois detinham um linotipo. Papelaria e Tipografia “O  Nordeste”, fundador Martins de Vasconcelos. 

Por que será que a cidade de Mossoró detinha um parque gráfico de grande  variedade e envergadura? Ora, a cidade sempre foi o maior polo econômico da região  Oeste, notabilizando-se por sua autonomia com relação às duas capitais equidistantes:  Natal e Fortaleza. Ademais, as cidades pequenas e circunvizinhas tinham Mossoró como  referência no confeccionar serviços ou fornecimento de mercadorias. Deixe eu dizer uma  coisa, a cidade absorvia a produção de algodão dos sertões adentro, descaroçando e  organizando em fardos, sendo conduzidos para o refinamento e a separação de produtos  originiados do algodão, tais como, fibras para tecidos, óleo vegetal e o resíduo (torta) de  algodão para a alimentação dos animais.  


Havia uma grande fabricação de cera de carnaúba, advinda das palmeiras que  acompanhavam o Rio Mossoró, como matas ciliares, devido à fertilidade dos solos e às  aguas encharcadas pelo belo rio que banhava a cidade. Outrossim, a cidade era a maior  produtora de sal do país, com suas salinas, chantadas de um lado e de outro das estradas, refletindo um transparente sol, necessário para evaporar a lâmina de prata dos tanques.  Esses aliados do sol, os ventos advindos do litoral, apressavam esse processo de  finalmente reter só o sal cristalino nos tanques, onde depositara a água bombeada do mar. Não podemos esquecer de registrar o trabalho do Sr. Alfredo Fernandes, estabelecido na  cidade em 20.04.2020, com o intuito de beneficiar e comercializar o algodão. Funda a  firma Alfredo Fernandes & Companhia. Não se restringia ao algodão, mas também às  peles de ovinos, caprinos, bovinos, cera de carnaúba, sementes de oiticica óleos vegetais. 

Vale salientar que esse comércio lançava seus vetores para praças distantes: EUA e  Europa. 

Tudo o que foi acima dito, com datas, lugares, completos nomes, não passa de  uma forma de resguardar os traços dos que ousaram construir a municipalidade,  outorgando valor por meio de incensar o altar da deusa Mnemósine, evocando os dons  que nos torna capazes de reter em si, – mesmo numa época tão tardia, – uma história que  escorre pela oralidade, de colocar uma placa aos abolicionistas, de sentir o gosto pautado no que ainda resta de fachadas antigas, renomeadas ruas e praças. Enfim, como guardiões informais de uma cidade outrora próspera, movimentada pelo seu rico comércio baseado  em um rico extrativismo vegetal e consumidora do algodão vindo de sertões adentro. 

 

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Especial: Caminhando pelas adjacências da obra do pintor Varela

  

Márcio de Lima Dantas 

Para onde me irei do teu Espírito ou para onde  

fugirei da Tua face? Se subir ao céu, tu aí estás; se  

fizer no Seol a minha cama, eis que tu ali estás  

também. 

139: 7-8 

Luiz Varela Laurentino da Cunha (1941-2005) é um dos principais personagens  das artes visuais na cidade de Mossoró, integra, junto com outros colegas, uma  circunscrição temporal. Assim é que podemos arrolar os nomes de Boulier, Ney Morais,  Rogério Dias, Vicente Vitoriano e Toinho Silveira. Mesmo integrando um luxuoso naipe  de produtores de arte que por tempo muito ou tempo pouco passou pelo ateliê do grande  nome na pintura da cidade: Marieta Lima, por sua longevidade, em torno de 100 anos,  passaram pela estreita rua ao lado da ACEU, muitos do que hoje se destacam como a  prata das artes visuais no estado do Rio Grande do Norte. Também é bom lembrar que  não configuram uma geração uniforme tanto na forma quanto nas temáticas. Só para citar  um exemplo, é bastante distinta a obra de Vicente Vitoriano, com suas imagens  dialogando com o que de mais contemporâneo havia.

Comparando com Toinho Silveira, que optou por um traço naïf e desenhos de uma grande simplicidade estilística,  configurando uma espécie de arte ingênua dotada de uma elaborada feitura. 

Assim sendo, o constelado céu da arte, com suas plêiades de variegadas estrelas,  pulsando cada uma a seu gênero e modo, nos faz atestar por meio dessa comparação a  diversidade de uma cidade ainda um tanto provinciana, o quão havia toda uma sorte de  maneiras de se expressar ou de ousar uma resposta ao que havia no mundo da arte, quer  seja buscando os meios de pintar evocando a herança deixada na tradição (Academicismo  ou Classicismo), ou estabelecendo leituras com o que havia de mais contemporâneo, das  vanguardas em evidência ou aquilo que imprimira seu número na sequência cronológica periodológica da marcha inelutável da arte em sua inquietude de bulir no íntimo de alguns indivíduos, mas que jaz, nos amplos espaços internos, necessidades de expressões bem  diferentes dos paradigmas que conformam a realidade. 

Acontece que a singularidade artística não fala tão-somente por si, para si, mas  organiza discursos contidos nas ruas e esquinas do Espírito do Tempo, haja vista a  complexidade deste com sua “obrigação” de falar por meio de um vocabulário  concernente a cada etnia, a cada povo, a cada distrito, trazendo dos confins além da fala  as expressividades de vanguardas da arte ou as formas e desenhos da cultura popular. 

Dentre as inúmeras naturezas-mortas deixadas pelo artista, destaca-se um  conjunto de três melancias; três abertas e duas tendo a função, ao que parece, de compor  uma inusitada e harmoniosa temática com um fruto de uma mesma espécie, sendo o lugar  no qual as frutas estão postas, ao fundo, e riscando um contorno, divisamos um negro  retinto. Com efeito, essa tisna negra não somente parece funcionar como uma sorte de  moldura não muito comum, na medida de não ser corrente o monocromatismo como  fundo, - e ademais o fato dessa cor preta em uma tela cuja figuração engendrou uma obra  tendo tão-somente a cor verde, o branco e o vermelho, cores da fruta melancia, - que aqui  estão ressaltadas, ao que tudo indica, com o objetivo de fazer sobressair as cinco frutas quedadas sobre um suporte que parece ser uma mesa. Quero dizer do não memorar  frequentemente no universo das artes, sobremodo nas indigitadas telas conhecidas como  naturezas-mortas, que tratamos aqui. Ainda mais quando se trata de uma fruta pouco  comum. 

Poucos chegaram ao patamar de Varela, em Mossoró, no trabalho do entalhe em  cimento fresco, desenhando figuras em alto-relevo, riscando sua arte nos muros, igrejas,  jardins e praças públicas os belos painéis. Visivelmente influenciado pelo antológico  Manxa (cuja obra-prima é o painel do prédio da reitoria da UFRN). Sendo assim, Varela,  com propriedade, imprime uma solução de continuidade ao nosso grande artífice em  entalhes de madeira vazada ou cimento sem a mistura de tintas. Tornando os painéis de  uma grande elegância, mostrando seu parentesco com as obras de cimento armado do  modernismo.
Evoco aqui Oscar Niemeyer, em estruturas maiores, tais como grandes edificações, ou Lina Bo Bardi, em obras com estruturas menores, como os suportes de  cimento e vidro para expor as telas do MASP. 

Quando o artista compromete sua arte por meio de determinados artifícios que nos  fazem reconhecer eventos, passagens ou fatos históricos sucedidos na polis, tais  elementos nos conduzem naturalmente a compreender que alguns mitos estão sendo  retomados e ritualizados de maneira explícita ou sutil. Essa evocação de certos  acontecimentos confere um valor da arte com uma dimensão de engajada, no sentido de  que para além do valor estético, vigora um discurso concedendo um encerramento extraído do cotidiano. Relembrando à posteridade pontos importantes de uma trajetória  coletiva. 

Contudo, há de ter uma medida dos mitos reelaborados em todas as formas da arte  na cidade, senão adentra pelo lugar-comum e pela banalização, lançando imagens  beirando a caricatura e a tediosa mesmice, como se não tivesse outra coisa para a criação  artística.  

Esses eventos históricos estão arraigados para sempre, já que não apenas riscam  suas narrativas na História, detendo um ethos mitológico na sua necessidade de ser  ritualizado nos eventos cívicos. Mesmo assim, há de recompor de maneira vívida, não em  uma composição tíbia. Um dos mais importantes painéis de Varela é o que se encontra na  Travessa Martins de Vasconcelos. Aqui, encontramos fatos concernentes a uma espécie  de superfície no qual repousam três eventos históricos: Professora Celina Guimarães, em  5 de abril de 1928; Lampião, 13 de junho de 1883; 30 de setembro de 1883, Libertação  dos escravos, cinco anos antes da Lei Áurea. 

Para que não sejam essas datas absorvidas pelo assomar dos bafejos acres de  Cronos, devorador de tudo o que é vivo, pulsando látegos nos quais nem consultados  fomos para receber e outorgar uma eventual solução. Apenas evocamos às forças que  gerem os céus e as estrelas para que nos imprimam no espírito o dom da fortaleza, cujo  perímetro alcança o que diz respeito à comarca das datas da cabeça e sua sempre presente  somatização, nos fazendo suportar com resignação as tantas vicissitudes.  

Há uma outra faceta de Varela. Quero falar da sua intervenção em espaços  vinculados ao coletivo, sobretudo aquilo que vai valer pela contemplação do todo, de  partes interdependentes, ou seja, não é uma tela que vai valer por si, mas por relação ao todo seu derredor, portanto vigora a necessidade de observar o cenário como junção de  elementos, deixando-se possuir pelo ambiente, perfumes e gentes muitas de todas as  qualidades, para, enfim, extrair uma beleza que só esse momento pode proporcionar. 

Estou me referindo à arte de decorar eventos ou datas comemorativas,  ornamentando bailes de Carnaval (como se sabe, outrora acontecia nos grandes clubes da  cidade, além dos pequenos cortejos nas ruas). Também era contratado para ornamentar  casamentos ou eventos de 15 anos, fazendo valer seu domínio de conceber um conjunto  de formas e cores com um só mesmo tema. Seríamos injustos se não citássemos o nome  do seu amigo Boulier. Ao que parece, Varela teria recebido influência do também amigo  e discípulo de Marieta Lima. 

Por muito tempo, Joseph Boulier foi um insuperável artista no ornamentar  ambientes para sediar bailes de carnaval. Até hoje se fala do seu talento e maestria quando  convidado para delinear texturas e cores de determinados Bailes de Máscaras, dominando  com destreza, e ficando conhecido por deter uma grande rapidez em ornamentar um  ambiente a partir de uma ideia primeva, para a consecução das ornamentações que  sediariam essas aglomerações em homenagem ao deus Dionísio. Era como se fosse o  cenário de uma ópera viva, na qual os foliões eram os personagens de uma noite de gala. 

Como observamos ao longo deste escrito, há de reconhecer no artista Varela  inúmeras capacidades de lidar com diversos materiais, configurando um talento artístico  inquieto ao dar forma ao que lateja em seu íntimo. Em síntese, eis o óleo sobre tela, do  figurativo ao abstrato, mas também busca sair de casa em uma procura de partes outras  para, em uma tentativa, assim como todo vivente. 

Se for para escolher o melhor trabalho, o Magnum opus, desse exíguo corpus de  trabalhos de Varela, a que tive acesso para elaborar este ensaio, ficaria com a imponente  tela que representa uma salina, paisagem bastante comum nas terras do entorno da cidade  de Mossoró, tais como Areia Branca, Macau e Grossos. Quando se desloca para essas  cidades, é mister caminhar devagar, para não perder o espetáculo das brancas salinas  ladeando os dois lados por onde avança o automóvel, esplendendo sob um transparente  sol. 

Por isso nos deteremos com mais vagar sobre a tela que representa uma salina, e  reputamos como a mais bem acabada, por um feitio possibilitador de revelar o domínio do desenho, da forma, dos traços e ângulos; enfim, da perspectiva, da cor e seu manuseio,  obtendo pleno conhecimento profundo e seguro da luz e sua transparência, permitindo  que os espaços internos sobressaiam seus ângulos em 90º. Ademais, a preferência por  cores esmaecidas, predominando o azul, tanto no firmamento quanto nas águas  represadas, para evaporar e mais tarde terem o sal. 

É bom repetir o fato de podermos observar o que chamamos pleno domínio do  desenho, como se trata de uma justaposição de quadrados (tanques), quase que esses  meios empregados necessitam da perspectiva para assentar as partes em uma totalidade. Com efeito, houve uma deliberação de justapor elementos para organizar os espaços do  quadro. Do lado direito, há um grande catavento, estrutura para trazer água do lençol  freático. Do lado esquerdo, há uma casa, opondo-se ao cata-vento. No centro, temos  muitos tanques de águas represadas, homens trabalhando e grandes rumas de sal em  formas quadráticas, preparadas para serem levados aos armazéns nos quais serão  processados para a comercialização. 

Difícil é a maestria de pintar uma tela conseguindo apreender um sol tão  transparente quanto o que foi assentado nessa composição. Consabido é, também  admirado pelos visitantes que aqui chegam, o salientar desse sol muito claro e capaz de  fazer com que os contempladores observem que cada cor se defina e apareça em  plenitude, que se faça presente na sua diferença, que albergue contrastes com outras cores  ou matizes. Por fim, outorgue a essa tela o valor de chef-d’oeuvre da obra múltipla do  pintor Varela.